Resumo
A
música, por vezes, assume um carácter contestatário e é um agente competente na
denúncia de inúmeras injustiças sociais. Foi durante as décadas de 60 e 70 que Portugal foi
assomado por uma vaga de trovadores e cantautores que se insurgiram contra o
regime fascista que dominava Portugal e que obrigou muitos músicos talentosos a
procurar refúgio noutros países.
Em França foram gravados discos
cujas melodias folk e, por vezes, fado, essencialmente portuguesas, revestiram letras de
resistência e contestação, muitas vezes com metáforas para escapar ao lápis
azul da ditadura. As músicas são elaboradas e de melodias complexas, mas ao
mesmo tempo curtas e directas apelando à acção directa do povo.
Finda a revolução, este género adoptou o nome de Canto Livre e um
dos seus últimos esforços foi através da canção FMI de José Mário Branco que durante vinte e cinco minutos narra o
futuro incerto de um Portugal pós-revolução. O 25 de Abril trouxe cravos e canções que
fizeram o povo sonhar para depois agir.
Palavras-chave: contestação, poesia, Abril
Palavras-chave: contestação, poesia, Abril
1 - Introdução a José Mário Branco
Foi com letras intensamente poéticas que o multi-instrumentista e compositor José Mário Branco atraiu a atenção dos
portugueses e os impeliu à resistência contra uma ditadura fascista iníqua. Em
1971, lançou MUDAM-SE OS TEMPOS, MUDAM-SE AS VONTADES carregado de dez temas com melodias de coração
português, mas com alma
progressiva e arranjos interessantes. Em QUEIXAS DAS JOVENS ALMAS CENSURADAS encontramos uma balada com bons arranjos e uma
boa companhia acústica para o poema poderoso de Natália Correia.
Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente
e um espelho pra pentearmos um macaco
Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça a forma da alma que o procura
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente
e um espelho pra pentearmos um macaco
Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça a forma da alma que o procura
É um poema que merece
várias leituras. Em Perfilados de Medo
é nos facultado um poema de Alexander
O’Neil musicado. Um poema soberbo tingido de algum surrealismo que nos incita a
lutar, independentemente
das dificuldades exteriores que se nos deparam.
Aventureiros já sem aventura
perfilados de medo
combatemos irónicos
fantasmas à procura do que não fomos, do que não seremos
perfilados de medo
combatemos irónicos
fantasmas à procura do que não fomos, do que não seremos
O disco encerra com o hino que dá nome ao disco. É um tema que tanto pela melodia como pela letra amplifica a esperança de um povo que subvalorizado massacrado e profundamente magoado por uma ditadura fascista se ergue novamente para cantar e para resistir.
Passado praticamente um ano,
José Mário Branco lança MARGEM DE CERTA MANEIRA em 1973, gravado em França. O tema que arranca o disco chamado Por
terras de França é uma canção que exprime algum desagrado por parte de um
exilado que foi forçado a deixar o seu país. No tema que se segue, Engrenagem, encontramos uma mistura
inusitada de música tradicional portuguesa com bastante psicadelismo,
consequentemente, melodicamente é supra-interessante. E em Cantiga da Velha Mãe, deparamo-nos com uma letra ou diria mesmo,
poema de Sérgio Godinho.
Às vezes rogo pragas de os ver assim
sinto assim uma faca dentro de mim
sei que estou velha e doente
mas para ver o mundo girar dum modo diferente
Às vezes rogo pragas de os ver assim
sinto assim uma faca dentro de mim
sei que estou velha e doente
mas para ver o mundo girar dum modo diferente
'inda sei gritar, e arreganhar o dente
Estou quase a ir embora, mas deixo aqui
duas palavras pra um filho que perdi
não quero dar-te conselhos
mas s'é o teu próprio irmão que te faz viver de joelhos
doa a quem doer, faz o que tens a fazer
duas palavras pra um filho que perdi
não quero dar-te conselhos
mas s'é o teu próprio irmão que te faz viver de joelhos
doa a quem doer, faz o que tens a fazer
Em seguida,
partimos para Sant’ Antoninho,
música composta por Jean Sommer e letra de José Mário Branco. Uma canção que é
imediatamente reconhecível pelo seu tom sarcástico e, por vezes, cáustico, sendo
uma bela e divertida crítica à crendice alimentada e disseminada pela Igreja Católica.
O disco encerra com Eh! Companheiro,
novamente com letra de Sérgio Godinho e que é um autêntico poema pró-pensamento
livre.
Eh! Companheiro resposta
resposta te quero dar
Só tem medo desses muros
quem tem muros no pensar
todos sabemos do pássaro
cá dentro a qu'rer voar
se o pensamento for livre
todos vamos libertar
Pós-revolução de Abril, José
Mário Branco editou A MÃE, em 1978. Uma
versão musicada da peça de Bertolt Brecht. Já mais tarde, na década de 80, é
editado SER SOLIDÁRIO, em 1982, que
abre com o melancólico tema Travessia no Deserto. Uma canção comovente e inspirada num poema de Sophia de Mello
Breyner. A canção segue um trilho aparentemente convencional até se quebrar num
rock n roll nitidamente dos anos 70. Há também espaço para uns passinhos de
dança em Vá, Vá que se veste de uma
roupagem algo boémia e que caracteriza a vida nos cafés em Paris dos ditos
intelectuais de esquerda ou simplesmente pessoas bem formadas.
A dança dá lugar ao fado. Há
dois incluídos no disco. O primeiro é o fado da tristeza com a colaboração de
Manuela de Freitas na letra.
Deixa a tristeza sair
Pois só se aprende a sorrir
Com a verdade na boca
Não cantes a alegrias a fingir
Se alguma dor existir
A roer dentro da toca
Se alguma dor existir
A roer dentro da toca
Deixa a tristeza sair
Pois só se aprende a sorrir
Com a verdade na boca
O segundo fado é um pouco mais
corridinho e matreiro, intitula-se Fado Penélope. No entanto, é também ele
melancólico.
Passei por tantas portas já fechadas
Com a dor de me perder pelo caminho
A solidão germina nas mãos dadas
Que dão a liberdade ao passarinho
Que dão a liberdade ao passarinho
E enquanto o meu amor anda em viagem
Fazendo a guerra santa ao desespero
Eu encho o meu vazio de coragem
Fazendo e desfazendo o que não quero
Fazendo e desfazendo o que não quero
Com a dor de me perder pelo caminho
A solidão germina nas mãos dadas
Que dão a liberdade ao passarinho
Que dão a liberdade ao passarinho
E enquanto o meu amor anda em viagem
Fazendo a guerra santa ao desespero
Eu encho o meu vazio de coragem
Fazendo e desfazendo o que não quero
Fazendo e desfazendo o que não quero
Como a maior parte dos fados, descreve de forma autêntica o
sentimento de ausência e o conceito de saudade, palavra que não tem tradução em
qualquer língua. Uma palavra verdadeiramente portuguesa.
O ritmo acelera e torna-se
mais folião em Qual é a tua, Ó meu. Uma
bem-humorada canção que acentua a resistência do povo face a ditadores e políticos
troca-tintas e basicamente corruptos. Um hino que continuará sempre actual e
com referências interessantes a bairros icónicos lisboetas.
Uma das canções mais
disseminadas nas rádios foi Eu vim de Longe, Eu vou para Longe, com letra e composição de José Mário Branco.
Tinha um grande amor
Marcado pela dor
E quando a espingarda se virou
Foi para esta força que apontou
Mas o ponto alto atinge-se em Inquietação. Passando pelos óculos e
maneirismos únicos de Fernando Pessoa que afirma no seu Livro do desassossego
que
Uma inquietação enorme fazia-me estremecer os gestos
mínimos. Tive receio
de endoidecer, não de loucura, mas de ali mesmo. O meu corpo era um grito
latente. O meu coração batia como se falasse.
de endoidecer, não de loucura, mas de ali mesmo. O meu corpo era um grito
latente. O meu coração batia como se falasse.
Essa mesma inquietação tão
portuguesa, de alguma forma saudosista é transposta para melodia. José Mário
Branco musica os arremessos furiosos mas ao mesmo tempo passivos da alma
portuguesa.
A contas com o bem que tu me fazes
A contas com o mal por que passei
Com tantas guerras que travei
Já não sei fazer as pazes
São flores aos milhões entre ruínas
Meu peito feito campo de batalha
Cada alvorada que me ensinas
Oiro em pó que o vento espalha
Cá dentro inquietação, inquietação
É só inquietação, inquietação
Porquê, não sei
Porquê, não sei
Porquê, não sei ainda
Há sempre um romantismo
latente. Essa inquietação tão portuguesa.
O ritmo torna-se algo funky e
experimental em Linda Olinda. É uma
música dedicada à actriz Olinda Maria ou Cucha Carvalheiro. Passamos para um
registo mais introspectivo e confessional em Treze anos, Nove meses, em que José Mário Branco musica o seu
casamento. A sua experiência amorosa. Os seus sucessos e falhanços.
Em Sopram Ventos Adversos, música que foi feita em versão pelos The
Walkabouts (Hard Winds Blowing) é musicado um poema de Manuela de Freitas.
Sopram ventos adversos
Junto à praia que se quis
E há sentimentos dispersos
Que são barcos submersos
No mar do que se não diz
Nos mastros que vão quebrar
Soltas velas de cambraia
E é cada remo a tentar
Menos um barco no mar
Mais um cadáver na praia
O dia nunca alcançado morre em todas as marés
E é sempre dia acabado
Junto ao sargaço espalhado de tudo o que se não fez
O sentimentalismo dá lugar à
militância em Eu vi este Povo a Lutar
que inicia com uma guitarra folk corrida e destemida. Um tema épico que é rico
liricamente e melodicamente. Um verdadeiro hino de resistência do povo. O disco
encerra com a balada Ser Solidário.
Acompanhada com um acordeão algo melancólico. José Mário Branco discorre a
letra até que a melodia se transfigura e entra-se numa viagem ou odisseia de
traços psicadélicos.
A este disco, seguiu-se NOITE, editado em 1985 que arranca com
o tema algo popular e festivaleiro, Cá vai Caneças. Segue-se Tiro-no-liro
com uma letra inteligente e mordaz.
Quem dá o tiro no liro
Vai prò chilindró
Quem dá o tiro no ló
Anda de pó-pó
Lá em cima está o tiro-liro-liro
Cá em baixo o tiro-liro-ló
Em Camões e a tença, com a
letra de Sophia de Mello Breyner, ouvimos um autêntico hino elegante mas
cáustico de Portugal. O
disco encerra com o extenso tema que dá nome ao disco: Noite, divido em quatro partes e conta com poemas de José Mário
Branco e Antero de Quental.
É já nos anos dois mil que
assina RESISTIR É VENCER, em 2004. É
um disco maduro que reúne dezasseis temas e conta com colaborações de Fausto e
Sérgio Godinho. As letras continuam contestatárias na sua génese mas bastante
mais ponderadas e menos efusivas do que dos registos anteriores. No entanto, a
mensagem continua viva e de boa saúde.
2
- Peregrinação Sonora
Fausto nasce em 1948 e estreia-se em 1970 com o LP FAUSTO. Um disco que acolhe doze temas
ainda sem o cunho interventivo que marcará os seus trabalhos futuros. Os temas
são dotados de uma boa dose de pop barroco aliados a letras emotivas e um pouco
sentimentais. Apesar de seguir um esquema tradicional de composição de canção
com algumas influências do que se fazia pela América, há algum espaço para a
experimentação em vários temas, um deles é África.
Passados quatro anos, lança um
dos seus discos mais marcantes PRÓ QUE DER E VIER, que conta com as colaborações de Adriano Correia de Oliveira e José
Afonso. O disco principia com Daqui desta Lisboa com uma letra de Alexandre O’Neill. Alcançamos o verdadeiro
coração do disco em Não canto porque Sonho,
um poema de Eugénio de Andrade musicado e interpretado por Fausto e José
Afonso.
Canto porque o amor apetece.
Porque o feno amadurece
nos teus braços deslumbrados.
Porque o meu corpo estremece
ao vê-los nus e suados.
Um poema belo a que se faz a
merecida justiça tanto na melodia quanto na interpretação. A toada muda no tema
seguinte, Venha cá Senhor burguês,
uma crítica e sátira a uma classe social alta imersa em frivolidades e jogos de
vista. É uma inteligente critica social. Da crítica passamos para um autêntico
manifesto no tema que dá nome ao disco. Um tema que se destaca pelo seu
carácter interventivo e consciente que conta com arranjos fantásticos. Há
novamente espaço para a crítica social em O Patrão e Nós com uma letra bastante directa e que faz uso de palavrões mas
que inseridos de forma elegante ilustra uma canção que incita à acção directa
do povo. O disco encerra com um carácter colorido com o tema A Flóber, cuja letra foi escrita por
António Pedro Braga e Mário Henrique Leiria. É notório o timbre surrealista da
letra, não fosse ela da autoria de Mário Henrique Leiria, um dos escritores
mais marcantes do movimento surrealista português que em 1973 e 1974 escreveu
dois livros fantásticos de contos: Contos do Gin Tonic e Novos Contos do Gin.
Livros que valem a pena recordar, reler ou ler pela primeira vez.
1982, Capa de José Brandão
É em 1982 que edita, o que para muitos foi e é ainda hoje considerado
uma obra-prima, POR ESTE RIO ACIMA,
um disco inspirado em Peregrinação, os diários de viagem de Fernão Mendes
Pinto.
Ao longo dos dezasseis
temas que compõem o disco, somos transportados de porto em porto,
navegando ao longo do som tradicional português, mesclado com influências
orientais nalguns temas e sempre na corrente de um folk progressivo e livre que
se queda no sentimento como em Porque não me Vês ou numa atmosfera mais festiva como A Guerra é a Guerra.
Recebemos sopros de música
tradicional portuguesa em De um miserável Naufrágio que Passamos. Corridinhos e viras são alinhados com uma
sempre desenvolta e criativa secção de cordas. É um disco que garantiu a
emancipação da música popular portuguesa e que a afastou das influências
anglo-saxónicas. Persiste a elegância do folk progressivo acompanhados dos sons
tradicionais de Portugal. Fausto editou mais discos ao longo dos anos e em 1999
com Atrás dos Tempos vêm Tempos
lança-se uma compilação que reúne os seus temas mais marcantes que compôs ao
longo dos tempos, assim como três temas originais. Apesar de se ter intitulado
como cantor maldito, Fausto agiu como um verdadeiro cantautor revolucionário
que contribuiu enormemente para o desenvolvimento da música popular portuguesa
tanto a nível de composição quanto liricamente.
3
- Resistência Popular
José Afonso ou Zeca Afonso nasceu em 1929 em Aveiro. Estreou-se em 1964 com o disco BALADAS E CANÇÕES que reúne um conjunto de fados inspirados e que são tornados ainda mais interessantes pela voz única de Zeca Afonso e os fantásticos dedilhares de guitarra. Em Balada Aleixo, a letra foi escrita em conjunto com António Aleixo - o poeta do povo. Quando chegamos ao tema Trovas Antigas - e atentamos no trabalho das cordas - reparamos que não se trata de mais um disco de fado, mas o primeiro trabalho de um cantautor que mais tarde irá editar outros trabalhos que se tornarão icónicos. Passados sensivelmente quatro anos, edita CANTARES DO ANDARILHO, formado por doze canções de elevado sentido popular e raízes tradicionais. Algumas são compostas inteiramente por Zeca Afonso e outras retiradas do enorme reportório de música tradicional portuguesa.
No ano seguinte, lança CONTOS VELHOS, RUMOS NOVOS. Um disco essencialmente narrativo e que volta a pegar em Portugal pelas suas raízes, sendo que a maior parte dos temas são cantigas populares interpretadas por José Afonso.
José Afonso ou Zeca Afonso nasceu em 1929 em Aveiro. Estreou-se em 1964 com o disco BALADAS E CANÇÕES que reúne um conjunto de fados inspirados e que são tornados ainda mais interessantes pela voz única de Zeca Afonso e os fantásticos dedilhares de guitarra. Em Balada Aleixo, a letra foi escrita em conjunto com António Aleixo - o poeta do povo. Quando chegamos ao tema Trovas Antigas - e atentamos no trabalho das cordas - reparamos que não se trata de mais um disco de fado, mas o primeiro trabalho de um cantautor que mais tarde irá editar outros trabalhos que se tornarão icónicos. Passados sensivelmente quatro anos, edita CANTARES DO ANDARILHO, formado por doze canções de elevado sentido popular e raízes tradicionais. Algumas são compostas inteiramente por Zeca Afonso e outras retiradas do enorme reportório de música tradicional portuguesa.
Capa de Fernando Aroso e José Santa-Bárbara
No ano seguinte, lança CONTOS VELHOS, RUMOS NOVOS. Um disco essencialmente narrativo e que volta a pegar em Portugal pelas suas raízes, sendo que a maior parte dos temas são cantigas populares interpretadas por José Afonso.
Foi em 1970 que edita um dos
discos mais importantes da música interventiva. TRAZ OUTRO AMIGO TAMBÉM abre com uma balada do mesmo nome do disco
e que revela mais uma vez o timbre distinto do cantautor. É uma música de
fraternidade universal que entrou e fincou pé no imaginário cancioneiro
português. Maria Faia é mais uma música popular recuperada por Zeca Afonso.
Canto Moço
é um tema jovial mas que contém uma letra interessante da autoria de Zeca
Afonso. Precede o tema Epígrafe para a arte de furtar, um poema fortíssimo de
Jorge de Sena musicado por Zeca Afonso.
Roubam-me Deus
Outros o Diabo
Quem cantarei?
Roubam-me a pátria e a humanidade
Há espaço para mais um poema
de Luís de Camões musicado em Verdes são os Campos. É um disco que antecede o emblemático CANTIGAS DO MAIO, editado em 1971 por Zeca Afonso que vivia exilado
em França. Existe em Cantar Alentejano
uma homenagem a Catarina Eufémia, uma camponesa assassinada pela GNR durante
uma greve em Beja, no Alentejo. Uma mulher que se tornou um ícone da
resistência popular.
Quem viu correr Catarina
Não perdoa quem matou
Quem viu morrer Catarina
Não perdoa a quem matou
A este cantar, segue-se o tema
Grândola, Vila Morena. Uma canção
que para além de ser política, tornou-se um hino da resistência popular e um
símbolo da revolução de Abril. Mulher da Erva é talvez um dos temas
mais interessantes melodicamente, usa uma estrutura composicional algo
inusitada com teclas a marcar os espaços e a voz de Zeca Afonso num outro
registo de timbre e voz. É a música que antecede o tema Coro da Primavera, canção de cariz universal que sublinha a
esperança e a vitória sobre a tirania deste mundo.
Cobre-te canalha
na mortalha
Hoje o rei vai nu.
Os velhos tiranos
de há mil anos
morrem como tu
É mais uma música de resistência popular e que prenuncia a queda do
regime fascista.
Em 1972, lança EU VOU SER COMO A TOUPEIRA que abre com o tema A Morte saiu à Rua, letra que mais parece uma ode e que foi escrita em homenagem a José Dias Coelho, pintor assassinado pela PIDE. Sete Fadas me Fadaram é um tema interessante com letra de António Quadros e cujos interlúdios algo experimentais, enriquecem um tema de cariz altamente popular.
Em 1972, lança EU VOU SER COMO A TOUPEIRA que abre com o tema A Morte saiu à Rua, letra que mais parece uma ode e que foi escrita em homenagem a José Dias Coelho, pintor assassinado pela PIDE. Sete Fadas me Fadaram é um tema interessante com letra de António Quadros e cujos interlúdios algo experimentais, enriquecem um tema de cariz altamente popular.
Em O Avô Cavernoso, temos um
retrato tingido por algum surrealismo de um ditador e da sua queda
(literalmente). Letra escrita por Sérgio Godinho e que com alguns traços
irónicos pinta o retrato de um ditador, um avô cavernoso.
O avô cavernoso
Instituiu a chuva
Ratificou a demora
Persignou-se
Ninguém o chora agora
Passado um
ano, é editado VENHAM MAIS CINCO,
poucos meses antes da Revolução de Abril. Começa com o tema algo surrealista, Rio largo de Profundis que precede Era um redondo vocábulo, tema de
melodia terna e letra que também complementa essa ternura, apesar de ter sido
uma letra que escreveu enquanto esteve preso em Caxias. A ambiência muda
para algo mais colorido e divertido em Nefretite não tinha Papeira. Uma letra bastante surreal que enriquece com a
diversidade dos arranjos e da percussão. É com regozijo que recebemos o tema
que dá nome ao disco. Uma música que ficará impressa para sempre no imaginário
da música portuguesa e cuja letra abre de forma simplicista mas inteligente para
a menção da morte de um ditador. O definhar e extinção da tirania.
Venham mais cinco,
duma assentada que eu pago já
Do branco ou tinto,
se o velho estica eu fico por cá
O tema é divertido na sua melodia e alude à vitória da justiça e
esperança sobre possíveis e futuros ditadores. Esse espírito de resistência
continua em A formiga no Carreiro,
mais uma alegoria sobre a importância de indivíduos contracorrente que estimulados por pensamentos
próprio e individual, ousam caminhar em sentido contrário do carreiro,
do pensamento uniformizado e conformado das massas.
Seguimos depois por um carreiro, este já mais sentimental e romântico
com Que Amor não me Engana, cuja
melodia delicada dá voz a um belo poema cantado por Zeca Afonso.
Vem devagarinho
Para a minha beira
Em novas coutadas
Junta de uma hera
Nascem flores vermelhas
Pela Primavera
Assim tu souberas
Irma cotovia
Dizer-me se esperas
Pelo nascer do dia
Em Paz Poeta e Pombas, temos uma
música animada e recheada de influências do mundo, mas que comporta uma letra
sobre a paz e o seu carácter deambulatório. Esta toada é continuada nas últimas
duas músicas do disco, Se voaras mais Perto
que conta apenas com vozes e percussões e Gastão era Perfeito.
É um disco extremamente rico em termos de composição e poética que enriqueceu sobremaneira o espectro da música popular portuguesa. Zeca Afonso continuou a editar discos pela década de oitenta, até falecer em 1987. Deixando-nos ainda o tema Vampiros, um alerta e denúncia dos que sugam, destroem e tentam aniquilar o espírito livre. Para este grupo não valem os crucifixos, cabeças de alho ou água benta, mas sim o sentimento de resistência e a poesia escrita ou cantada porque a cantiga foi e será sempre uma arma.
É um disco extremamente rico em termos de composição e poética que enriqueceu sobremaneira o espectro da música popular portuguesa. Zeca Afonso continuou a editar discos pela década de oitenta, até falecer em 1987. Deixando-nos ainda o tema Vampiros, um alerta e denúncia dos que sugam, destroem e tentam aniquilar o espírito livre. Para este grupo não valem os crucifixos, cabeças de alho ou água benta, mas sim o sentimento de resistência e a poesia escrita ou cantada porque a cantiga foi e será sempre uma arma.
4 - A Voz do Povo
Adriano Correia de Oliveira nasceu em 1942 no Porto. Estreou-se em 1964 com o LP homónimo que arranca com a triunfante e melancólica balada Menina dos Olhos Tristes que relata os pesares e dores de uma guerra colonial, centrada numa mulher que espera o seu amado, soldado que partiu para a guerra. A melancolia continua no tema seguinte, Lira, uma canção tradicional dos Açores, interpretada eficazmente por Adriano Correia de Oliveira. Em Erguem-se Muros, sente-se já um presságio de revolta imbuído em linguagem poética.
Adriano Correia de Oliveira nasceu em 1942 no Porto. Estreou-se em 1964 com o LP homónimo que arranca com a triunfante e melancólica balada Menina dos Olhos Tristes que relata os pesares e dores de uma guerra colonial, centrada numa mulher que espera o seu amado, soldado que partiu para a guerra. A melancolia continua no tema seguinte, Lira, uma canção tradicional dos Açores, interpretada eficazmente por Adriano Correia de Oliveira. Em Erguem-se Muros, sente-se já um presságio de revolta imbuído em linguagem poética.
Secos os rios
a noite tem os caminhos fechados
Há que fazer-nos ao mar ou ficaremos cercados
Amor semeia a revolta antes que sequem os rios...
Esta poesia de resistência continua em Trova do Amor Lusíada, letra escrita por Manuel Alegre.
Meu amor é marinheiro
Meu amor mora no mar.
Meu amor disse que eu tinha
Na boca um gosto a saudade
E uns cabelos onde nascem
Os ventos da liberdade.
Abre-se espaço para a saudade e para uma homenagem a Lisboa, cidade das
sete colinas, do rio Tejo, imenso e aberto ao mundo. Cidade soalheira, luminosa
e clara que acolheu no seu ventre, escritores, músicos, pintores e que reinará
para sempre nos imaginários de vários criadores.
Eu canto para ti
um mês onde começa a mágoa
E um coração poisado
sobre a tua ausência
Eu canto um mês com lágrimas
e sol o grave mês
Em que os mortos amados
batem à porta do poema
Porque tu me disseste
quem em dera em Lisboa
Quem me dera me Maio
depois morreste
Com Lisboa tão longe ó meu irmão tão breve
Que nunca mais acenderás no meu o teu cigarro
Em Trova do Vento que Passa, uma das músicas mais célebres do cantor,
reafirma o espírito de resistência.
Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.
Foi após o 25 de Abril que gravou e editou QUE NUNCA MAIS com colaborações preciosas do exímio músico de
guitarra portuguesa, Carlos Paredes. É com esta colaboração preciosa que se
inicia o disco. Em Tejo que levas as Águas,
permanece uma súplica em poema para que o Tejo lave Lisboa e por consequência,
o país, das injustiças, crueldades e opressão infligidas pelo regime fascista.
Leva nas águas
as grades de aço
e silêncio forjadas
deixa soltar-se a verdade das bocas amordaçadas
Lava bancos e empresas dos comedores de dinheiro
que dos salários de tristeza arrecadam lucro inteiro
Na
música que se segue, O senhor Gerente,
nota-se a influência de Fausto que produziu o disco e que tratou dos arranjos e
direcção musical do tema.
Eis então a causa assente
De fingir-se sempre ausente
Dos roubos da nossa gente
Mas ouça, senhor gerente
Se mantém a causa assente
De fingir-se sempre ausente
Que fará então a gente?
Já que não consente
Vai ficar assente
Passa a ser a gente
O novo gerente
O tema
que se segue, As Balas, trata-se de
um poema de Manuel Da Fonseca, musicado por Adriano. Um poema que vale a pena
reler ou ler pela primeira vez. É um poema tocado por uma grande sensibilidade
popular mas escrita com o léxico desenvolto do escritor.
Em Dona Abastança, as colaborações partem de Vitorino e Júlio Pereira,
oferecendo uma grande densidade instrumental ao tema. Como em letras
anteriores, também existe uma forte carga de crítica social. O disco encerra
com Pr’á frente. Um hino de
resistência social e de elogio aos trabalhadores.
Já
na década de 80 houve espaço para a edição de CANTIGAS PORTUGUESAS, um disco que reúne canções de cariz
tradicional e que percorrem Portugal de lés a lés.
Adriano Correia de Oliveira exprimiu na
sua voz as angústias e pesares, mas também as esperanças de um povo a quem se
sentiu finalmente a voz colectiva com a revolução de 25 de Abril.
Texto: Cláudia Zafre