segunda-feira, 20 de maio de 2019

De um barco abandonado na ilha de Cabo Verde, nasce a electrónica africana com Grupo Pilon e outros colectivos.

Independência de Cabo Verde (DR)

O psicadelismo dos padrões de uma capulana ajusta-se à figura de uma rapariga jovem africana que, ao caminhar, parece que dança levemente, levando o ritmo no seu corpo formoso e bem constituído. O seu corpo torna-se ágil e quase elástico, assim que a música se começa a ouvir. Isto é uma tela, um batique, uma imagem que se aloja no nosso imaginário assim que é vista. A música pode passar pelo funaná, uns blues mais atrevidos ou música com timbres psicadélicos, funk e electrónicos imiscuídos com ritmos tradicionais africanos. A jovem dança consumindo os ritmos por completo. 

A música electrónica é tida, na história da música, como um fenómeno essencialmente ocidental, do mundo, supostamente, evoluído e não em desenvolvimento. Contudo, em África, há muito tempo que se desenvolvem sons electrónicos de formas mais artesanais e menos convencionais. Do que daí resulta são ritmos extremamente dançáveis, hipnóticos e sem a desvirtuação das melodias tradicionais africanas, das quais Cabo Verde em particular se orgulha bastante.

A editora nova-iorquina Ostinato Records lançou, em 2017, uma compilação fantástica e interessante, cujo enfoque é a música feita por emigrantes cabo-verdianos que conseguiram transcrever sonicamente o exotismo, unicidade e beleza da ilha. 


Foi a Março de 1968 que aconteceu o impensável, um navio que carregava muitos órgãos, moog’s, hammond’s e korgs, cujo destino era o Rio de Janeiro, acabou por nunca chegar ao Brasil. Mas chegou sim, a Cabo Verde. O navio estava aparentemente abandonado, não havendo sinais da sua tripulação. O recheio do barco foi imediatamente retirado e inúmeros jovens cabo-verdianos tiveram acesso a novas formas de fazer e pensar música. A decisão de distribuir os órgãos pelas várias escolas e sistemas de educação coube ao general Amílcar Cabral. Esta e outras histórias estão disponíveis num artigo muito completo no jornal The Guardian (cujo link colocarei em baixo). 

A ilha viu-se então assolada por sons diferentes, exóticos e únicos que realizaram uma boa simbiose entre música tradicional africana e a vanguarda da música que era feita na Europa.

Essa fusão histórica foi capturada na compilação: Synthesize the Soul: Astro-Atlantic Hypnotica from the Cape Verde Islands, editada em 2017, pela Ostinato Records. Reúne 18 temas distintos entre si, mas que, ouvidos na íntegra, oferecem sonicamente toda uma ilha. 

Após a independência da ilha, do regime colonial Português, foram inúmeras as bandas e colectivos que floresceram adaptando-se aos tempos. Essa adaptação levou também à criação de música ecléctica e dinâmica, que se arma de várias influências para ajudar à transformação e assumir de uma identidade, depois de anos sob a égide de uma força colonial. 

Há funk, dança, reggae, salsa, r’n’b e outras tendências misturadas com o som inconfundível da música tradicional de Cabo Verde. Há espaço para alguns experimentalismos de disco sound, como por exemplo, no tema Djozinho Cabral de José Casimiro. Há toda uma mistura saudável de géneros musicais que fazem desta compilação uma das mais cativantes da dita música do mundo. 

Para escutar o disco na íntegra, aqui: 

Com um panorama musical tão rico, a editora Ostinato Records lançará no próximo 14 de Junho o álbum Leite Quente Funaná de Cabo Verde do Grupo Pilon


Este grupo formou-se em 1985 no Luxemburgo, sendo um colectivo de jovens entre os 14 e os 20 anos, que, em vez de copiarem as músicas que ouviam, criaram os seus próprios originais. A formação ficou eventualmente reduzida a 5 elementos. Nas suas músicas decidiram relatar os problemas da emigração, trabalhos precários e o quotidiano de viver na Europa. 

Este colectivo recebeu a devida atenção da editora norte-americana que este ano lança um registo de seis temas (retirados de três discos de originais do grupo). Sem formação profissional ou grande experiência musical, o Grupo Pilon conseguiu, através da perseverança e inclinação musical inata, criar temas de cerne consciencioso que reflectem problemas sociais da altura, como a libertação de Nelson Mandela e a queda do muro de Berlim. A música é deliciosamente dançável, mas existe todo um subtexto de luta pela liberdade e justiça social que a banda continua a conservar. 


A origem do nome Pilon é também uma homenagem às raízes, sendo que é o nome do instrumento que se usa para tratar o milho usado num dos pratos mais tradicionais e conhecidos da gastronomia de Cabo Verde, a cachupa. Este respeito pelas raízes reflecte-se nas guitarras gingonas, bateria e percussão bem ritmadas e o uso de sintetizadores que elevam o som e o tornam, de certa forma, inconfundível, especialmente no tema Txada Liton


Este disco faz assim a segunda parte dos lançamentos da diáspora crioula, lançada pela editora americana, após o sucesso da compilação Synthesize the Soul

Grupo Pilon reinventou o funaná, tornando-o mais eléctrico, cativante e aberto a influências exteriores, sem nunca esquecer ou perder as suas verdadeiras raízes. Um disco que estará disponível a partir de Junho pela Ostinato Records

Fontes: 

- TRANSLATION - 

The psychedelism in the patterns of a capulana that fits the body of a young african woman that while walking, seems like she is dancing lightly, carrying the rhythm in her beautiful and well built body. The body becomes agile and almost elastic when the music starts to play. This is a painting, a batik, an image that finds its place on our imaginary as soon as it is seen. The music can be funaná, some cheeky kind of blues or music with psychedelic, funk and electronic tones mixed with traditional african music. The young woman dances consuming the rhythms in its fullness. 

Electronic music is generally thought of as an essentially western phenomenon, of the supposedly developed world and not of the underdeveloped, however in Africa there has been development of electronic music by other unusual methods. What results from that are extremely danceable, hypnotic rhythms that do not stray too far from the traditional african melodies of which Cabo Verde is extremely proud of. 

The music label from New York, Ostinato Records, released in 2017, is an interesting and fascinating compilation of music, made by emigrants from Cabo Verde that were able to sonically transcribe the exoticism, uniqueness and beauty of the Island. 

It was in March of 1968 that the unthinkable happened. A ship that carried a lot of music organs and synths, moog’s, hammond’s and Korgs whose final destination was Rio de Janeiro never did arrive in Brazil but it shipwrecked in Cabo Verde. The contents of the boat were taken and a lot of youngsters had access to new ways of thinking and playing music. The decision to distribute the musical instruments at schools was made by General Amílcar Cabral. This and other stories are available in a very good article by the newspaper, The guardian (I’ll post the link below). 

The Island was then filled by different sounds, exotic and unique with a perfect symbiose between traditional african music and the music vanguard of Europe. 


That historical and beautiful fusion was captured in the compilation: Synthesize the Soul: Astro-Atlantic Hypnitica from the Cape Verde Islands released in 2017, by Ostinato Records. It gathers 18 songs very different from one another but that listened in a whole gives us the sonic portrait of the islands. 

After the Island’s Independence from the portuguese colonial regime there were a lot of music collectives and bands that blossomed and adapted to the times by creating eclectic and dynamic music that arms itself of various influences to help the Island’s transformation and identity after years under the colonial forces. 

There is funk, disco, reggae, salsa, r’n’b and other tendencies mixed with the unmistakable sound of Cape Verde’s traditional music. There is space to some experimentalisms of disco sound, such as in the song Djozinho Cabral by José Casimiro. There is a wide variety of mixing of musical genres that make this compilation one of the more captivating of the so called world music. 

You can listen to the whole record here: 

With such a rich and natural musical landscape and with the necessity of it being brought to wider audiences, Ostinato Records releases this year, 14th June, Leite Quente Funaná de Cabo Verde, by Grupo Pilon

This group formed in 1985 in Luxembourg, being a very youthful band with its members being between 14 and 20 years old. They created their own original songs instead of copying or covering songs. The group was shortened to 5 elements that in their songs talked about the problems of the emigrants, precarious jobs and the daily life in Europe. 


Grupo Pilon received the deserved attention by the north-american label that this year releases an album of six songs (taken from three previous records of the band). Without professional training or experience in music, Grupo Pilon managed through perseverance and innate musical ability to create songs of conscientious core that reflect social problems of the time like the release from prison of Nelson Mandela and the fall of the Berlin Wall. The music is extremely danceable but there is a constant subtext of fight from freedom and social justice that the band expressed and still expresses. 



The origin of the name Pilon is also an hommage to the roots, since that Pilo is the instrument used to pound the corn used in one of the most traditional and well known dishes of Cape Verde’s gastronomy, the cachupa. This respect for the roots reflects itself on the playful guitars, drums and percussion that are very rhythmic and the use of synths that elevate the sound and make it memorable, especially in the song Txada Liton

This record is the second part of the releases of the creole diaspora released by the north-american label, after the success of the compilation, Synthesize the Soul.

Grupo Pilon reinvented the funaná, making it more electric, vibrant and open to external influences without forgetting or losing its own roots. A record that will be available in June by Ostinato Records

Texto | Text: Cláudia Zafre
Tradução | Translation: Cláudia Zafre