sexta-feira, 27 de setembro de 2019

A liturgia ecoa além dos mosteiros da Arménia, é o som do espírito que se eleva

Sair da bolha pode ser complicado porque exige esforço. Compreender o que se passa fora dela poderá ser o caminho que se pretende seguir, para melhor entender a cosmovisão das coisas. Tendemos a olhar o mundo segundo a nossa perspectiva, e esse olhar castra a possibilidade de o observarmos multidimensionalmente, com mais plenitude e com mais espiritualidade. Colocando a premissa de outra forma, ainda que há momentos o carteiro tenha depositado uma série de cartas nas caixas de correio de cada apartamento, o vento não deixou de soprar do outro lado do Transcáucaso, onde as areias viajam de um lado para o outro, moldando rochas que ao longo dos tempos foram adquirindo múltiplas formas e texturas. 

Arménia; Imagem: Priscilla Fontoura

Pouco (ou nada) se sabe sobre a cultura Arménia em Portugal. Hoje é um país independente, mas não se pode esquecer que ontem foi a nação vítima de uma série de guerras civis, conflitos separatistas e conflitos étnicos que ocorreram na região do Cáucaso, desde a União Soviética até ao término da Guerra Fria.

Ouve-se falar vagamente sobre o genocídio arménio, cujo reconhecimento do Parlamento português só se deu (vergonhosamente) este ano, no dia 26 de Abril. Uma atrocidade - a exterminação sistemática de um povo e de um grupo étnico -, que é motivo de indignação mundial, mas, ainda assim, a sua aceitação é ainda assunto de controvérsia e de algum conflito diplomático, uma vez que a Turquia atribui a responsabilidade de tais actos ao império Otomano, ocorridos durante as épocas 1915 e 1922. No entanto, ainda hoje, o genocídio continua a ser um factor de tensão para os turcos. A Arménia, a minoria curda e outras minorias sofreram o extermínio sistemático orquestrado pelo governo Otomano que se estima ter dizimado entre 800 e 1,5 milhão de pessoas. Como refere Desmond Tutu, ser neutro numa situação de injustiça é escolher o lado do opressor. 

Memorial e Museu do Genocídio Arménio, Erevan; Imagem: Priscilla Fontoura

Memorial e Museu do Genocídio Arménio, Erevan; Imagem: Priscilla Fontoura

A alegação, e a negação em contrapartida, de que essas mortes tenham configurado um crime de genocídio, depende principalmente da prova da intenção estatal de matar essas pessoas e é esse o principal ponto de choque entre os autores pró-arménios e pró-turcos. É facto que poucos documentos escritos e autenticados podem ser apresentados como prova da intenção genocida e esse fato é accionado, muitas vezes, como ferramenta para o negacionismo. Um pesquisador que procure manter-se imparcial diante deste momento histórico terá que evitar armadilhas de ambos os lados. É natural que, ao tentar defender a sua versão, cada lado apele para o exagero, é parte da natureza humana. Entretanto, esses exageros são utilizados pelo ‘adversário’ com muita eficiência (...)
Um dos melhores exemplos desta disputa entre “história” e “verdade histórica” é o caso dos famosos telegramas de Talaat Pasha.
- Arménios e Gregos Otomanos, A Polémica de um Genocídio -,
Ligia Cristina Sanchez de Almeida 

Ravished Armenia é uma das histórias mais emblemáticas sobre o genocídio arménio, cuja protagonista é Aurora Mardiganian, uma resistente e testemunha de horrores tal qual Anne Frank na Europa. Mardiganian (1901-1994) testemunhou o assassinato da sua família e o sofrimento do seu povo nas mãos do império Otomano. Forçada a caminhar mais de 2000 Km, Aurora Mardiganian foi obrigada a trabalho compulsório. Quando finalmente conseguiu escapar e fugir para os EUA, foi atraiçoada e explorada pelas próprias pessoas que acreditava que a poderiam ajudar. A sua biografia foi publicada num livro e, posteriormente, adaptada para uma longa-metragem intitulada Ravished Armenia, também conhecida como Auction of Souls de 1918, na qual a mesma protagonizou.

Aurora Mardiganian, Memorial e Museu do Genocídio Arménio, Erevan; Imagem: Priscilla Fontoura

 Memorial e Museu do Genocídio Arménio, Erevan; Imagem: Priscilla Fontoura

 Memorial e Museu do Genocídio Arménio, ErevanImagem: Priscilla Fontoura

Memorial e Museu do Genocídio Arménio, ErevanImagem: Priscilla Fontoura

Memorial e Museu do Genocídio Arménio, ErevanImagem: Priscilla Fontoura

No que respeita à presença e influência de cidadãos de origem arménia em Portugal, o nome mais sonante é o de Calouste Sarkis Gulbenkian, um mediador nas negociações internacionais para a exploração das reservas de petróleo no Iraque. Foi também um coleccionador de arte muito ecléctica. Adquiriu nacionalidade britânica em 1902. Faleceu em 1955, na cidade onde passou os últimos anos da sua vida, Lisboa, e onde construiu a sede de uma fundação internacional com o seu nome, em benefício de toda a humanidade. Hoje, a fundação Calouste Gulbenkian tem apoiado vários investigadores e artistas com bolsas para valorização pessoal no estrangeiro e tem, também, melhorado a qualidade de vida das pessoas através das artes, beneficência, ciência e educação desde 1956.

Arménia; Imagem: Priscilla Fontoura

ArméniaImagem: Priscilla Fontoura

Não faz muito tempo (1920) que a Arménia integrou uma das repúblicas anexadas à URSS. Hoje, já independente, as relações com a Rússia são diplomáticas. As marcas perpetradas sistematicamente durante os conflitos, ocorridos da agitação dos movimentos nacionalistas, perduram. Do lado da Arménia a independência existe, do lado russo a Arménia continua a ser parte do seu território. Depois do genocídio arménio, deu-se a diáspora que forçou a fuga de milhares de arménios para a França, Estados Unidos, Argentina, o Levante e outros países que os acolheram. Ainda que por motivos nefastos, a diáspora arménia permitiu que a identidade colectiva arménia se abrisse ao mundo, na medida em que o fluxo migratório, provocado pelo genocídio, introduzisse noutras sociedades a influência da identidade arménia. O contributo que alguns arménios deram aos seus países de acolhimento é relevante. Por exemplo, Arthur H. Bulbulian, descendente de arménios, foi pioneiro no campo das próteses faciais. O seu trabalho de investigação desenvolvido na Clínica Mayo, na União Aero-Médica, levou-o a ser creditado com o desenvolvimento da criação da máscara de oxigénio A-14, para a força aérea dos EUA em 1941. 

Museu de Manuscritos Antigos - Erevan; Imagem: Priscilla Fontoura


Museu de Manuscritos Antigos - Erevan; Imagem: Priscilla Fontoura

Hoje assiste-se a uma Arménia vulnerável, mas pronta a alterar um passado que foi lento na sua mudança. Das curiosidades deste país, ainda muito ligado às suas raízes e identidade, fazem parte o ensino do Xadrez, que é obrigatório nas escolas para desenvolver o pensamento estratégico como parte da educação fundamental e o alfabeto arménio, constituído por 43 caracteres e desenvolvido pelo monge, teólogo, hinógrafo e linguista arménio Mesrobes Mastósio. O primeiro texto a ser escrito no alfabeto arménio foi a Bíblia, transcrição feita pelo próprio Mastósio. A língua indo-europeia é também falada pelas comunidades arménias espalhados pelo mundo.

 Próximo da fronteira Arménia - Geórgia, CáucasoImagem: Priscilla Fontoura

 Próximo da fronteira Arménia - Geórgia, Cáucaso; Imagem: Priscilla Fontoura

Monte Ararate, ponto de vista da Arménia; Imagem: Priscilla Fontoura

Arménias em Garni; Imagem: Priscilla Fontoura

Posso dizer que das muitas viagens que fiz, poucas foram as vezes em que senti uma recepção tão calorosa e honesta de um povo que partilha traços em comum com os vizinhos persas. De Khor Virap avista-se o monte Ararate, onde segundo o livro de Génesis, a arca de Noé estaria localizada. O símbolo principal da Arménia é o monte Ararate que desde a Convenção de Teerão, em 1932, mudou as suas fronteiras a favor da Turquia. Esta montanha desempenha um papel significativo no nacionalismo e irredentismo arménio. 

Khachkar; Imagem: Priscilla Fontoura

Etchmiadzin, Khachkar; Imagem: Priscilla Fontoura

Confecção de pão artesanal, Arménia; Imagem: Priscilla Fontoura


Mãe Arménia, Erevan, Arménia; Imagem: Priscilla Fontoura

Apesar da pequena área geográfica, este país é rico em identidade. Da sua cultura fazem parte o alfabeto (já referido), a gastronomia, os instrumentos musicais, as Khachkar, a religião, o Narek, e a mãe Arménia; a estátua que foi erigida, tomando o lugar da de Estaline, que outrora ocupava esse mesmo espaço e que foi criada como memorial de vitória da segunda guerra mundial. A mãe Arménia simboliza a paz que nasceu através da força. É também uma reminiscência das mulheres proeminentes da história arménia, tais como Sose Mayrig, que não temeram e pegaram nas armas para lutar ao lado dos seus maridos, aquando dos conflitos contra as tropas turcas e curdas. 

Mas de todo o conjunto atractivo que apela a fixar o olhar na Arménia são os mananciais que correm por todo o país, toda a paisagem natural (um lugar propenso para os animais migratórios, ao redor existem mais de 350 diferentes espécies de aves) que o circunda e os mosteiros incrustados nos rochedos que mudam de texturas conforme as alterações das estações do ano. Desses mosteiros ecoam cânticos que exaltam o divino e nos ligam a Ele. Sente-se paz e vontade de permanecer nestes lugares, que parecem inexistentes quando vivemos uma vida agitada e concentrada nos problemas do dia-a-dia. Por momentos, esta paz deixa-nos tão desassossegados, que há pensamentos que nos agitam e fazem questionar sobre qual caminho traçar, a de uma vida frenética sem sentido, ou a de uma menos agitada mas com sabor.

Arménia; Imagem: Priscilla Fontoura


 Arménia, Noravank; Imagem: Priscilla Fontoura

 Arménia, Mosteiro de Noravank; Imagem: Priscilla Fontoura

Arménia, Akhtamar; Imagem: Priscilla Fontoura

Templo cristão incrustado na rocha S. Geghard, do 12° século, Arménia. Canto litúrgico arménio (sharakan) no Gavit, no mosteiro Geghard;
por Priscilla Fontoura

Arménia; Templo cristão incrustado na rocha S. Geghard, do 12° século; Imagem: Priscilla Fontoura

O Mosteiro de Geghard (arménio) é uma construção peculiar e especial, por estar incrustada na montanha e rodeada por rochedos. A oeste do templo principal encontra-se o vestiário esculpido na rocha e ligado à parte este, construído entre 1215 e 1225. São quatro as colunas que suportam o telhado de pedra, cujo centro perfurado permite a passagem de luz para iluminar o espaço. A organização do espaço confere-lhe uma acústica impressionante que é explorada, na altura do Verão, por músicos que proporcionam ao ouvinte um momento espiritual de arrepiar.


Dos instrumentos tradicionais arménios, o Duduk é o mais conhecido e é comum ser tocado em funerais devido ao seu tom melancólico. É usado em toda a região dos balcãs, do Médio Oriente, do Cáucaso e da Ásia central.

Etchmiadzin, Arménia; Imagem: Priscilla Fontoura

Etchmiadzin, Arménia; Imagem: Priscilla Fontoura 

Narek, por Priscilla Fontoura

Selim Pass Karavansaray, Arménia

A Arménia foi a primeira nação a oficializar a religião com origem no Médio Oriente - o Cristianismo - como religião de Estado. No entanto, a Igreja Apostólica Arménia diferencia-se das demais Igrejas do mundo. Após o Concílio de Calcedónia, em 451, a Igreja fez o cisma separando-se tanto dos seus ramos católicos quando dos ortodoxos, uma vez que a igreja Ortodoxa aceita apenas a autoridade dos três primeiros Concílios Ecuménicos. Dos fundamentos da Igreja Arménia integram a monofisista, com origem na Escola Teológica de Alexandria e que determina e enfatiza a natureza de Jesus Cristo pela sua divindade. O santo padroeiro, e considerado o primeiro líder oficial da Igreja Apostólica Arménia, é Gregório, o Iluminador, o líder religioso a quem é creditada a conversão da Arménia do paganismo ao cristianismo. O padroeiro foi martirizado por uma multidão fanática quando pregava, tendo permanecido até à sua morte perto do Monte Sebuh com um pequeno grupo de monges.

Também Gregório, mas o de Narek, é uma referência para a cultura arménia. Gregório de Narek foi um monge arménio do século X, poeta, filósofo, místico e teólogo. A importância dos seus escritos para a religião na Arménia é incomparável. O Livro das Lamentações (Narek), que ele chamou de “enciclopédia de oração para todas as nações”, é uma coesão única da alma que revigora as orações por possuírem poderes de cura e protecção. Assim, tornou-se uma tradição arménia colocar as orações de Narek perto de uma cabeceira ou debaixo de um travesseiro de um bebé recém-nascido. 

May this book of prayers
I have undertaken to compose
with the strength of the Holy Spirit
and with a view to the multitudinous needs of all
serve for some as heartfelt pleas of intercession and
for others as counsel toward virtue
that through this book they might constantly
appear before you, Great Mercy.
Oração 3 - Narek

Há mil anos, São Gregório de Narek partiu, com muita ansiedade, numa missão sublime para traduzir os suspiros puros do coração partido e contrito numa oferta de palavras agradáveis ​​a Deus, começando cada oração com encantamento, falando com Deus "das profundezas do coração". Gregório de Narek criou um livro vivo, como um compêndio de orações para todos os tempos e nações. Na Arménia o livro é intitulado Girk aghotits, traduzido literalmente para Livro de Orações. Um livro que ocupa a sua importância na Igreja Arménia e é comparado aos Salmos de David e às Confissões de Santo Agostinho

Embora muito ligados à tradição e orgulhosos do seu país, os arménios são também curiosos pela espiritualidade, presente nas paisagens do país, nos mosteiros, nas pessoas que nos olham com um sorriso nos olhos e com uma paz que se sente, sem ser necessário falar o mesmo dialecto. O nome do país deriva da palavra Haico, o grande patriarca da Arménia, tetraneto de Noé, descendente de Jafé, cuja história está presente no livro História da Arménia, de Moisés de Corene. Neste país, a liturgia ecoa além dos mosteiros, o som do espírito eleva-se e conduz-nos a uma outra dimensão, a uma paz plena. Muitas mais palavras podiam ser ditas sobre este magnífico lugar, onde se sente uma hospitalidade genuína e pura. O artesanato, a música, a liturgia, a agricultura, a arte, a arquitectura, o cinema de Parajanov, os poemas de Sayat Nova, as canções de Charles Aznavour fazem parte do património imaterial deste país que merece ser valorizado, por querer manter o que lhe é belo e por, ao mesmo tempo, desejar prosseguir, deixando para trás um passado que deixou marcas profundas. A diáspora ajudou-os a manter e preservar uma identidade tão forte: a de voltar a saborear o sumo da fruta que representa o país, a romã. Um lugar que deixo com o coração cheio e cujas memórias jamais serão apagadas.

The Color of Pomegranates, Sergei Parajanov

Texto: Priscilla Fontoura
Fontes: 
- Narek, São Gregório de Narek;
- Arménios e Gregos Otomanos, A Polémica de um Genocídio, Ligia Cristina Sanchez de Almeida

Imagens e Vídeos: © Priscilla Fontoura
Arménia, Outubro 2018, Agosto 2019
Um grande agradecimento: Viagens Shalom