terça-feira, 27 de novembro de 2018

Os Mutantes, os sobreviventes da intemporalidade

Cartaz: "Os Mutantes", de Teresa Villaverde (Imdb)

OS MUTANTES
Portugal, França, Alemanha, 1998
Ficção, 35mm, cor, 117 min.

Não é apenas frase popular, estudos em psicologia indicam que a primeira impressão é a que fica. Felizmente nem sempre é assim. Existem outros factores tão ou mais importantes. No entanto, não acontece só quando conhecemos alguém, a primeira impressão ocorre também com os filmes que visualizamos. Há sequências que ficam retidas de modo mais particular na memória visual de cada sujeito. Depende de vários factores: da condição emocional, do contexto, do que mais afecta; até mesmo o inexplicável entra nessa fórmula. Oliver Sacks soube explicar como funcionam os mecanismos do cérebro. Nesse contexto, cabe ao realizador decidir qual a primeira sequência do filme. 

Serve de exemplo, o início de Apocalipse Now, em que uma série de alegorias representam uma panóplia de significados. O fogo representa o Hades, lugar onde se concentra o sofrimento; o helicóptero, que é substituído pela ventoinha, a guerra. O início de um filme pode ser o ponto culminante de toda a trama. O filme realizado por Francis Ford Coppola não serve de comparação, narrativamente falando, com o filme "Os Mutantes" de Teresa Villaverde; ainda assim, encontramos dois pontos em comum nos dois filmes, os protagonistas aparentam estar com os pensamentos estáticos num momento de contemplação quase hipnótico que servem de preliminares para o desenrolar da narrativa.

Ana Moreira (Andreia), Os Mutantes

Entre outros filmes, "Os Mutantes", um dos filmes que mais marcou a história do cinema português na década de '90, esteve patente na retrospectiva Teresa Villaverde, no Auditório de Serralves. O início do filme toma a figura de manto suave que, gradualmente, transita para o peso da narrativa, concentrando-se nos três protagonistas "que não se encaixam em lado nenhum", por serem livres, rebeldes e selvagens, afirma a realizadora. Acima de tudo, recusam ser prisioneiros de si mesmos, ainda que carreguem nos seus corpos o peso das memórias. O cabelo de Andreia (Ana Moreira), que se movimenta pela força do vento, faz raccord visual com o plano seguinte de um secador de cabelo. A sintaxe visual transita de momentos agressivos para outros passivos, por exemplo, quando os protagonistas fogem da opressão dos centros de reinserção para a liberdade sem limites, "como uma energia selvagem, um desejo de mudar as coisas, de viver de forma diferente", descreve Teresa Villaverde Todos estes elementos visuais causam no espectador momentos de contemplação e de revolta; assim se vive, ao lado dos protagonistas, a liberdade que procuram acima de tudo, tal como a realidade da qual querem fugir. 

Durante dois anos, a cineasta, que tinha como ideia inicial realizar um documentário sobre o tema da infância em Portugal nos anos '90, conta como tudo surgiu, referindo o episódio de quando o seu irmão se encontrava no Alentejo numa expedição arqueológica e foi interrogado por uma criança sobre a existência de naves espaciais em Lisboa. 

O filme que atingiu a maioridade faz hoje 20 anos. Na actualidade, se o desafio fosse lançado, não teria a mesma capacidade para o desenvolver, porque esta geração jovem é diferente e a idade da autora no tempo d'Os Mutantes não era tão diferente da dos actores, por isso, há 20 anos conseguiu, facilmente, aproximar-se do tema; responde a cineasta. Teresa Villaverde enquanto desenvolvia a ideia pensou como género o documentário. Por falta de condições a ideia ficou na gaveta, mas os personagens não lhe saíam da cabeça. Assim que se tornou possível passá-la para a prática, alterou o género para ficção. "Há sempre os que querem sair, os miúdos que infringem e que desobedecem as regras, são esses os chamados Mutantes", diz a autora.

Alexandre Pinto (Pedro), Os Mutantes

Os anos '90, no que à criatividade e às subculturas dizem respeito, foram a continuidade da subversão dos subgrupos tidos como marginais. Muitos filhos ouviram dos seus pais a passagem pelas várias guerras, e esses mesmos pais ouviram dos seus pais outras memórias vividas noutras guerras. Directa ou indirectamente esses traumas passaram de geração em geração, e os efeitos causados não são apenas assistidos globalmente nas sociedades, mas dentro das casas também. Nos EUA, a guerra do Vietname, a guerra fria centrada no conflito entre os EUA e a União Soviética, entre Portugal e Angola, a Guerra Colonial. Chegados os '90, perduraram os resquícios da descrença política, pairada, de outro modo, nos subúrbios urbanos cuja segregação resultou num modo de viver alternativo. Uma pobreza que tentou procurar outras formas de subsistência. Além da descrença política, a segregação urbana intensificou e afectou a forma de estar dos seus locais. Por consequência, agitou nas mentes criativas a vontade de exprimir os efeitos dessa transição. 

Tanto na música, como nas artes plásticas, quanto no cinema, os temas da alienação social, a auto-dúvida, o isolamento social/isolamento emocional, o abuso, a negligência, a traição, trauma psicológico e o desejo de liberdade são matéria para exprimir as frustrações vividas nessa época.

Paralelamente, em Portugal também se vive a temática no cinema português, não só com Teresa Villaverde que passa pela fase da interrogação do estado de Portugal; Pedro Costa, António Pedro-Vasconcelos, João Botelho, Manuela Viegas também se interessam pelo tema da crise de identidade.

Hoje, a crise de identidade é sentida de outra forma. Os jovens que representam o futuro temem-no por causa da desesperança que sentem na incógnita do amanhã. Nesse sentido, "Os Mutantes", ainda que com 20 anos de existência, continua a retratar uma problemática actual.

Texto: Priscilla Fontoura
Filme: Os Mutantes, 1998
Realizadora: Teresa VillaVerde
Onde: Museu de Arte Contemporânea Serralves, Auditório de Serralves
Quando: 16 - 25 Novembro, Retrospectiva Teresa Villaverde; 16 de Novembro "Os Mutantes"