O festival de cinema Curtas Vila do Conde tem uma particularidade especial que o difere dos demais: a música é também agente principal para a mostra de trabalhos visuais. A música não é apresentada apenas como um complemento da imagem, é também protagonista. Dessa forma, o programa Stereo cruza dois mundos muito relevantes, o do cinema e o da música, aproximando criativos para trabalhar lado a lado.
Uma teia geométrica emoldura o que acontece por detrás da exibição visual experimental, montada e exibida a tempo real por Vasco Mendes e André Tentugal, dois criativos visuais, residentes do festival, que têm firmado os seus lugares no nicho dos vídeos-musicais. É uma narrativa montada com fragmentos de trechos visuais do filme "Space is the Place", dirigido por John Coney e escrito por Sun Ra e Joshua Smith. Quem a verbaliza é Moor Mother, aquela que recorre às máquinas e a noisemakers analógicos para preencher o seu discurso. A activista norte-americana não se desvia da linha vocal que é linear e, por vezes, raivosamente catártica, directamente influenciada pelo espírito de improvisação de Sun Ra. Enquanto despeja palavras que marcam o começo de uma viagem afrofuturista, sentem-se as batidas controladas por Jonathan Uliel Saldanha, fundador do colectivo SOOPA e membro dos HHY & The Macumbas, que remetem para um subúrbio pós-apocalíptico deixado no esquecimento. O spoken word de Moor não pára e a violinista Carmella Farahbakhsh acaba as últimas palavras de casa frase, tocando um violino amplificado e reverberado. Há uma cadência que nos leva a um lado muito negro da vida. Sente-se o peso no ar. E a moldura não sai da tela, como se fosse uma prisão que asfixia. Muhammad Ali, pugilista norte-americano e activista na luta contra o racismo, aparece por detrás dessa teia geométrica sacudindo os braços e os punhos.
Ali, à frente do trio, existe uma plateia silenciosa e passiva que assiste ao espectáculo inédito e apresentado em primeira mão pela americana Moor Mother, pelo português Jonathan Saldanha, pela violinista Carmella Farahbakhsh, pelos criativos visuais Vasco Mendes e André Tentugal, trabalho que é resultado de uma residência artística em ViIa do Conde promovidos pelo festival e pela MAD Summer School/IPP. Desta fusão nasceu um cenário negro, vindo dos subúrbios da alma e do medo de um futuro que será sempre uma interrogação e, talvez, um novo explorar de uma próxima era espacial. A pedra lapidada que inicia e conclui a narrativa, como se fosse o ciclo entre um iniciar e um fim, é essa chave que abre a porta para o desconhecido.
TEXTO e IMAGEM: PRISCILLA FONTOURA