Vítor Rua, Sub-Palco, Rivoli, Porto
Vítor Rua equilibra-se com os pés no braço de uma guitarra
pousada no chão com cordas suficientes para experimentar tons altos e baixos em
abundância. Seriam 12 cordas? Com a pedaleira que serve também de loop station
parte a música em fracções, explora o ruído, desafia a escala. Tudo isto apenas
com os membros inferiores. Caminha literalmente sobre o som, tropeça nele,
esbarra com o silêncio.
Foi assim, a tocar com os pés, que o músico, “cinquenta por
cento dos Telectu”, como disse, terminou o concerto do Understage, no Rivoli,
onde interpretou temas da aventura experimental que co-fundou nos anos 1980 com
Jorge Lima Barreto (1949 – 2011), amigo e parceiro na viagem exploratória mais
subvalorizada com partida em Portugal e com destino ao mundo que na altura em
que se formaram já sabia que os cânones, na música, são para quebrar.
Antes de entrar no momento mais visualmente performativo do
alinhamento, já no encore, passou por uma pequena parte da extensa discografia
dos Telectu, neste concerto só à guitarra, que muitas vezes se confunde com um
baixo.
Com os dedos descobre uma linha de guitarra que a guarda na
loop station. Molda outra para lhe fazer companhia. Idealiza um cenário para
compor o retrato e parte para um diálogo com ele próprio, que umas vezes é
lúcido e outras vezes esquizofrénico. De uma frase limpa passa à distorção.
Numa progressão que parece ter espaço para se prolongar constrói um muro e
tapa-lhe a passagem abruptamente.
Ver Vítor Rua é mais do que apenas uma experiência sonora.
Digamos que pode ser também uma experiência social. Ao passado não foi apenas
resgatar o reportório reinterpretado. Servem os intervalos entre músicas, de um
set nada aborrecido que não durou mais do que uma hora, para recordar alguns
episódios que se passaram com ele ou com outros colegas do universo musical.
Entre uma trip de ácido envolvendo figuras emblemáticas do
panorama musical e da representação que preferimos manter no anonimato, que
escolheram uma ponte entre Porto e Gaia como ponto de partida para uma jornada
que acabou numa igreja com a extorsão de mais uma hóstia que o permitido a um
padre que não teve outro remédio senão ceder, e alguns fragmentos da vida de
Jorge Lima Barreto (JLB) enquanto professor, não resistimos a terminar o texto com
um momento pré-concerto dos Anar Band, banda que reunia a outra metade dos
Telectu e Rui Reininho.
Conta Rua qualquer coisa como isto: Estávamos na década de
1980 e os Anar Band iam tocar num local próximo de uma igreja ou mesmo dentro
dela. Escapou-nos esse detalhe. Servia a sacristia de backstage. Estão os dois
num sector desse espaço e JLB diz a Reininho que vai dar uma volta. O actual
vocalista de GNR, sozinho, olha para cima de uma mesa e vê lá pousado um
alfinete com um crucifixo que naquela época era usado pelos rapazes na manga do
casaco em dia de comunhão.
Entediado, enquanto esperava pelo colega, que decidiu
demorar-se, pega na cruz e pendura-a na parte de cima da manga do seu casaco.
Entretanto, aparece o padre que pergunta por JLB. O concerto tinha de começar.
Reininho diz para esperar. Não deveria faltar muito tempo para aparecer.
Eis quando JLB aparece na sacristia vestido com o fato de um
sacerdote, incluindo a mitra na cabeça para não faltar nada. Barreto olha para
Reininho e foca os olhos na cruz que estava pendurada no braço: “Ó pá, vais
tocar nessa figura?”.
LOCAL: Sub-Palco (Understage), Rivoli, Porto
DATA: 4 de Julho, 2018