Resumo  A música, por v ezes, assume um carácter contestatário e é um agente competente na denúncia de inúmeras injustiças sociais. F...

O 25 de Abril: uma Revolução Cantada e os Poetas de Intervenção (parte 1)


Resumo 
A música, por vezes, assume um carácter contestatário e é um agente competente na denúncia de inúmeras injustiças sociais. Foi durante as décadas de 60 e 70 que Portugal foi assomado por uma vaga de trovadores e cantautores que se insurgiram contra o regime fascista que dominava Portugal e que obrigou muitos músicos talentosos a procurar refúgio noutros países.
Em França foram gravados discos cujas melodias folk e, por vezes, fado, essencialmente portuguesas, revestiram letras de resistência e contestação, muitas vezes com metáforas para escapar ao lápis azul da ditadura. As músicas são elaboradas e de melodias complexas, mas ao mesmo tempo curtas e directas apelando à acção directa do povo.
Finda a revolução, este género adoptou o nome de Canto Livre e um dos seus últimos esforços foi através da canção FMI de José Mário Branco que durante vinte e cinco minutos narra o futuro incerto de um Portugal pós-revolução. O 25 de Abril trouxe cravos e canções que fizeram o povo sonhar para depois agir.

Palavras-chave: contestação, poesia, Abril

1 - Introdução a José Mário Branco 


Foi com letras intensamente poéticas que o multi-instrumentista e compositor José Mário Branco atraiu a atenção dos portugueses e os impeliu à resistência contra uma ditadura fascista iníqua. Em 1971, lançou MUDAM-SE OS TEMPOS, MUDAM-SE AS VONTADES carregado de dez temas com melodias de coração português, mas com alma progressiva e arranjos interessantes. Em QUEIXAS DAS JOVENS ALMAS CENSURADAS encontramos uma balada com bons arranjos e uma boa companhia acústica para o poema poderoso de Natália Correia.

Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente
e um espelho pra pentearmos um macaco
Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça a forma da alma que o procura

É um poema que merece várias leituras. Em Perfilados de Medo é nos facultado um poema de Alexander O’Neil musicado. Um poema soberbo tingido de algum surrealismo que nos incita a lutar, independentemente das dificuldades exteriores que se nos deparam.

Aventureiros já sem aventura
perfilados de medo
combatemos irónicos
fantasmas à procura do que não fomos, do que não seremos  

O disco encerra com o hino que dá nome ao disco. É um tema que tanto pela melodia como pela letra amplifica a esperança de um povo que subvalorizado massacrado e profundamente magoado por uma ditadura fascista se ergue novamente para cantar e para resistir.
Passado praticamente um ano, José Mário Branco lança MARGEM DE CERTA MANEIRA em 1973, gravado em França. O tema que arranca o disco chamado Por terras de França é uma canção que exprime algum desagrado por parte de um exilado que foi forçado a deixar o seu país. No tema que se segue, Engrenagem, encontramos uma mistura inusitada de música tradicional portuguesa com bastante psicadelismo, consequentemente, melodicamente é supra-interessante. E em Cantiga da Velha Mãe, deparamo-nos com uma letra ou diria mesmo, poema de Sérgio Godinho.

Às vezes rogo pragas de os ver assim
sinto assim uma faca dentro de mim
sei que estou velha e doente
mas para ver o mundo girar dum modo diferente
'inda sei gritar, e arreganhar o dente

Estou quase a ir embora, mas deixo aqui
duas palavras pra um filho que perdi
não quero dar-te conselhos
mas s'é o teu próprio irmão que te faz viver de joelhos
doa a quem doer, faz o que tens a fazer

Em seguida, partimos para Sant’ Antoninho, música composta por Jean Sommer e letra de José Mário Branco. Uma canção que é imediatamente reconhecível pelo seu tom sarcástico e, por vezes, cáustico, sendo uma bela e divertida crítica à crendice alimentada e disseminada pela Igreja Católica. O disco encerra com Eh! Companheiro, novamente com letra de Sérgio Godinho e que é um autêntico poema pró-pensamento livre.

Eh! Companheiro resposta 
resposta te quero dar 
Só tem medo desses muros 
quem tem muros no pensar 
todos sabemos do pássaro 
cá dentro a qu'rer voar 
se o pensamento for livre 
todos vamos libertar


Pós-revolução de Abril, José Mário Branco editou A MÃE, em 1978. Uma versão musicada da peça de Bertolt Brecht. Já mais tarde, na década de 80, é editado SER SOLIDÁRIO, em 1982, que abre com o melancólico tema Travessia no Deserto. Uma canção comovente e inspirada num poema de Sophia de Mello Breyner. A canção segue um trilho aparentemente convencional até se quebrar num rock n roll nitidamente dos anos 70. Há também espaço para uns passinhos de dança em Vá, Vá que se veste de uma roupagem algo boémia e que caracteriza a vida nos cafés em Paris dos ditos intelectuais de esquerda ou simplesmente pessoas bem formadas.
A dança dá lugar ao fado. Há dois incluídos no disco. O primeiro é o fado da tristeza com a colaboração de Manuela de Freitas na letra.
Não cantes a alegrias a fingir
Se alguma dor existir
A roer dentro da toca

Deixa a tristeza sair
Pois só se aprende a sorrir
Com a verdade na boca

O segundo fado é um pouco mais corridinho e matreiro, intitula-se Fado Penélope. No entanto, é também ele melancólico.

Passei por tantas portas já fechadas
Com a dor de me perder pelo caminho
A solidão germina nas mãos dadas
Que dão a liberdade ao passarinho 
Que dão a liberdade ao passarinho
E enquanto o meu amor anda em viagem
Fazendo a guerra santa ao desespero
Eu encho o meu vazio de coragem
Fazendo e desfazendo o que não quero 
Fazendo e desfazendo o que não quero

Como a maior parte dos fados, descreve de forma autêntica o sentimento de ausência e o conceito de saudade, palavra que não tem tradução em qualquer língua. Uma palavra verdadeiramente portuguesa.
O ritmo acelera e torna-se mais folião em Qual é a tua, Ó meu. Uma bem-humorada canção que acentua a resistência do povo face a ditadores e políticos troca-tintas e basicamente corruptos. Um hino que continuará sempre actual e com referências interessantes a bairros icónicos lisboetas.
Uma das canções mais disseminadas nas rádios foi Eu vim de Longe, Eu vou para Longe, com letra e composição de José Mário Branco.

Tinha um grande amor
Marcado pela dor
E quando a espingarda se virou
Foi para esta força que apontou

Mas o ponto alto atinge-se em Inquietação. Passando pelos óculos e maneirismos únicos de Fernando Pessoa que afirma no seu Livro do desassossego que

Uma inquietação enorme fazia-me estremecer os gestos mínimos. Tive receio
de endoidecer, não de loucura, mas de ali mesmo. O meu corpo era um grito
latente. O meu coração batia como se falasse.

Essa mesma inquietação tão portuguesa, de alguma forma saudosista é transposta para melodia. José Mário Branco musica os arremessos furiosos mas ao mesmo tempo passivos da alma portuguesa.

A contas com o bem que tu me fazes 
A contas com o mal por que passei 
Com tantas guerras que travei 
Já não sei fazer as pazes 
São flores aos milhões entre ruínas 
Meu peito feito campo de batalha 
Cada alvorada que me ensinas 
Oiro em pó que o vento espalha 
Cá dentro inquietação, inquietação 
É só inquietação, inquietação 
Porquê, não sei 
Porquê, não sei 
Porquê, não sei ainda


Há sempre um romantismo latente. Essa inquietação tão portuguesa.
O ritmo torna-se algo funky e experimental em Linda Olinda. É uma música dedicada à actriz Olinda Maria ou Cucha Carvalheiro. Passamos para um registo mais introspectivo e confessional em Treze anos, Nove meses, em que José Mário Branco musica o seu casamento. A sua experiência amorosa. Os seus sucessos e falhanços.
Em Sopram Ventos Adversos, música que foi feita em versão pelos The Walkabouts (Hard Winds Blowing) é musicado um poema de Manuela de Freitas.

Sopram ventos adversos
Junto à praia que se quis
E há sentimentos dispersos
Que são barcos submersos 
No mar do que se não diz 
Nos mastros que vão quebrar 
Soltas velas de cambraia 
E é cada remo a tentar 
Menos um barco no mar 
Mais um cadáver na praia 
O dia nunca alcançado morre em todas as marés 
E é sempre dia acabado 
Junto ao sargaço espalhado de tudo o que se não fez

O sentimentalismo dá lugar à militância em Eu vi este Povo a Lutar que inicia com uma guitarra folk corrida e destemida. Um tema épico que é rico liricamente e melodicamente. Um verdadeiro hino de resistência do povo. O disco encerra com a balada Ser Solidário. Acompanhada com um acordeão algo melancólico. José Mário Branco discorre a letra até que a melodia se transfigura e entra-se numa viagem ou odisseia de traços psicadélicos.
A este disco, seguiu-se NOITE, editado em 1985 que arranca com o tema algo popular e festivaleiro, Cá vai Caneças. Segue-se Tiro-no-liro com uma letra inteligente e mordaz.

Quem dá o tiro no liro 
Vai prò chilindró 
Quem dá o tiro no ló 
Anda de pó-pó 
Lá em cima está o tiro-liro-liro 
Cá em baixo o tiro-liro-ló


Em Camões e a tença, com a letra de Sophia de Mello Breyner, ouvimos um autêntico hino elegante mas cáustico de Portugal. O disco encerra com o extenso tema que dá nome ao disco: Noite, divido em quatro partes e conta com poemas de José Mário Branco e Antero de Quental.
É já nos anos dois mil que assina RESISTIR É VENCER, em 2004. É um disco maduro que reúne dezasseis temas e conta com colaborações de Fausto e Sérgio Godinho. As letras continuam contestatárias na sua génese mas bastante mais ponderadas e menos efusivas do que dos registos anteriores. No entanto, a mensagem continua viva e de boa saúde.

2 - Peregrinação Sonora


Fausto nasce em 1948 e estreia-se em 1970 com o LP FAUSTO. Um disco que acolhe doze temas ainda sem o cunho interventivo que marcará os seus trabalhos futuros. Os temas são dotados de uma boa dose de pop barroco aliados a letras emotivas e um pouco sentimentais. Apesar de seguir um esquema tradicional de composição de canção com algumas influências do que se fazia pela América, há algum espaço para a experimentação em vários temas, um deles é África.


Passados quatro anos, lança um dos seus discos mais marcantes PRÓ QUE DER E VIER, que conta com as colaborações de Adriano Correia de Oliveira e José Afonso. O disco principia com Daqui desta Lisboa com uma letra de Alexandre O’Neill. Alcançamos o verdadeiro coração do disco em Não canto porque Sonho, um poema de Eugénio de Andrade musicado e interpretado por Fausto e José Afonso.

Canto porque o amor apetece.
Porque o feno amadurece
nos teus braços deslumbrados. 
Porque o meu corpo estremece 
ao vê-los nus e suados.

Um poema belo a que se faz a merecida justiça tanto na melodia quanto na interpretação. A toada muda no tema seguinte, Venha cá Senhor burguês, uma crítica e sátira a uma classe social alta imersa em frivolidades e jogos de vista. É uma inteligente critica social. Da crítica passamos para um autêntico manifesto no tema que dá nome ao disco. Um tema que se destaca pelo seu carácter interventivo e consciente que conta com arranjos fantásticos. Há novamente espaço para a crítica social em O Patrão e Nós com uma letra bastante directa e que faz uso de palavrões mas que inseridos de forma elegante ilustra uma canção que incita à acção directa do povo. O disco encerra com um carácter colorido com o tema A Flóber, cuja letra foi escrita por António Pedro Braga e Mário Henrique Leiria. É notório o timbre surrealista da letra, não fosse ela da autoria de Mário Henrique Leiria, um dos escritores mais marcantes do movimento surrealista português que em 1973 e 1974 escreveu dois livros fantásticos de contos: Contos do Gin Tonic e Novos Contos do Gin. Livros que valem a pena recordar, reler ou ler pela primeira vez.

1982, Capa de José Brandão

É em 1982 que edita, o que para muitos foi e é ainda hoje considerado uma obra-prima, POR ESTE RIO ACIMA, um disco inspirado em Peregrinação, os diários de viagem de Fernão Mendes Pinto. Ao longo dos dezasseis temas que compõem o disco, somos transportados de porto em porto, navegando ao longo do som tradicional português, mesclado com influências orientais nalguns temas e sempre na corrente de um folk progressivo e livre que se queda no sentimento como em Porque não me Vês ou numa atmosfera mais festiva como A Guerra é a Guerra.
Recebemos sopros de música tradicional portuguesa em De um miserável Naufrágio que Passamos. Corridinhos e viras são alinhados com uma sempre desenvolta e criativa secção de cordas. É um disco que garantiu a emancipação da música popular portuguesa e que a afastou das influências anglo-saxónicas. Persiste a elegância do folk progressivo acompanhados dos sons tradicionais de Portugal. Fausto editou mais discos ao longo dos anos e em 1999 com Atrás dos Tempos vêm Tempos lança-se uma compilação que reúne os seus temas mais marcantes que compôs ao longo dos tempos, assim como três temas originais. Apesar de se ter intitulado como cantor maldito, Fausto agiu como um verdadeiro cantautor revolucionário que contribuiu enormemente para o desenvolvimento da música popular portuguesa tanto a nível de composição quanto liricamente.


3 - Resistência Popular


José Afonso ou Zeca Afonso nasceu em 1929 em Aveiro. Estreou-se em 1964 com o disco BALADAS E CANÇÕES que reúne um conjunto de fados inspirados e que são tornados ainda mais interessantes pela voz única de Zeca Afonso e os fantásticos dedilhares de guitarra. Em Balada Aleixo, a letra foi escrita em conjunto com António Aleixo - o poeta do povo. Quando chegamos ao tema Trovas Antigas - e atentamos no trabalho das cordas - reparamos que não se trata de mais um disco de fado, mas o primeiro trabalho de um cantautor que mais tarde irá editar outros trabalhos que se tornarão icónicos. Passados sensivelmente quatro anos, edita CANTARES DO ANDARILHO, formado por doze canções de elevado sentido popular e raízes tradicionais. Algumas são compostas inteiramente por Zeca Afonso e outras retiradas do enorme reportório de música tradicional portuguesa.

Capa de Fernando Aroso e José Santa-Bárbara

No ano seguinte, lança CONTOS VELHOS, RUMOS NOVOS. Um disco essencialmente narrativo e que volta a pegar em Portugal pelas suas raízes, sendo que a maior parte dos temas são cantigas populares interpretadas por José Afonso.
Foi em 1970 que edita um dos discos mais importantes da música interventiva. TRAZ OUTRO AMIGO TAMBÉM abre com uma balada do mesmo nome do disco e que revela mais uma vez o timbre distinto do cantautor. É uma música de fraternidade universal que entrou e fincou pé no imaginário cancioneiro português. Maria Faia é mais uma música popular recuperada por Zeca Afonso.

Canto Moço é um tema jovial mas que contém uma letra interessante da autoria de Zeca Afonso. Precede o tema Epígrafe para a arte de furtar, um poema fortíssimo de Jorge de Sena musicado por Zeca Afonso.
Roubam-me Deus
Outros o Diabo
Quem cantarei?
Roubam-me a pátria e a humanidade
Há espaço para mais um poema de Luís de Camões musicado em Verdes são os Campos. É um disco que antecede o emblemático CANTIGAS DO MAIO, editado em 1971 por Zeca Afonso que vivia exilado em França. Existe em Cantar Alentejano uma homenagem a Catarina Eufémia, uma camponesa assassinada pela GNR durante uma greve em Beja, no Alentejo. Uma mulher que se tornou um ícone da resistência popular.
Quem viu correr Catarina
Não perdoa quem matou
Quem viu morrer Catarina 
Não perdoa a quem matou

A este cantar, segue-se o tema Grândola, Vila Morena. Uma canção que para além de ser política, tornou-se um hino da resistência popular e um símbolo da revolução de Abril. Mulher da Erva é talvez um dos temas mais interessantes melodicamente, usa uma estrutura composicional algo inusitada com teclas a marcar os espaços e a voz de Zeca Afonso num outro registo de timbre e voz. É a música que antecede o tema Coro da Primavera, canção de cariz universal que sublinha a esperança e a vitória sobre a tirania deste mundo.
Cobre-te canalha
na mortalha 
Hoje o rei vai nu. 
Os velhos tiranos 
de há mil anos 
morrem como tu


É mais uma música de resistência popular e que prenuncia a queda do regime fascista.
Em 1972, lança EU VOU SER COMO A TOUPEIRA que abre com o tema A Morte saiu à Rua, letra que mais parece uma ode e que foi escrita em homenagem a José Dias Coelho, pintor assassinado pela PIDE. Sete Fadas me Fadaram é um tema interessante com letra de António Quadros e cujos interlúdios algo experimentais, enriquecem um tema de cariz altamente popular.
Em Avô Cavernoso, temos um retrato tingido por algum surrealismo de um ditador e da sua queda (literalmente). Letra escrita por Sérgio Godinho e que com alguns traços irónicos pinta o retrato de um ditador, um avô cavernoso.

O avô cavernoso
Instituiu a chuva 
Ratificou a demora 
Persignou-se 
Ninguém o chora agora

Passado um ano, é editado VENHAM MAIS CINCO, poucos meses antes da Revolução de Abril. Começa com o tema algo surrealista, Rio largo de Profundis que precede Era um redondo vocábulo, tema de melodia terna e letra que também complementa essa ternura, apesar de ter sido uma letra que escreveu enquanto esteve preso em Caxias.  A ambiência muda para algo mais colorido e divertido em Nefretite não tinha Papeira. Uma letra bastante surreal que enriquece com a diversidade dos arranjos e da percussão. É com regozijo que recebemos o tema que dá nome ao disco. Uma música que ficará impressa para sempre no imaginário da música portuguesa e cuja letra abre de forma simplicista mas inteligente para a menção da morte de um ditador. O definhar e extinção da tirania.

Venham mais cinco, 
duma assentada que eu pago já 
Do branco ou tinto, 
se o velho estica eu fico por cá

O tema é divertido na sua melodia e alude à vitória da justiça e esperança sobre possíveis e futuros ditadores. Esse espírito de resistência continua em A formiga no Carreiro, mais uma alegoria sobre a importância de indivíduos contracorrente que estimulados por pensamentos próprio e individual, ousam caminhar em sentido contrário do carreiro, do pensamento uniformizado e conformado das massas.
Seguimos depois por um carreiro, este já mais sentimental e romântico com Que Amor não me Engana, cuja melodia delicada dá voz a um belo poema cantado por Zeca Afonso.

Vem devagarinho
Para a minha beira
Em novas coutadas
Junta de uma hera 
Nascem flores vermelhas 
Pela Primavera 
Assim tu souberas 
Irma cotovia 
Dizer-me se esperas 
Pelo nascer do dia


Em Paz Poeta e Pombas, temos uma música animada e recheada de influências do mundo, mas que comporta uma letra sobre a paz e o seu carácter deambulatório. Esta toada é continuada nas últimas duas músicas do disco, Se voaras mais Perto que conta apenas com vozes e percussões e Gastão era Perfeito.
É um disco extremamente rico em termos de composição e poética que enriqueceu sobremaneira o espectro da música popular portuguesa. Zeca Afonso continuou a editar discos pela década de oitenta, até falecer em 1987. Deixando-nos ainda o tema Vampiros, um alerta e denúncia dos que sugam, destroem e tentam aniquilar o espírito livre. Para este grupo não valem os crucifixos, cabeças de alho ou água benta, mas sim o sentimento de resistência e a poesia escrita ou cantada porque a cantiga foi e será sempre uma arma.


José Mário Branco e Zeca Afonso

4 - A Voz do Povo


Adriano Correia de Oliveira nasceu em 1942 no Porto. Estreou-se em 1964 com o LP homónimo que arranca com a triunfante e melancólica balada Menina dos Olhos Tristes que relata os pesares e dores de uma guerra colonial, centrada numa mulher que espera o seu amado, soldado que partiu para a guerra. A melancolia continua no tema seguinte, Lira, uma canção tradicional dos Açores, interpretada eficazmente por Adriano Correia de Oliveira. Em Erguem-se Muros, sente-se já um presságio de revolta imbuído em linguagem poética. 

Secos os rios 
a noite tem os caminhos fechados 
Há que fazer-nos ao mar ou ficaremos cercados 
Amor semeia a revolta antes que sequem os rios...

Esta poesia de resistência continua em Trova do Amor Lusíada, letra escrita por Manuel Alegre.

Meu amor é marinheiro 
Meu amor mora no mar.
Meu amor disse que eu tinha
Na boca um gosto a saudade
E uns cabelos onde nascem
Os ventos da liberdade.

Abre-se espaço para a saudade e para uma homenagem a Lisboa, cidade das sete colinas, do rio Tejo, imenso e aberto ao mundo. Cidade soalheira, luminosa e clara que acolheu no seu ventre, escritores, músicos, pintores e que reinará para sempre nos imaginários de vários criadores.

Eu canto para ti
um mês onde começa a mágoa
E um coração poisado
sobre a tua ausência
Eu canto um mês com lágrimas 
e sol o grave mês 
Em que os mortos amados 
batem à porta do poema 
Porque tu me disseste
quem em dera em Lisboa
Quem me dera me Maio
depois morreste
Com Lisboa tão longe ó meu irmão tão breve
Que nunca mais acenderás no meu o teu cigarro

Em Trova do Vento que Passa, uma das músicas mais célebres do cantor, reafirma o espírito de resistência.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste 
há sempre alguém que diz não.


Foi após o 25 de Abril que gravou e editou QUE NUNCA MAIS com colaborações preciosas do exímio músico de guitarra portuguesa, Carlos Paredes. É com esta colaboração preciosa que se inicia o disco. Em Tejo que levas as Águas, permanece uma súplica em poema para que o Tejo lave Lisboa e por consequência, o país, das injustiças, crueldades e opressão infligidas pelo regime fascista.

Leva nas águas 
as grades de aço
e silêncio forjadas
deixa soltar-se a verdade das bocas amordaçadas
Lava bancos e empresas dos comedores de dinheiro
que dos salários de tristeza arrecadam lucro inteiro

Na música que se segue, O senhor Gerente, nota-se a influência de Fausto que produziu o disco e que tratou dos arranjos e direcção musical do tema.

Eis então a causa assente
De fingir-se sempre ausente 
Dos roubos da nossa gente 
Mas ouça, senhor gerente 
Se mantém a causa assente 
De fingir-se sempre ausente 
Que fará então a gente? 
Já que não consente 
Vai ficar assente 
Passa a ser a gente 
O novo gerente

O tema que se segue, As Balas, trata-se de um poema de Manuel Da Fonseca, musicado por Adriano. Um poema que vale a pena reler ou ler pela primeira vez. É um poema tocado por uma grande sensibilidade popular mas escrita com o léxico desenvolto do escritor.
Em Dona Abastança, as colaborações partem de Vitorino e Júlio Pereira, oferecendo uma grande densidade instrumental ao tema. Como em letras anteriores, também existe uma forte carga de crítica social. O disco encerra com Pr’á frente. Um hino de resistência social e de elogio aos trabalhadores.
Já na década de 80 houve espaço para a edição de CANTIGAS PORTUGUESAS, um disco que reúne canções de cariz tradicional e que percorrem Portugal de lés a lés.
Adriano Correia de Oliveira exprimiu na sua voz as angústias e pesares, mas também as esperanças de um povo a quem se sentiu finalmente a voz colectiva com a revolução de 25 de Abril.

Texto: Cláudia Zafre