Gravação com Patrizia Oliva, Marzabotto. Digressão europeia, Março, 2013.
Pelo menos 10 anos já se
passaram. Fazemos um regresso ao passado e lembramo-nos de Gustavo e do
primeiro concerto que organizámos no B Flat, em Matosinhos. Foi com Lost Gorbachevs, a banda que Gustavo criou ao lado de João Martins e Henrique Fernandes,
que se apresentou acompanhado por uma bateria minimalista. Ouvimos composições
com transições bruscas e percebemos que as influências vão do jazz ao hardcore,
ao estilo Naked City e Ruins. Ainda assim, Gustavo nunca ignorou o seu
lado metaleiro, não fizesse também parte do seu crescimento musical o percurso
que teve com Genocide. Com
pouca distância, sempre soubemos que tinha sido dos melhores concertos que
organizámos. Um bom músico não vive da consequência de fazer música mas porque
faz parte da condição de ser músico. É este lema que vemos desenhado em
Gustavo, fidelidade aos projectos em que se mete. Talvez venha do espírito
anarca e do Faz tu Mesmo que a prioridade do fazer se antecipe à do ter. Foram
várias as demandas de Gustavo, gosta de colaborar com músicos eclécticos e de
improviso, provindos de várias partes, tal como ele. Já correu a Europa e outros
continentes com vários projectos musicais, estudou e leccionou música, tocou em
ocupas e locais recônditos que não lembram a ninguém. Talvez os seus diários de
viagem resultassem numa compilação interessante. Hoje quem quiser saber mais
sobre este músico experiente, residente e natural do Porto, e gostar de música
noise, experimental, pode encontrá-lo no Carvalhido, longe
do burburinho da Baixa do Porto, na Sonoscopia, um
lugar onde o espírito familiar só acrescenta e em nada trava o crescimento
musical. Um nicho despretensioso e que estimula diferentes maneiras de pensar e
fazer música. Foi com Patrícia Craveiro e Henrique Fernandes que fundou, em
2011, esta associação que abarca várias actividades: concertos, workshops,
ciclos, residências artísticas. Com alguma curiosidade em saber o que Gustavo
tem nas suas prateleiras, pedimos-lhe que nos recomendasse 5 livros, 5 discos,
5 filmes/séries.
TEXTO: PRISCILLA FONTOURA
5 livros:
- "Acústica
Musical", Luís Henrique.
É
provavelmente o meu livro mais viajado e o que revisito com mais frequência.
Uma publicação essencial, por ser o primeiro livro de Acústica Musical desta
dimensão escrito em Portugal. O trabalho do Luís Henrique é notável e exerceu
uma forte influência sobre mim.
- "Resposta
de um Anarquista aos Últimos Moicanos do Marxismo e do Leninism, assim como aos
Inúmeros Pintainhos da Democracia", Júlio Carrapato.
Ninguém
escapa a Júlio Carrapato. É um livro corrosivo, no bom estilo que caracteriza
este autor anarquista Algarvio.
- "Na
penúria em Paris e Londres", George Orwell.
Li este
livro em 2003, quando vivia na penúria em Haia. Embora eu estivesse numa
situação mais privilegiada, na minha cabeça este livro encaixava-se como uma
luva à vida no meu quarto minúsculo em Cartesiusdwartsstraat.
- "A
Year from Monday", John Cage.
Se
pudesse escolher um só livro para me acompanhar para o resto da vida, talvez
escolhesse este. Mais do que um livro, é a música que me acompanha
sempre.
- "Rock
& Droga", Jorge Lima Barreto.
Ainda que
com algumas deambulações fantasiosas, os livros do Jorge Lima Barreto continuam
a ser imprescindíveis para entender o panorama musical português dos anos 70 e 80. Numa altura em que o acesso à
informação era ainda bastante limitado e o nosso país ainda se encontrava nos
confins da Europa, as referências nestes livros eram fundamentais para se
perceber tudo aquilo que acontecia no resto do mundo, em particular nas
vanguardas musicais.
5 discos:
- "Agent
Orange", Sodom / "Extreme
Aggression", Kreator / "Beneath the Remains", Sepultura.
O
lançamento destes discos (1989) coincide com o início imberbe da minha primeira
banda de thrash metal. Talvez, para alguns, estes discos sejam os piores destas
bandas, até porque de alguma forma marcam a transição para uma maior exposição
mediática que passaram a ter, e muita da sua ingenuidade termina aqui. Mas o
que me fascinava era o som, que pela primeira vez combinava a agressividade
destas bandas com um detalhe muito mais clínico. Para mim, que estava
interessado em perceber exactamente como fazer este tipo de música, estes
discos eram perfeitos e foram seguramente os discos que mais ouvi na minha
adolescência. Creio que mesmo numa fase terminal da minha vida e com Alzheimer
ainda serei capaz de me lembrar de todos os riffs de guitarra e breaks de
bateria de trás para a frente.
- "My
Favorite Things", John Coltrane.
Poucos
músicos conseguem fazer transparecer em disco uma aura e presença espiritual
como o Coltrane. É um disco que, apesar da sua graciosidade, marca uma rutura
com o passado e aponta as futuras direções que o jazz iria tomar a partir
daqui. Este disco reflete também um profundo entendimento entre os seus
intervenientes. Apesar do destaque do Coltrane, funciona como um único bloco
onde todas as intervenções dos músicos se complementam e servem um propósito
comum, ao contrário de muitos discos de jazz onde as individualidades se
sobrepõem ao coletivo.
- "Concret
PH", Iannis Xenakis.
Ainda sob
a influência da música concreta e no tímido início de carreira musical, esta
peça resume para mim todo o pensamento do Xenakis. Incidindo apenas sobre a
manipulação de sons de carvão a queimar, estão aqui presentes os elementos
fundamentais com os quais iria trabalhar até ao final da sua vida, que se
resumem na tradução de fenómenos naturais para parâmetros musicais. A par do
Cage, Xenakis foi o compositor do século XX que mais me marcou, tanto pela sua
música como pela sua postura e pensamento.
- "Torture
Garden", Naked City.
Em 1991
ouvia maioritariamente death e grind core numa altura em que o género estava a
dar sinais de saturação. Um amigo da altura (o Raúl, baterista dos Morgue)
passou-me este disco com o seguinte aviso: é uma das coisas mais extremas que
já ouvi. Depois de ultrapassar a dificuldade em perceber se o disco estava nas
rotações certas, gravei-o para uma cassete que rodava diariamente no meu
walkman. A partir daqui, fui descobrindo todos os músicos incríveis que tocam
neste disco, desde o Yamatsuka Eye ao Fred Frith. Foi claramente um daqueles
momentos que mudaram a minha vida.
- "IV",
Led Zeppelin.
Seria
difícil não mencionar o John Bonham numa lista de apenas cinco discos. Acho que
se não fosse este disco não teria desenvolvido uma obsessão pela bateria em
criança e talvez fosse contabilista, advogado ou engenheiro químico hoje em
dia. Obrigado John.
5 filmes:
-
"Ensaio de Orquestra", Federico Fellini.
Um
excelente retrato da estrutura altamente hierarquizada na qual os músicos de
orquestra se inserem. O retrato aqui feito encaixa-se na perfeição com o
cenário com que me deparei das primeiras vezes em que me tentei adaptar à
estrutura clássica, onde a subordinação e a falta de questionamento perante a
música e os vários poderes que a compõem me causou grandes dissabores. Ainda
hoje continuo sem perceber a falta de postura crítica de alguns músicos da
escola clássica.
- "Holy
Mountain", Alejandro Jodorowsky.
Pode ser
a escolha mais óbvia para uma grande parte dos músicos, mas não deixa de ser um
magnífico filme a todos os níveis. É um bombardeamento visual carregado de
detalhes numa escala gigantesca, mas que ainda assim espelha uma humilde
genialidade.
- "A
vida de Brian", Terry Jones.
O
cristianismo e a sociedade ocidental explicadas com o requinte e inteligência
dos Monty Python. Estou ansioso para o poder ver com o meu filho, no seu
primeiro dia de escola primária.
- "Naked
Lunch", David
Cronenberg.
Passei
uma boa parte da minha adolescência a ver filmes de terror, e os filmes do
David Cronenberg foram sempre meus bons companheiros. Curiosamente, ou não, a
evolução dos seus filmes coincide também com a minha transição musical, e
filmes como Videodrome, Naked Lunch ou, mais tarde, Crash, funcionaram como
bandas sonoras perfeitas dos meus anos de juventude.
- "Tetsuo",
Shinya Tsukamoto.
Outra
referência óbvia para quem cresceu no meio underground dos anos 80 e 90, e que
rapidamente se tornou num filme de culto. O que sempre me fascinou neste filme
foi a crueza das imagens e a visão apocalíptica em torno da relação
homem-máquina, que ainda hoje continua a estar muito presente no meu
pensamento. Vi este filme pela primeira vez no Fantasporto, numa altura em que
este festival era uma referência obrigatória para qualquer portuense, e quando
o acesso a este tipo de conteúdos era definitivamente restrito aos mais
curiosos e audazes.
TEXTO:
GUSTAVO COSTA