Palavras-chave: criador, divino, devoção
Resumo:
Desde os tempos primordiais da raça humana que sempre houve uma tendência para atingir uma comunicação com o que não é visível, para de certa forma explicar o porquê da nossa existência. A música e a poesia sempre ocuparam uma chave vital para esta comunhão, seja através dos rituais de dança e música dos dervixes, aos espirituais cantados e musicados por afro-americanos ou freiras que munidas com uma guitarra prestam a sua eterna devoção e exteriorizam a sua fé. A influência do criador é sentida e transmitida por várias vozes e palavras.
A ligação do judaísmo à música é ancestral e bastante forte. Desde os cantos usados em cerimónias com base em poemas litúrgicos intitulados piyyut, os hinos cantados em ocasiões especiais como durante épocas sagradas intitulados zemitot, os cantos apelidados de nigun que pretendem exaltar a alegria da devoção a Deus e os pizmonim que são cantados em cerimónias especiais como nas circuncisões, casamentos e Bar e Bat Mitzvá.
Bar Mitzvá em Jerusalém por Priscilla Fontoura
O uso da voz é fulcral para a identidade judaica, no entanto, com o decorrer dos tempos é de notar a influência de outros géneros musicais, especialmente o jazz. Um dos géneros de inspiração judaica mais conhecidos é o klezmer. Imortalizado em vários filmes e popularizado por músicos da contemporaneidade como John Zorn e Don Byron que deu ao género a componente vanguardista e experimental.
John Zorn com Painkiller por Utrecht Maarten Mooijman
Esta tradição musical teve origem nos judeus asquenazes residentes na europa central e ocidental. A instrumentação é complexa, envolve bastantes instrumentos e é habitualmente tocada em cerimónias festivas como casamentos.
Uma outra tendência da música judaica é a de influência sefardita. As melodias tiveram as suas raízes nas comunidades de judeus presentes em Espanha e Portugal durante a idade média. Em contraste com o klezmer que se fundiu com o jazz, a música sefardita ganhou mais inspiração com a música clássica ou erudita.
Honey, Blood And Harmony: Jordi Savall's Balkan Journey (NPR)
Um dos registos mais interessantes deste género musical pode encontrar-se no trabalho do músico Jordi Savall, especialmente no disco editado em 1999 e intitulado SECULAR MUSIC FROM JEWISH AND SPAIN: 1450 – 1550. As composições são aliadas à história e descrevem a época antes da lamentável expulsão dos judeus em Espanha perpetrada pela inquisição.
Um outro bom registo é de Gloria Levy no disco SEPHARDIC FOLK SONGS. Os temas são cantados em espanhol e as letras são um pouco análogas às chamadas “canções de amigo”.
Um dos períodos mais negros da história foram as atrocidades cometidas pelo regime nazi à comunidade judaica, adversários políticos (socialistas, comunistas, etc), homossexuais e lésbicas, ciganos, em suma, todas as pessoas que aos olhos do regime psicopático e desumano eram consideradas inferiores. Nos campos de concentração, a música foi usada como ferramenta de manipulação e humilhação, sendo que os oficiais nazis obrigavam os prisioneiros a cantar músicas de glorificação da nação alemã e formavam até orquestras de prisioneiros para tocar somente peças clássicas alemãs. No entanto, houve através da música, momentos de perfeita liberação e resistência, em que um prisioneiro começava espontaneamente a cantar uma música folk e todos os outros seguiam a sua deixa. Houve também judeus que a caminho da morte para as câmaras de gás cantavam a canção judaica: Hatikvah, o poema que se tornou o hino de Israel, dessa forma mostravam aos seus torturadores e carrascos que poderiam aniquilar os seus corpos mas não os seus espíritos. A música tornou-se a única forma de revolta contra um regime amoral, sem espiritualidade e profundamente cruel.
Para uma comunidade que sofreu inúmeras perseguições ao longo da história, a riqueza que se encontra na sua música é surpreendente, assim como a possibilidade de fusão com outros géneros.
2 – BUDISMO
O budismo sempre foi proibitivo no que respeita aos chamados “desejos terrenos” e sendo que a música é considerada como uma forma de prazer, seja por quem toca como quem ouve, a relação entre budismo e música sempre foi um pouco ambivalente. No entanto, especialmente no Tibete, há a tradição das vocalizações dos mantras budistas e em cerimónias ritualísticas de oferta a Buda.
Percussão Budista, Mosteiro Katok por Craig Lovell
A música caracterizada essencialmente por vocalizações tem o objectivo de suavizar a consciência, eliminando os pensamentos intrusivos, negativos e perniciosos, para que seja possível uma mente límpida, uma folha em branco que permite que o coração se livre dos desejos terrenos. O objectivo não é o prazer ou daydreams que a música pode proporcionar, mas sim um estado de extrema quietude e tranquilidade que se traduz no que no estado e termo que a contemporaneidade tem popularizado como “Zen”.
No género de budismo chinês, existe uma maior predominância de instrumentos, que para além de criarem melodias harmoniosas servem também para transmitir ensinamentos budistas, como tal, os instrumentos utilizados são apelidados de instrumentos Dharma.
Tambor Dharma
Existem várias compilações feitas por monges tibetanos budistas. Uma das mais marcantes foi editada em 1996 pelos monges do mosteiro Dip Tse Chok Ling em Dharamsala. O disco chama-se SACRED CEREMONIES: RITUAL MUSIC OF TIBETAN BUDDHISM. As vocalizações tibetanas imiscuídas com os instrumentos tibetanos tradicionais criam uma atmosfera misteriosa e hipnótica que pode levar o ouvinte a práticas de meditação, para quem acredita nos ensinamentos.
Um pouco mais contemporâneo foi a edição de TROWO PHURNAG CEREMONY em 2008 pela banda russa Phurpa que mistura throat singing com cantos tibetanos budistas e instrumentos tradicionais.
As melodias são um pouco repetitivas, mas o espectro vocal demonstrado nas composições é bastante fascinante.
Existe uma grande componente cerimonial e ritualística neste género de música, mas crê-se que ao compor música é possível suavizar e acalentar os corações do ouvinte e criar uma harmonia de mente para que seja possível a absorção dos ensinamentos budistas e dessa forma, atingir a harmonia.
3 - CRISTIANISMO
Este tipo de canções que foram consideradas como predecessoras do gospel, consistiam em cantos que os escravos norte-americanos cantavam enquanto trabalhavam nos campos debaixo dos olhares e força opressora dos brancos esclavagistas. Eram as chamadas “Canções de Trabalho” que de certa forma aliviavam a crueldade e injustiça do trabalho forçado. As letras eram essencialmente cristãs e devocionais a Deus, no entanto, carregavam também um subtexto recheado de mensagens pró-liberdades civis. É um estilo de música com origens na cultura afro-americana que evoluiu desde os campos de trabalhos forçados escravos até às prisões.
Um dos discos mais interessantes é uma compilação editada em 1959, intitulada ANGOLA PRISON SPIRITUALS. É uma colecção de temas gravados pelo especialista em folk, Dr. Harry Oster que visitou a prisão do estado de Louisiana em Angola. As letras são de exaltação a Jesus, fervorosamente cristãs, mas focam-se na temática da redenção e da liberdade. Essas temáticas transmitem-se nos coros, nas melodias reminiscentes de blues e na capacidade de transmutar as angústias humanas em autênticos cantos de liberdade.
Paul Robeson
Um dos cantores mais influentes deste género e que se assumiu como um defensor das liberdades e direitos da comunidade afro-americana foi Paul Robeson que em 1946 lançou o disco SPIRITUALS. O disco contém temas cujas letras têm referências bíblicas, mas que ao mesmo tempo incitam à resistência e à luta pela dignidade. O seu recurso foi a voz poderosa e forte que possuía. Foi também um dos primeiros afro-americanos a ingressar na faculdade depois dos soturnos anos de segregação racial.
IRMÃS NA MÚSICA
Maria Von Trapp e três dos seus filhos
Quando se pensa em freiras e guitarras, é provável que uma das imagens que surja é a da encantadora Maria Von Trapp, para sempre imortalizada numa fantástica interpretação de Julie Andrews no clássico THE SOUND OF MUSIC (realizado por Robert Wise). No entanto, há freiras que usaram a guitarra para expressar a sua devoção religiosa e exteriorizar criativamente a sua fé. Uma das mais reconhecidas foi Soeur Sourire (Sister Smile). Esta Irmã de seu nome Jeanne-Paule Deckers fez parte da Ordem Dominicana na Bélgica e a sua vida foi registada em dois filmes, THE SINGING NUN de 1966 e SOEUR SOURIRE de 2009.
Um dos seus discos mais marcantes é SOUER SOURIRE editado em 1963 que arranca com o tema bastante popular “Dominique”, é provável que depois de o ouvir, passado poucas horas o ouvinte dê por si a cantarolar o tema, tal é a catchyness da música. O resto dos temas são cantados em francês com a voz agradável da Irmã e com acordes folk. As letras são de devoção e cariz religioso, no entanto há alguma frescura e ingenuidade que se demarca do carácter usualmente sombrio da música religiosa.
Assim como Maria Von Trapp, esta Irmã acabou por abandonar a ordem, mas, no entanto, o seu futuro e destino, infelizmente, não foi tão esperançoso como o de Von Trapp. Após sair do convento, conheceu Annie Pécher com quem partilhou um apartamento por vários anos. Apesar da relação entre as duas ser assumidamente platónica, acabou por revelar outros contornos e mais tarde acabaram por suicidar-se. Foram enterradas juntas e na lápide que partilham pode ser lido “J’ai vu voler son âme / A traver les nuages” (“I saw her soul fly/ Through the clouds”).
Um dos trabalhos mais interessantes na música feita por Irmãs, é o de Irene O’Connor, uma freira australiana que enquanto fazia trabalho missionário na Indonésia conheceu a Irmã Marimil Lobregat e juntas partilharam o seu gosto pela música. Uns anos mais tarde, de volta à Austrália, Irene O’Connor que durante o seu trabalho missionário já tinha gravado alguns temas que dariam para fazer um disco, juntou-se novamente a Marimil Lobregat que trabalhava como técnica de gravação no Centro Católico de Audiovisual em Homebush. Dessa colaboração surgiu um disco que gravaram numa sala insonorizada no convento. O disco intitulado FIRE OF GOD’S LOVE foi lançado em 1973 e consegue criar uma mistura surpreendente de algum pop psicadélico e folk. As letras são extremamente devocionais e é de salientar o uso de efeitos sonoros como reverb, um elemento que é revolucionário tendo em conta o cenário e ambiente supostamente conservador em que o disco foi produzido. Alguns temas contam também com passagens bíblicas. É um disco que pode agradar a fãs de música menos convencional.
Roots Vinyl Guide
Seguindo a linha da curiosidade e surpresa, há um disco fantástico que foi editado em 1971 intitulado LJUBIMO (croata para LET US LOVE) pelo colectivo musical Nun Plus. Este disco foi o rebento de cinco freiras católicas nativas de Oregon e de duas músicas profissionais que após ouvirem os temas originais do grupo de freiras ficaram impressionadas. Para além das guitarras, há também a presença de flauta e marimba. O disco é composto por temas de um folk com bastante identidade, havendo até espaço para influências de música do médio-oriente numa das músicas. As vocalizações são compostas por coros bastante pop e o som tem a sensibilidade musical das bandas de anos 60. As letras focam-se na ideologia cristã de amor ao próximo, “regra de ouro” e o amor como lei universal, no entanto, nunca soa proselitista ou conservador, muito pelo contrário, existe uma frescura e criatividade que perpassa em todos os temas e que demonstra que a criatividade na música pode andar de mãos dadas com a fé. É um disco impressionante para fãs de música rock ou pop dos anos 60 e de folk, assim como melómanos curiosos por música composta e produzida fora da indústria mainstream.
June 18, 19, 1965: Isabel Baker "I like God's Style"
Um disco que também foi produzido de forma independente foi o mítico I LIKE GOD’S STYLE editado em 1965 por Isabel Baker e gravado num estúdio com os seus pais, a meio de uma digressão pelos EUA em que fazia concertos ao vivo e pregava em várias igrejas. Com apenas 16 anos, Isabel Baker gravou um disco que se tornou um item de culto para amantes de música menos convencional, assim como para os crentes. O disco físico tornou-se valiosíssimo até ter havido a sua reedição em 2009 pela Harkit Records. Isabel Baker transmite a sua fé e devoção com a energia e fogo típicos da adolescência e há uma mescla interessante de rockabilly com folk. É mais um exemplo que se pode passar a mensagem e a fé de forma criativa.
4 - SUFISMO
Dervixes da Capadócia por Priscilla Fontoura
Dervixes da Capadócia por Priscilla Fontoura
Dervixes da Capadócia por Priscilla Fontoura
Dervixes da Capadócia por Priscilla Fontoura
Dervixes da Capadócia por Priscilla Fontoura
O sufismo está intimamente ligado à poesia de Rumi e às danças dos dervixes que através do seu rodopiar atentam uma ligação com o criador. Quem já teve o privilégio de assistir a uma performance de dervixes sabe que essa ligação é profundamente sentida e ecoa pela audiência.
A música tradicional sufista criou as raízes para as vocalizações religiosas frequentemente ouvidas na Índia e no Paquistão, denominada por qawwali. O tipo de vocalização é ritmicamente hipnótico, produzido em transe e transmitindo o mesmo ao ouvinte. Os instrumentos usados são normalmente a tabla e até o bater de palmas. Dois músicos que se popularizam com este tipo de composição são Nusrat Fateh Ali Khan e Abida Parveen.
Abida Parveen
Um dos discos mais expressivos deste género de música é DEVOTIONAL SONGS lançado em 1992 por Nusrat Fateh Ali Khan & Party. E um outro bom exemplo é LOVE SONGS editado no mesmo ano. Ambos os discos foram lançados pela editora Real Word, uma editora especializada em música do mundo fundada por Peter Gabriel.
Ambos os discos são compostos por temas profundamente místicos e de adoração a Allah, no entanto, existe a suavidade, beleza e anti-violência típica do sufismo. Existe uma grande riqueza musical com a presença de bongos, muita percussão e guitarras incrivelmente dedilhadas.
São formas de devoção e adoração ao criador que não deixam ninguém indiferente.
SUFI ROCK
Combinando a música tradicional de inspiração sufista com o rock, o sufi rock foi uma tendência que emergiu na década de 90 e que se tornou bastante popular em países como Turquia e Paquistão. Uma das bandas mais emblemáticas deste género foi Junoon, uma banda do Paquistão que conta com uma discografia de oito discos de estúdio.
Um dos discos mais marcantes foi AZADI, editado em 1997 que conta com temas fortemente carregados pelo som da tabla e das guitarras. As vocalizações também são bastante marcantes.
As bandas formadas posteriormente como Fuzön e Mekaal Hasan Band continuaram a carregar o estandarte deste género durante os anos 2000. Em Fuzön há também a mistura de um rock mais alternativo, especialmente no disco SAAGAR editado em 2002.
Meekal Hassan Band Song maram and Aabroo
Mekaal Hasan Band instituiu nas letras a sensibilidade poética e única de Rumi com a energia do rock ocidental, essa mistura pode ser experienciada nos seus discos, principalmente em SAMPOORAN editado em 2004.
São bandas que provam que é possível combinar em harmonia o sentido místico do sufismo com as melodias tipicamente ocidentais.
CONCLUSÃO:
A arte sempre serviu ao longo da história para uma ponte de ligação com o divino. Seja através de cerimónias, rituais, poemas musicados e cantados ou canções com influência pop, persiste no cerne do ser humano uma tentativa de comunicação com o que nos é maior. Como referenciou Tomás de Aquino: “All that is true, by whomsoever it has been said has its origin in the Spirit.” e o mesmo se aplica ao que é cantado e tocado.
TEXTO: CLÁUDIA ZAFRE