Vieira da Silva nasceu em 1946 em Ílhavo, Aveiro. Em 1969 editou o EP, CANÇÃO PARA UM POVO TRISTE que abriga quatro temas. Abre com o fado de cariz progressivo que dá nome ao disco. A letra é directa e apesar de ser interpretada com fluxos poéticos, dá-se espaço para a contestação e para uma melódica revolta.
Olhos cansados
Enxada na mão
Trabalhando a terra
Que lhe vão roubar
Enxada na mão
Trabalhando a terra
Que lhe vão roubar
O tema que encerra o EP, Auto-retrato para a Humanidade, que em versos directos e certeiros, tecem uma crítica a algumas personalidades em quem grassa a hipocrisia, cinismo e alguma covardia.
É em 1971 que edita DO MENINO QUE FOI JOVEM, cujo tema com o mesmo nome, apresenta uma narrativa melancólica.
Os senhores da terra
Viram-no espreitar
Seus olhos de sonhos
Mandaram cegar
Sozinho na rua
Chorou de saudade
Sozinho na rua
Chorou de saudade
Sonhos de menino
Que eram liberdade
Viram-no espreitar
Seus olhos de sonhos
Mandaram cegar
Sozinho na rua
Chorou de saudade
Sozinho na rua
Chorou de saudade
Sonhos de menino
Que eram liberdade
Gravou um tema em 1975, Eles estão aí: os Lobos, que assim como Vampiros de Zeca Afonso, acarreta uma forte dose de consciência social e alerta para os perigos reaccionários que provinham muitas vezes da mentalidade retrógrada e limitadora da Igreja Católica que ajudou a formar muito da mentalidade portuguesa, castrando o pensamento livre e demarcando-se da fé protestante que sempre apostou e fomentou o pensamento próprio e livre.
Luís Cília nasceu em Angola em 1943. Decorrido o ano de 1964, editou Portugal-Angola: chants de lutte. Principia com o tema “O meu País” que foi posteriormente regravado e inserido no disco de 1973 MEU PAÍS. É com uma letra e melodia melancólica que denuncia o medo e opressão que envolviam Portugal, ao mesmo tempo que oferece a sua voz como um veículo de esperança contra a tirania.
O tema que se segue, A Bola, descreve de forma gráfica mas poética as atrocidades que foram cometidas durante a guerra colonial, particularmente em Angola. Esta letra foi talvez inspirada em massacres que terão sido cometidos em Vyriamo no Norte de Moçambique, onde foram tiradas fotos de soldados portugueses a jogar à bola com cabeças de combatentes africanos. Em Resiste, uma bela balada com uma mensagem de resistência e um pedido de promessa para que na mente se guarde sempre o desejo pela liberdade. É no tema Duas melodias que opta por uma letra mais directa e nitidamente contra o regime.
Era sempre a mesma melodia
Salazar e a sua democracia
Com Caetano é a mesma porcaria
As moscas mudam
Só a merda não varia
Salazar e a sua democracia
Com Caetano é a mesma porcaria
As moscas mudam
Só a merda não varia
Em Exílio é musicado um poema de Manuel de Alegre. Este tema foi amplamente divulgado por Adriano Correia de Oliveira visto que os discos de Luís Cília eram proibidos em Portugal pela censura fascista. Este poema reforça o poder das palavras, sejam elas cantadas, escritas ou até faladas quando há nelas um profundo contexto e significado que ousam quebrar correntes de pensamento e movimentos anti-democráticos.
É em Canto do Desertor que se manifesta novamente em jeito de balada contra a guerra e em participar da mesma. Com correntezas poéticas e introspectivas, expressa-se e canta em Sou um Barco, uma das suas canções mais emblemáticas.
É com uma progressão interessante e cativante de acordes que denuncia a segregação racial presente até entre as crianças. Em O menino negro não entrou na Roda é feita uma ilustração poética mas desolada do sentimento racista que dominava muito do espírito colonialista.
O tema que encerra o disco, Canção final, Canção de sempre, é mais um hino da resistência com letra escrita por Manuel Alegre.
A sua devoção à arte poética é evidente, tendo editado já na década de 80, três discos dedicados e três poetas portugueses. Eugénio de Andrade, Jorge de Sena e David Mourão Ferreira. Para além de ter composto “Avante”, tema que se tornou hino oficial do Partido Comunista Português, recuperou também composições musicais portuguesas antigas que reuniu no disco GUERRILHEIRO. São temas populares que grassam entre os séculos XIII até XIX e interpretados com instrumentos da época.
Luís Cília devotou grande parte da sua carreira à música de cariz interventivo mas soube também aproveitar e enriquecer canções antigas portuguesas, demonstrando que a cultura terá sempre força e voz.
7 - O Músico dos Poetas
Reconhecido nacionalmente pela excelente composição e interpretação do poema de Manuel Gedeão, Pedra Filosofal. Manuel Freire nasceu em 1942 em Aveiro. Faz parte do seu repertório várias composições assentes em poemas fortes de vários poetas e escritores portugueses, tais como Mário Dionísio, José Saramago, José Gomes Ferreira, António Gedeão, Manuel Alegre e Reinaldo Ferreira. Este último, poeta e filho do também Reinaldo Ferreira mas mais conhecido por Repórter X, jornalista, cineasta e escritor. Autor de um interessantíssimo livro chamado “O táxi nº9297” que foi feito em filme. Infelizmente, muitos dos seus filmes foram perdidos e como tal impossíveis de restaurar.
Manuel Freire soube musicar os poemas mais expressivos e de índole contestatária que ajudaram a fomentar os sonhos de revolução e da abertura de uma nova mentalidade. Uma que está aberta ao sonho, engenho, criação e assente no terreno fértil da imaginação.
Sérgio Godinho nasce em 1945 no Porto e é em 1971 que se estreia a solo com o disco OS SOBREVIVENTES. O primeiro tema, Que força é Essa, é um autêntico poema musicado com acordes delicados de guitarra, percussão gentil e interlúdios de flauta. A letra reflecte bem a angústia contida e silenciosa de quem abdica dos seus sonhos para ajudar a construir algo que lhe é impessoal e apenas favorece interesses de terceiros.
Que força é essa
que força é essa
que trazes nos braços
Que só te serve para obedecer
que só te manda obedecer?
Que força é essa, amigo
que força é essa, amigo
Que te põe de bem com os outros
e de mal contigo
Que força é essa, amigo
que força é essa, amigo
Há algum tom irónico em alguns dos temas como Que bom que é e O charlatão e o Senhor Marquês. A divertida melodia de O charlatão com cameo musical de um kazoo complementa na perfeição a letra.
Na ruela de má fama
o charlatão vive à larga
chegam-lhe toda a semana
em camionetas de carga
rezas doces, paga amarga
No beco dos mal-fadados
os catraios passam fome
têm os dentes enterrados
no pão que ninguém mais come
os catraios passam fome
Romance de um dia na estrada é uma narrativa aparentemente singela mas com um subtexto interessante. Conta-se a história de um trovador que vagueia pela estrada até que conhece uma bela mulher ou uma mulher bela (adjectivações sempre pertinentes e certeiras quando aplicadas ao sexo feminino). E ele canta-lhe:
Não tenhas medo, eu não trago
Nem ódio nem espingardas
Trago paz numa viola
Quase que não fui à escola
Mas aprendi nas estradas
O amor que te consola
Trago paz numa viola
O tema que encerra o disco, Maré Alta, é uma bem disposta canção que sublinha o poder da resistência face ao mar tempestuoso da opressão. É também um cantar que estimula a emancipação e a luta através dos meios de que se dispõe.
Aprende a nadar, companheiro
aprende a nadar, companheiro
Que a maré se vai levantar
que a maré se vai levantar
Que a liberdade está a passar por aqui
que a liberdade está a passar por aqui
que a liberdade está a passar por aqui
Maré alta
Maré alta
Maré alta
É em 1972 que lança um dos seus discos mais emblemáticos e que foi gravado em França, PRÉ-HISTÓRIAS que abraça dez canções. A primeira, Barnabé, que numa sucessão de acordes fluídos e desembaraçados lança uma letra sobre um tal Barnabé, uma figura que representa um povo outrora acomodado, apático e com o síndrome de “Velho do Restelo” mas que encontra em si um súbito fulgor e uma motivação diferente que faz com que os brandos costumes sejam postos de lado.
Mas quando o Barnabé cá chegou
quem tinha ouvidos ouviu
quem tinha pernas dançou
quem tinha ouvidos ouviu
quem tinha pernas dançou
A Noite Passada é uma das músicas mais conhecidas do cantautor. Narra encontros entre duas pessoas que se querem bem. É uma delicada e intemporal música de amor. Fala-se de amor novamente no tema seguinte, Aprendi a Amar.
Aprendi a amar
derramando vinho no mar imenso,
no mar imenso
a ver se não perdia o que sei que não venço
deixando corpos caídos no caminho
aprendi a matar bem mais do que penso
aprendi a matar bem mais do que penso.
Uma radiografia poética ao sentimento que inspirou e inspira inúmeras criações.
O registo muda e torna-se algo satírico em Eh! Meu irmão (ou mais uma canção de medo) na qual, acordes brincalhões dão lugar a uma letra que tem o seu quê de cómico e de subversivo ao mesmo tempo.
Eh, meu irmão, que é que tens
estás branco que nem um nabo!
Eh, meu irmão que é que tens, parece que vistes o diabo!
Vi mesmo, bateu-me à porta
disse que o povo estava na rua
e que a rua era do povo que é p´ra quem ela foi feita
e o povo somos nós todos e eu então gritei! Ai, o diabo!
Em Porto, Porto acompanhamos a viagem do narrador de Vigo até à sua cidade-natal, o Porto. É uma detalhada narrativa em verso sustentada por acordes saltitantes que acompanham a métrica da letra, por uma percussão bastante suave mas presente e com um baixo de deambulações interessantes, mas que acompanha sempre a melodia. A atmosfera torna-se um pouco mais melancólica e dorida na balada Já a vista me fraqueja. Uma letra interessante e de sensibilidade poética que expressa o pesar que se sente quando vemos alguém próximo desistir de lutar e limitar-se meramente a existir. Existir é distinto de viver. E por vezes é mais fácil enfrentar a nossa própria morte do que ver alguém que gostamos simplesmente a desistir.
Já a vista me fraqueja
Ver a morte não me aleija
o que aleija é ver a vida dum irmão
andar metida num viver sem avançar
Já a flor se faz carqueja já o caixão se faz ao mar
O disco encerra de uma forma algo festiva e com direito a um mini-festival de percussão e ritmos tropicais com o tema O homem dos 7 instrumentos.
Depois da revolução de 25 de Abril, é lançado o disco À QUEIMA-ROUPA, cujo primeiro tema, Liberdade, apresenta uma letra que provém da ressaca de uma ditadura, de um povo que esteve muitos anos silenciado ou falando aos murmúrios por ter medo de erguer a voz. É referenciado que para haver liberdade é preciso também que seja criada uma estrutura, um modelo social que garanta condições para os cidadãos.
Para garantir a liberdade e para a sustentar é preciso também adoptar uma postura que abdique e anule a passividade. Tal pensamento é expresso em Cão raivoso que com uma letra certeira critica a acomodação, o facilitismo e o pensamento estanque e infértil de que não brota inovação ou pensamento livre.
Mais vale ser um cão raivoso
do que um carneiro a dizer que sim ao pastor o dia inteiro
e a dar-lhe de lã e da carne e da vida e do traseiro
mais vale ser diferente do carneiro
um cão raivoso que sabe onde ferra olhos atentos e patas na terra.
É necessário renunciar ao espírito de seguidismo e ao pensamento de carneirada. Refrear a exaltação da mediocridade e deixar de considerar a sinceridade como algo malicioso ou fruto de uma má-educação. Ser como um cão raivoso, é por vezes, imperativo na conquista dos nossos direitos e por conseguinte, da dos nossos semelhantes.
Agora vamos é ser donos do nosso produzir
em vez de ter que partir com escritos numa mala
e a idade que resvala do nascimento prá morte
vou pró leste perco o norte e o meu corpo é passaporte
A raça e rebeldia é desenvolvida na narrativa de Etelvina. Uma história de vida interessante, excelentemente musicada e onde se sente o coração e carisma de Etelvina, não fosse este cantautor um exímio contador de histórias. É uma música que merece maior rotação e atenção. O disco encerra com uma critica ao capitalismo no tema O grande capital.
Passados dois anos, edita DE PEQUENINO SE TORCE O DESTINO em 1976 que compila onze canções, onde a crítica ao capitalismo é prosseguida principalmente no tema Sul, Norte, Campo, Cidade. O apelo à luta é reciclado e reafirmado em Organização popular com coros interessantes e interlúdios de acordeão que inspira realmente o coração e o sentir popular.
Mas esta organização a que se apela tem os seus riscos de infiltrações e de vendedores de banha da cobra, tal como é sugerido em Bico Calado.
Se eu fosse mal educado
dizia que é muito feio
construir o socialismo com fascistas de permeio
Mas como não sou,
eu fico cego, surdo, mudo e quedo a repetir
uma história sem lhe saber o enredo
Por falar em socialismo
lá porque alguém o apregoa
não quer dizer que não esteja a dizer coisas à toa
E lá porque alguém nos fala também em revolução
não quer dizer que não esteja a vender lobo por cão
Sérgio Godinho continuou a trabalhar e a ajudar a musicar Portugal durante as décadas de oitenta e noventa, tendo editado um disco, o seu mais recente no começo deste ano, intitulado NAÇÃO VALENTE. Viveu em exílio, sentiu a revolução e continuou através da música, poesia e narrativa a alertar Portugal para os perigos do facilitismo e da apatia.