Poderemos criar arte sem amor e/ou sem devoção humanista? Esta é apenas uma das questões que este filme realizado por Lars Von Trier coloca ao espectador. O filme foi, inicialmente, marcado por alguma polémica - como é costume sempre que sai algum filme deste realizador – desde críticas muito negativas, até ser vaiado em Cannes e ter ferido as sensibilidades de alguns espectadores que saíram a meio da projecção. Os motivos seriam cenas de extrema violência contra animais, mulheres e crianças. Uma das cenas que mais motivou ira foi a que envolve um patinho, no entanto, apesar de ser uma cena que choca narrativamente, é extremamente fundamental, porque afinal o filme é sobre um psicopata. Faz parte de inúmeros estudos que, enquanto crianças, os psicopatas começam por exercer crueldade para com animais e/ou atear fogos. Narrativamente, é uma cena que faz sentido e está longínqua de ser gratuita. Felizmente, a cena foi recriada de forma a que o patinho não fosse magoado ou sofresse alguma violência, tal como a PETA e o próprio realizador garantiram aos espectadores.
Este filme é uma viagem à mente de um indivíduo que aceita a sua psicopatia (ao contrário de muitos outros serial-killers) e que derivado à frustração de ser um engenheiro, quando na realidade queria ser arquitecto, decide enveredar por uma outra arte. A do homicídio. E é bem-sucedido. O que muitas pessoas pareceram não entender em relação a esta obra cinematográfica, é que, além da psicopatia estar descrita de forma não sensacionalista, mas sim extremamente real, é que os momentos considerados chocantes não passam de exercícios de comédia negra. Claro que é a minha opinião subjectiva, visto que fiquei cativada pelo filme e é mais do que provável que o reveja muitas vezes no futuro próximo.
A narrativa segue Jack (genialmente interpretado por Matt Dillon), um mero engenheiro que sempre quis ser arquitecto e que desde cedo confundiu amor ou sensações de prazer com ruína, decadência e apodrecimento. A sua sofisticação permite-lhe que compare os diversos estados de apodrecimento das uvas destinadas a vinhos com os estados de putrefacção do corpo humano. É aí que percebemos que estamos a lidar com um homem sofisticado, ou Mr. Sophistication, o nome que adopta para a sua série de homicídios, seguindo a regra geral que todo o psicopata serial-killer gosta de ter um nome de código ou nome de artista.
O filme está dividido em cinco incidentes principais que Jack narra ao seu guia de viagem, Verge (Bruno Ganz) que o acompanha até ao inferno. Aprendemos que os gritos e berros que Dante descreve não passam de uma sintonia aguda, mas baixa o suficiente para nos deixar desconfortáveis. É um tinido. Um tinido que sabemos albergar as ameaças ou talvez as súplicas dos danados. Lars Von Trier conseguiu o que poucos conseguem, recriar o inferno e desconstruir a noção da banalidade do Mal. Fazendo-o também com uma das cenas finais mais memoráveis do cinema e passagem para o genérico. A banda-sonora tem bastante importância, no sentido em que sublinha a veia irónica e de humor negro presentes na narrativa. E faz rir. Subjectivamente falando, um dos melhores filmes que vi em 2018 e anos conseguintes. Hit the road Jack.
TEXTO: Cláudia Zafre
IMAGENS: Frames do filme "THE HOUSE THAT JACK BUILT"