Como ter força depois de uma tragédia para, num registo cinematográfico, expor os sentimentos mais profundos?
Durante as gravações de "Skeleton Tree", o último trabalho de Nick Cave and The Bad Seeds, aquela que pode ser considerada a maior fatalidade para a vida de um pai aconteceu. Nick Cave perdeu o seu filho Arthur (irmão gémeo de Earl), que caiu num precipício causando a sua morte. Para quem já passou por um luto dramático sabe que não existem fórmulas ou milagres para que a dor desapareça. No entanto, passados seis meses Nick Cave enfrentou a realidade e voltou ao trabalho.
No estúdio, Nick apresenta-se com vigor mascarado porque o luto seca todas as energias. Em voz off Nick lança o poema "Steve McQueen" em tom spoken word como se fossem orações. É a linguagem que o liga a Arthur e nas canções encontra o momento catártico para aliviar essa dor tão pesada: With my voice, I am calling You, diz Cave no primeiro tema de Skeleton Tree, Jesus Alone. O seu colega e amigo Warren Ellis responde com grande sensibilidade por meio de efeitos sonoros a cada avanço criativo de Cave, que se encontra ao piano.
One More Time with Feeling, essa memória visual realizada com a maior das nobrezas, por Andrew Dominik, e que muitas vezes nos leva às linguagens Tarkovskiana e "Mallickiana", introduz em planos sequenciais, a preto e branco, em 2D e 3 D, o processo de composição de Skeleton Tree. A câmara circula entre o interior e o exterior do estúdio, como se um espírito deambulasse pelos dois mundos, o físico e o espiritual. Tudo é uma questão de perspectiva e tudo depende da forma como olhamos para a vida. Nick Cave, em todo o documentário, é exemplo vivo de que mesmo passando por uma dor que chega às entranhas consegue interagir com os seus Seeds, sempre com a elegância que o distingue, munido de coragem para desabafar a dor que atravessa. É um processo de cura e todos os Seeds estão com ele para fazerem a travessia do deserto ao seu lado.
I Need You arrebata qualquer um que esteja a passar pelo mesmo processo. Quem viveu o luto consegue compreender a cadência rítmica e as palavras que Nick solta: Nothing really matters anymore / Not even today / no matter how hard I try / When you're standing in the aisle / And baby, nothing, nothing, nothing; um cansaço que se sente e cujas palavras nos atravessam como uma espada de dois gumes porque sentimos genuinamente a dor de Cave que corta sem dó.
Um documentário que condensa o processo do luto. O isolamento, a apatia, o desgaste, a catarse e o regresso à vida. O peso da dor acaba na transmigração do espírito para a eternidade que numa visão poética utiliza a câmara como ponto de referência metafórica para representar essa libertação. A câmara sobe pelas ruas de Londres à noite, depois sobe e entra na estratosfera enquanto vemos o planeta e o sol, tão distantes e frios como uma estrela.
Distant Sky traz-nos a leveza natural depois do desgaste mergulhado em choro. Poderíamos comparar Skeleton Tree, essa árvore nua, à referência bíblica dos ossos secos: uma imagem apagada e que pela força da vontade renova-se juntando osso a osso, carne, tendões e pele. Essa reconstrução sem espírito é revivificada quando o espírito entra. Nick Cave, sempre apegado a referências bíblicas, conseguiu reunir esses ossos secos para transitar novamente para a vida. É o restauro das peças que se partiram.
Tanto Skeleton Tree, o álbum, e One More Time with Feeling, o documento visual que perdurará na história, significam apenas duas coisas: genialidade (uma palavra que é usada com vulgaridade mas que neste caso é usada com o maior zelo) e coragem.
TEXTO: PRISCILLA FONTOURA