Metadevice é o novo projecto musical de André Coelho , ilustrador e músico, membro fundador de Sektor 304 e ex-colaborador de Mécanosph...

Metadevice: um álbum colaborativo que reúne nomes do underground da música experimental.

Metadevice é o novo projecto musical de André Coelho, ilustrador e músico, membro fundador de Sektor 304 e ex-colaborador de Mécanosphère. O disco Studies for a Vortex apresenta sonoridades electrónicas industriais, com drones alienantes e camadas dub – uma abordagem à desconstrução e à exploração de vocais.

O álbum saiu nos formatos CD e digital pela seminal editora norte-americana Malignant Records e conta com as colaborações de Jonathan Hhy (Hhy & the Macumbas), Miguel Béco Almeida (Atila, Kara Konchar), entre outros. A masterização ficou a cargo de John Stillings (Steel Hook Audio) e o grafismo pela mão de André Coelho.

Ilustração: André Coelho

(...) "esse trabalho é fruto da minha concepção e carregará sempre algo de mim e da intenção que o originou."



- A primeira vez que ouvimos falar em ti foi pela ilustração. Estás associado a festivais como SWR Barroselas e às publicações da Chilli com Carne. Alguém que vê a criatividade como princípio para materializar ideias é alguém que não se restringe ao meio para explorar o que existe. Como se processa essa ligação, costumas estar vinculado a esses dois meios ao mesmo tempo, ou dedicas os teus tempos de forma sazonal?
No âmbito do meu trabalho pessoal, a música e a ilustração são complementares e dedico-me igualmente a ambas. Estes são os meios através dos quais exprimo as minhas ideias. Não consigo dizer que existe um “eu” da música e um “eu” da ilustração, por exemplo. 

- És membro fundador de Sektor 304 e agora estás novamente envolvido num projecto musical de cariz mais industrial. Como surge o teu interesse por sons mais industriais?
Se na minha adolescência, o heavy metal e os seus diferentes subgéneros eram o meu “universo”, a certa altura entrei em contacto com alguns discos que funcionaram como charneira para descobrir outras abordagens mais exploratórias. Acho que o “666 International” de Dodheimsgard ou o disco homónimo de Thorns foram cruciais para descobrir o industrial, o noise, e a electrónica.

Agrada-me pensar na possibilidade de criar música que pode sair dos parâmetros daquilo que é sistematizado enquanto tal e focar-me apenas nas qualidades plásticas do som, de forma a trabalhar a atmosfera geral que pretendo para cada composição.

Embora a música Industrial, desde Throbbing Gristle até aos dias de hoje, se tenha subdividido em codificações e “modus operandi” cada vez mais estereotipados, acredito que ainda existe uma margem para a exploração sonora e para o cunho pessoal. 

No entanto, devo admitir que este primeiro registo de Metadevice acabou por se revelar bem mais estruturado do que aquilo que inicialmente tinha em mente, como acontece em “Gorgoneion” ou “White Jazz”. Acho que esta flutuação entre momentos mais musicais e outros mais sonoplásticos acaba por ser algo que surge naturalmente. Tal já acontecia no processo de trabalho em Sektor 304 e, talvez por isso, a maioria dos trabalhos que editamos conseguiam, na minha opinião, fugir facilmente a catalogações demasiado restritas no que diz respeito a subgéneros.

Ilustração: André Coelho

- Todo o som acaba inevitavelmente por causar efeitos fisiológicos e psicológicos a quem o escuta. Esta cocofonia de sons presente em Studies for a Vortex causa sem dúvida efeitos perturbadores. Deve haver, se calhar, uma disposição/preparação para incursar nesta viagem sonora. Como olhas para essa disposição de quem vos escuta? A percepção do som do ponto de vista psicológico varia de pessoa para pessoa. Ela pode ser facilmente compreendida, se pensarmos, por exemplo, numa conversa ou um tipo de música, que pode ser agradável para umas pessoas e desagradável para outras. Pensas nas sensibilidades do teu público durante o processo criativo?
Preocupo-me em realizar música que consiga ser uma extensão das minhas ideias e em que a forma seja trabalhada do modo mais satisfatório possível, tendo em conta os meus critérios. Não conheço bem o “meu público”, nem o consigo fechar num gosto bem definido. Tal como referi anteriormente, apesar de ter bem escolhidas as minhas ferramentas e a minha linguagem, tento não fechar o que vou compondo e gravando em códigos muito restritos, à priori. Se porventura acabar com um disco mais ambiental ou mais ruidoso, mais ou menos experimental, isso será porque o tema ou a atmosfera que pretendo trabalhar levou o material nesse sentido. Claro que depois de concluído e lançado ao mundo, o disco passa também a pertencer a quem o ouve e cada ouvinte terá uma audição única, potenciada pela sua sensibilidade. Mas, independentemente disso, esse trabalho é fruto da minha concepção e carregará sempre algo de mim e da intenção que o originou.

(...) "O niilismo latente no meu trabalho pode eventualmente estar associado ao fascínio que tenho pela noção de fim, pela melancolia inerente a uma estética do desaparecimento, tal como acontece, por exemplo, em “Terminal Tower” ou “Acédia”. Deste modo, não creio que exista na minha criação uma noção de niilismo “activo” ou radical, mas sim uma forma passiva, resultado precisamente dessa perda de sentido e vazio que parece reinar no tempo em que vivemos. É talvez mais próximo daquilo que é definido por Baudrillard enquanto resultado de um certo “ponto de inércia” histórica a que chegamos."


- No teu tipo de trabalho há sempre uma propensão para o lado mais niiilista e distópico. É nesse contexto que pretendes permanecer para exprimires todos os devaneios criativos?
Distopia, sim. Niilismo, não assumidamente.
A música de Metadevice, tal como a de Sektor 304, trata de temáticas que se podem dizer distópicas, extremas, carregadas de tensão, mas não são uma apologia ao niilismo ou à ausência de valores; trata-se, no entanto, do reflexo de um mundo que se vê cada vez mais alienado, mergulhado numa carência de sentido, perdido no vazio da sua simulação e entregue ao poder dissimulado sem escrúpulos. 

O niilismo latente no meu trabalho pode eventualmente estar associado ao fascínio que tenho pela noção de fim, pela melancolia inerente a uma estética do desaparecimento, tal como acontece, por exemplo, em “Terminal Tower” ou “Acédia”. Deste modo, não creio que exista na minha criação uma noção de niilismo “activo” ou radical, mas sim uma forma passiva, resultado precisamente dessa perda de sentido e vazio que parece reinar no tempo em que vivemos. É talvez mais próximo daquilo que é definido por Baudrillard enquanto resultado de um certo “ponto de inércia” histórica a que chegamos. Mas, simultaneamente, creio que existe sempre a possibilidade, talvez utópica, de redenção, de uma potencial força vital de reconstrução, de que ainda há espaço para a poesia, para a força da criatividade e da expressão, e que tal nos impele para a vida e, consequentemente, para a esperança. Esta busca torna-se hodiernamente mais pertinente enquanto forma de sobrevivência. É talvez o nosso reduto de resistência, a trincheira mental a que podemos recorrer contra o cerco que aperta através, por exemplo, da sedução dos mecanismos de vigilância associados ao consumismo.

O próximo trabalho de Metadevice, que se encontra já em processo de composição, focará certos aspectos ligados à perversidade do poder, ao panóptico tecnológico e social a que nos entregamos, demasiadas vezes, deliberadamente. Uma abordagem crítica desta natureza surge na sequência da necessidade de superar a inércia e a entrega cega ao poder, destituído de valores ou moral. 

Cada vez mais sinto necessidade de quebrar com a alienação, embora não possa negar que, de facto, existe no meu trabalho o gene do desencanto e da melancolia. Sinal dos tempos? É talvez um paradoxo, mas é a força motora de grande parte do meu processo criativo.

Não creio que a criação artística seja compatível em absoluto com o niilismo, pelo menos no sentido que este tem hoje em dia. Revejo-me nas palavras de Tarkovsky, que considera a Arte uma forma de relação entre os indivíduos, e enquanto tal, é “a concretização da ideia do amor, cujo significado encontra-se no sacrifício: a perfeita antítese do pragmatismo”.

Ilustração: André Coelho

- No tema White Jazz há algo que remete para Recoil, consideramos ser o clímax do vosso disco. Na vossa descrição salientam bandas como Einstunzerde Neubaten. Este tema é realmente imersivo e bastante cinematográfico, uma espécie de metalinguagem que liga quem escuta a quem apresenta um mundo desorganizado. Talvez a guitarra que entra como um espécie de drone traz a melodia necessária para dar continuidade a outros momentos mais quebrados pelo caos sonoro. Consideras o vosso som cinematográfico e exploratório do ponto de vista audiovisual do que apenas um disco que vive por si só?
As ideias iniciais ou conceitos, que pretendo explorar e traduzir musicalmente, surgem muitas vezes sob a forma de imagem. Por trabalhar também no âmbito das artes plásticas, a imagem é algo que estará sempre presente enquanto referência, elemento inspirador ou até mesmo enquanto parte integrante da obra musical. A título de exemplo, a criação da capa de “Studies For a Vortex” é uma ilustração retirada de um livro no qual fui trabalhando enquanto compunha o disco. Tudo está interligado.

Quando aqui refiro o termo “imagem”, ela pode ser também uma imagem poética. Se atentarem nos créditos de “Studies for a Vortex” poderão constatar que uma boa parte das letras são interpretações de poemas e textos, de autores como Ezra Pound ou James Ellroy., por exemplo. 

- Tal como a técnica da colagem na ilustração, Metadevice procura um pouco trabalhar essa técnica mais sonoplasta, uma colagem de samples e sons mais industriais para criar uma aura que remete para o cinema existencialista alemão. Esse lado mais visual e um pouco abstracto está presente no vosso imaginário, como o recriam para o tempo de hoje?
Na música industrial, o cut-up e o loop são técnicas basilares, e podem ser encontradas logo nos pioneiros do género como Throbbing Gristle ou SPK, que por sua vez são altamente influenciados por William Burroughs e Brion Gysin. Trata-se sobretudo de uma estratégia de apropriação e repetição e que me é natural desde que comecei a fazer música, a par do uso de field recordings e manipulação destas. Aliado ao crescente uso de sintetizadores, que no caso de Metadevice são a principal fonte sonora, este conjunto de abordagens cria essa direcção mais sonosplástica e eléctrica que se pode sentir no disco. 

Compreendo que se possa afirmar que o uso deste tipo de técnicas tem o seu lado mais “visual” ou invocativo, mas não creio que o resultado seja meramente ilustrativo.

(...) "A colaboração com o Jonathan Hhy, na faixa 'Tears of Eros', e com o Miguel Béco, em 'Biomorphic Horror', surge na sequência da nossa co-habitação no underground da música electrónica, experimental e 'outsider' do Porto. Este hábito colaborativo é-me intrínseco desde os primeiros tempos de Sektor 304, em 2007, sendo que já existia muito antes entre músicos como Gustavo Costa, Henrique Fernandes, Filipe Silva, o já mencionado Jonathan Hhy e outros. A cena experimental do Porto reúne pessoas provenientes de contextos muito variados, desde o hip-hop, clássica, metal, rock, etc... e desde sempre produziu os mais interessantes híbridos. O projecto mutante Mécanosphère, no qual colaborei, é um bom exemplo disso, pois agregou ao longo das suas encarnações muitos músicos desse contexto portuense."


Ilustração: André Coelho

- A colaboração de Jonathan Hhy (Hhy & the Macumbas), Miguel Béco Almeida (Atila, Kara Konchar) e André Coelho é o casamento perfeito no que respeita à criação desse mundo distópico e mais desconexo da realidade Disney que o mundo ocidental muitas vezes apresenta. A verdade é que a música, além de ser considerada a primeira arte, é também a que mais consegue mexer com os mais variados estados de espírito das pessoas. Pretendem que a imersão sonora seja acima de tudo uma experiência sensitiva? Mais do que um concerto ou disco, seja mesmo uma entrada no vosso imaginário? 
A colaboração com o Jonathan Hhy, na faixa “Tears of Eros”, e com o Miguel Béco, em “Biomorphic Horror”, surge na sequência da nossa co-habitação no underground da música electrónica, experimental e “outsider” do Porto. Este hábito colaborativo é-me intrínseco desde os primeiros tempos de Sektor 304, em 2007, sendo que já existia muito antes entre músicos como Gustavo Costa, Henrique Fernandes, Filipe Silva, o já mencionado Jonathan Hhy e outros. A cena experimental do Porto reúne pessoas provenientes de contextos muito variados, desde o hip-hop, clássica, metal, rock, etc... e desde sempre produziu os mais interessantes híbridos. O projecto mutante Mécanosphère, no qual colaborei, é um bom exemplo disso, pois agregou ao longo das suas encarnações muitos músicos desse contexto portuense. É, portanto, uma tendência natural gravar com outras pessoas, colaborar e explorar o nosso potencial criativo.

Daí haver tantas colaborações no disco, não só as já mencionadas, mas também de Manuel João Neto em “White Jazz” e Catarina Magalhães em ”Gorgoneion”, assim como J.A. de Karnnos, Wolfskin e Iurta que me ajudou em algumas sessões de gravação.

Não creio que a música de Metadevice se resuma a uma imersão sensitiva, na medida em que isso significaria uma redução aos seus aspectos formais. Quando falo das imagem poéticas e das dimensões conceptuais inerentes ao projecto, estou consequentemente a abrir portas à proposta de uma leitura que ultrapassa a mera “experiência”. E por isso mesmo se pode afirmar que existe um “imaginário”, um conceito ou uma poética por detrás de cada composição. A imersão ao nível dos sentidos será sempre apenas uma porta para esse imaginário.

- Têm prevista alguma digressão ou já se encontram a preparar o próximo disco?
Não existem para já planos concretos para tocar ao vivo, apenas algumas ideias ainda muito vagas. Quanto a próximos lançamentos, já estou a trabalhar em material novo para ser editado ao longo do ano, tendo já planeado a participação em compilações e algumas colaborações. Estejam atentos a novidades em metadevice.bandcamp.com e www.metadevice.blogspot.com

Texto e entrevista: Priscilla Fontoura
Entrevistado: André Coelho
Ilustrações: André Coelho