domingo, 10 de novembro de 2019

Duas guitarras, o mesmo nome, o do tio de William Tyler

Quem é William Tyler
Lançar respostas pode soar superficial. Seria possível explorar várias adjectivações apenas pela sua performance, naquele palco em que se encontra praticamente despido, na noite de sexta, dia 8 de Novembro, no Auditório de Espinho. O lado despojado de William Tyler salienta o poder das mãos que há muito manejam cordas de aço (de guitarra). Mesmo que o tempo vá passando, a sua alma não se deixa arrefecer. A relação do músico com a guitarra é honesta e cúmplice que requer tempo para desbravar acordes difíceis - próprios da técnica fingerpicking. Uma relação difícil, mas íntima e persistente; como se a guitarra fosse uma extensão dele próprio. Apesar da técnica complexa, Tyler não olha para o braço da guitarra para saber o que toca. Deixa-se levar pelo transe.


Pergunta se vamos aguentar um concerto apenas a uma guitarra numa sexta-feira à noite, quando poderíamos estar numa festa mais animada ao som de um DJ. Tyler ironiza que a seguir ao concerto pode ser o próprio DJ...

O virtuoso do folk inquire umas quantas vezes o público e brinca dizendo que ainda estamos a tempo de ir para o bar após o concerto "enfadonho". Alguém do público pergunta se Tyler se quer juntar à festa, o músico satiriza que sim. Ao mesmo passo que afina a guitarra, refere que era suposto trazer discos para vender mas, em tom de ironia, diz que foram feitos reféns na alfândega norte-americana, e cujas despesas não iriam ser suportadas pelo governo do seu país. Acrescenta, "Mas eu tenho discos no mundo, não nesta cidade, nem nesta noite". Entre canções e silêncios, animou também a audiência que apenas foi para o ver. Indaga se mais alguém tem alguma questão, talvez com o intuito de colocar o público, que se mostrava constrangido, mais à vontade; e quando, na verdade, era Tyler que pisava sozinho um palco que desconhecia. Afirma que silêncio também é bom, e pergunta se alguém quer pedir um tema de Frank Zappa. No mesmo instante responde: "Não o façam, se me pedissem não saberia o que fazer.". 

William Tyler estreou-se a solo em 2010 com Behold the Spirit. Em 2013 lançou Impossible Truth, em 2016, Modern Country, e este ano Goes West, um trabalho incrível que continua a desenhar as paisagens do seu país. Natural da terra do country, Nashville, movido pelo seu lado romântico, foi, há uns anos, rumo à costa oeste dos EUA. Um lugar mágico onde vivem 10 milhões de habitantes. Para si, tanto tem de encantador quanto de assustador. A região o faz reflectir sobre o estado da crise ambiental, afectada pela seca e pela aridez durante 7 meses consecutivos de um ano. Criticou o poder que os ricos têm, que, na prática, não faz jus à moral discursiva do apelo à preservação do ambiente. Na verdade, complementa, são os ricos que podem mudar de planeta se alguma catástrofe acontecer, deixando os pobres entregues ao seu destino (malfadado?). Após o interlúdio, começou a dedilhar Country of Illusion de Impossible Truth, preenchendo o som da guitarra com os efeitos dos pedais.

Enquanto apaixonada pelo folk, e a tudo que diga respeito a guitarras acústicas, questionei, da plateia, se aquela era a sua primeira guitarra. Explicou que não. E contou-nos uma bela e memorável história. 

"A minha primeira guitarra acústica é parecida com esta. Uma Martin, com um corpo mais pequeno, dada pelo meu tio, há uns 15 anos. Foi a primeira vez que tive uma guitarra acústica. Ele faleceu há uns anos, e, apesar do falecimento dele, ainda cheguei a tocar ao vivo com ela algum tempo, mas depois pensei que o melhor seria deixá-la em casa pelo seu valor sentimental. Então acho que esta é a minha primeira guitarra acústica que comprei com o meu dinheiro. Ao menos não pertence a um membro da família morto... Quando comprei o estojo da guitarra... de facto esta história é um pouco sinistra... eu passei um dia inteiro numa loja de venda de guitarras em Nashville. Estava a experimentar guitarras e esta custava menos 2000/3000 dólares que as que queria comprar. Então comprei-a, porque era a que conseguia pagar e passei algum tempo a tentar convencer-me que queria comprar outra mais cara, mas depois apercebi-me que esta não se diferenciava muito das restantes. Então virei-me para o funcionário e disse, 'é esta guitarra que quero comprar', e ele respondeu, 'boa escolha'. A primeira guitarra com a qual viajei pertencia ao meu tio materno. Quando o funcionário trouxe o estojo da guitarra, no lado de uma parte do estojo constava o nome da pessoa a quem pertencia, e o nome era exactamente igual ao do meu tio. O estojo da guitarra que escolhi daquela loja tinha o mesmo nome de um membro da minha família, do tio que me ofereceu a minha primeira guitarra.".

Entre as canções há momentos de silêncio e diálogo com a audiência. Atitude própria de um músico que tem vindo a reunir experiências vividas nos palcos dos bares dos EUA. Há o lado contador de histórias bem humorado e o do homem solitário. O criador das mais impressionantes bandas-sonoras, é alguém que se quer por perto e com quem se gostaria de construir uma relação de amizade. O seu ar angélico transmite paz e muita serenidade, algumas vezes remetendo para Nick Drake. Enquanto embala a audiência com temas viajantes, faz com que a técnica do fingerpicking pareça simples; manter o ritmo do baixo das cordas graves em contraste com acordes mais agudos. Tal como Ben Chasney, William Tyler é a prova de que a melhor descendência do folk está viva e de boa saúde: Elizabeth Cotten, Robbie Bascho, John Fahey, Jack Rose (e muitos mais) são nomes que ficam nos alicerces da história do género musical. 

O músico regressou a Portugal, desta vez com três datas marcadas, uma delas - finalmente - em Espinho, após uma década de conversas travadas com o organizador responsável pela sua vinda a este palco. Depois de anos a tocar com Lambchop, com os Silver Jews e ter participado com Bonnie "Prince" Billy, Tyler começou uma discografia a solo centrada na música folk instrumental.

Seguidos os aplausos do público, Tyler regressou ao palco deixando a única versão de rock que disse saber tocar, Go on Your Way de Fleetwood Mac, onde a guitarra construiu ao mesmo tempo a base instrumental e a harmonia das vozes. Verdade seja dita, depois deste William Tyler não há festa nem bar que nos convença a ficar. 



Texto: Priscilla Fontoura

Concerto: William Tyler
Local: Auditório de Espinho 
Data: 8 de Novembro, 2019