terça-feira, 3 de setembro de 2019

O passado, presente e futuro coabitam num disco que é a soma de todas as partes. Fear Inoculum, o campo magnético que suga para o encontro espiritual.

Género: metal progressivo, metal alternativo, rock progressivo
Álbum: Fear Inoculum
Data de lançamento: 30 Agosto, 2019
Editora: 
Tool Dissectional, Volcano, RCA
https://toolband.com

Capa do álbum: Fear Inoculum, TOOL (Alex Grey)

Tool ao longo dos anos criou um micro-planeta que não tem sofrido grandes alterações desde o início da sua formação. Na mancha da sua crosta detectam-se símbolos que, ao se ser levado pela curiosidade, engolem como ímans para o núcleo onde se situam os significados e as metáforas - que têm vindo a enriquecer o conhecimento de muitos curiosos. Essa sucção dá início à entrada para outra realidade muito diferente, com os ouvidos atentos e os olhos esbugalhados a transformação acontece. 

Construindo líricas que soam familiares, apesar do seu cerne críptico e esotérico, Tool fez descobrir ou redescobrir ícones da cultura, como por exemplo, o comediante “fora-da-lei” Bill Hicks. Tool é literalmente uma ferramenta que gerou interesse por certos padrões de espiritualidade e deu uma liberdade férrea e determinada na conquista do conhecimento interior e exterior.

Foi com muita expectativa que se aguardou durante 13 anos pela quinta obra original da banda que brindou os fãs portugueses a 2 de Julho com um concerto em Lisboa, onde alguns temas do novo discos foram apresentados (Invincible, Descending e Cholocolat Chip Trip). A curiosidade aumentou assim como a expectativa. Foi no dia 30 de Agosto que o disco ficou finalmente disponível. Adepta da disciplina dos sábios, Tool nunca se submeteu à pressa ou ao mediatismo, aguardou sempre pelo tempo certo para lançar; assim a moral das letras de Maynard se reflecte na espera, inspirar para expirar. De acordo com alguns depoimentos prestados em entrevistas, todos os membros sempre decidiram em conformidade sobre quando lançar um novo trabalho. Tudo é pensado ao pormenor. Maynard diz a Joe Rogan que assim que Fear Inoculum foi lançado, foi como se um grande peso saísse dos seus ombros, porque, para si, lançar um álbum de Tool é sempre uma enorme responsabilidade; o conceito, a imagética, a estética sonora, o conteúdo lírico são pensados ao pormenor. Tool foi educando um público exigente e nunca se adaptou às mudanças dos tempos digitais, mas há pouco decidiu criar conta nos principais serviços de streaming e corresponder à vontade de muitos fãs entusiastas da realidade digital. 

Fear Inoculum é como um medley de despedida de todos os álbuns de Tool, assim como uma homenagem às bandas em que Maynard empresta a sua voz. Por exemplo, em 7empest aos '5:30 ouvimos:

Calm before the torrent comes 
Calm before the torrent comes 
Calm before the torrent comes 
Calm before the tempest comes to reign all over 

Esta linha poderia confundir-se com Puscifer, mas não, é Tool. Uma simbiose de personagens que também saltam para outros projectos do vocalista. No mesmo tema, e sem querer entrar em comparações, a guitarra de Adam Jones parece prestar tributo a King Crimson, os pais do rock progressivo, quase que poderia ser um plágio do riff de Robert Fripp de Frame by Frame do álbum Discipline, da nova fase da banda.

Quem gosta de Tool, sabe que não são apenas os contratempos e jogos rítmicos que fazem qualquer fã apaixonar-se pela banda, é muito mais, é o conteúdo que muitas vezes é metafórico, inteligente e filosófico; como se fosse uma caixa mágica cheia de camadas por descobrir. Enquanto nos álbuns antecessores encontram-se, nas letras de Maynard, revolta e frustração, em Fear Inoculum apresenta-se uma espécie de pacificação e reconciliação com o passado, uma maturidade que não aponta, que pouco critica e que pouco acusa, mas que o olha com compreensão e com mais paz de espírito.

O nome do quinto trabalho é portentoso e misterioso. Fear Inoculum está munido de 7 temas, à primeira vista, longos em termos de duração, característica a que os fãs de Tool já estarão habituados. O baterista Danny Carey gostaria que o novo álbum fosse lançado como uma faixa gigante em vez de estar dividido por sete faixas com interlúdios. 

Todos os membros juntam as influências que foram semeando ao longo das suas criações, a sofisticação técnica aproxima-se do registo que tentam materializar da forma mais transparente que conseguem, não só musical, mas também imageticamente. Exemplo disso, é a carreira artística de Adam Jones que começou na construção de dinossauros para o filme Jurassic Park e outros monstros, cujo término deveu-se para se concentrar a tempo integral em Tool. Na altura em que as portas se abriam, em que já começavam a exportar para outros países, Adam demitiu-se da sua vida dos estúdios de cinema para investir na sua carreira musical. A maior parte das pessoas que trabalhavam consigo desejaram-lhe boa sorte na sua aposta por não acreditarem que uma carreira numa banda de rock fosse beneficiá-lo. No entanto, Adam não se deixou influenciar pela falta de visão dos seus colegas e provou que a fé move montanhas, garantindo-lhe um lugar diferencial no mundo da música: além de ser um guitarrista com identidade própria, é também um artista visual que se destaca pela estética surreal e peculiar que comunica de lado a lado com a instrumentalização da banda; todo esse pacote criativo faz Tool chegar ao lugar que se encontra hoje. Tool é um campo magnético que suga quem anseia uma transformação. É sem dúvida a banda que consistentemente tem surpreendido pelas criações das capas dos álbuns. Fear Inoculum não é apenas uma experiência auditiva e espiritual, é também como cair numa outra realidade assim que se explora todo o trabalho iconográfico executado. Ao lermos toda uma série de opiniões e especulações dos fãs sobre o conceito imagético construído à volta do álbum, podemos concluir que de álbum para álbum a banda gosta de se auto-desafiar e surpreender os fãs pela mestria patente nos seus trabalhos.

O disco começa com o tema que dá nome ao álbum e depressa faz deslizar para o universo enigmático e misterioso que a banda conseguiu criar ao longo dos anos. Vemo-nos envoltos numa verdadeira redoma sónica, algébrica, tranquila e reconfortante onde ouvimos cada nota e intervalo numa sequência progressiva de ritmos que nos soam familiares, mas que, ao mesmo tempo, são novos e entusiasmantes. A voz de Maynard serpenteia e envolve cada ouvido com as suas palavras deambulantes. O vocalista tem prazer nas palavras, trata-as como saboreasse uma a uma e respeita-as. O verbo tem força e poder.

Fear Inoculum começa com toda a sua força e desliza antes de bater na cabeça do ouvinte com a bateria tamborilante de Danny Carey, com as guitarras pesadas de Adam, com o domínio rítmico de Justin, e com os vocais altos e ofegantes de Maynard. Começando com um prato tilitante e um toque de tabla oco, os preliminares médio orientais atingem o refrão arrebatador na linha: 

Exhale, expel
Recast my tale
Read my allegorical elegy

Um refrão que pede para expulsar o que faz mal, todo o medo que oprime, contagia e que castra qualquer evolução espiritual. Musicalmente é também uma alegoria ao tema Lateralus

Exorcise the spectacle
Exorcise the malady
Exorcise the disparate
Poison for eternity
Purge me and evacuate
The venom and the fear that binds me

Seguindo o ritmo, Maynard apela ao exercício com disciplina em tom meditativo para se conseguir expelir o medo que contagia, e a respiração faz parte desse exercício até que todos os instrumentos se libertam após o seu "mantra". 

Pneuma, Invincible e Descending é a tríade demolidora que se lhe segue e que nos faz imergir em melodias intrincadas, complexas e extremamente melódicas. Pneuma apela à imaterialidade, além de carne somos espírito, a essa noção de que a materialidade não sobrevive sozinha, depende da imaterialidade para se equilibrar. O sentido universal passa pela consciência de que somos só um e que a existência é inútil se não cuidarmos da Pneuma, cuja etimologia reside na respiração, no contexto religioso poderá ser interpretada por espírito.

We are spirit bound to this flesh
We go round one foot nailed down
But bound to reach out and beyond this flesh
Become Pneuma
We are will and wonder
Bound to recall, remember
We are born of one breath, one word
We are all one spark, sun becoming

Child, wake up
Child, release the light
Wake up now
Child, wake up

Child, release the light
Wake up now, child
(Spirit)
(Spirit)
(Spirit)
(Spirit)
Bound to this flesh
This guise, this mask
This dream

A cadência rítmica do tema bebe também das construções dos dois últimos álbuns anteriores. 

O momento mais inusitado, mas também o mais charmoso na sua imprevisibilidade e elemento surpresa, é o tema Chocolate Chip Trip, um tema instrumental de laivos fortes experimentais e com um solo de bateria que raia o impressionante.

7empest carrega uma toada forte, densa e complexa que nos embala e agita ao mesmo tempo, matando as saudades de Undertow e Aenima, colocando-se do lado mais agressivo e tempestuoso de Tool. A escrita do nome do tema é um piscar-de-olho ao número 7, um número pelo qual Maynard tem demonstrado interesse. O número que representa o descanso, o afastamento, foi ao sétimo dia que Deus descansou, e é ao sétimo dia que os judeus param para o Shabbat. É a soma do espírito (3) com a matéria (4), o caminho para a evolução espiritual, o triângulo (espírito) que se sobrepõe ao quadrado (terra); é aqui que se para e que a vontade do auto-conhecimento surge, de desvendar mistérios, da busca da espiritualidade, a hora do homem voltar-se para o sagrado. O sétimo caminho do Sepher Yetzirah é o da inteligência oculta e representa a combinação da fé e do intelecto. Tool é uma banda que se diferencia das demais, porque leva a quem os ouve "com ouvidos de ouvir" a procurar outros conhecimentos além da música. Quase que faz parte da exigência de cada membro da banda comunicar a mesma linguagem e receber essa reciprocidade de quem os ouve.
Os números são uma componente essencial da banda, que em discos anteriores aplicou a sequência Fibonacci nas suas composições. A matemática e geometria sempre foram áreas do conhecimento de preferência da banda e este disco não é excepção à regra nesse sentido. A cosmovisão da banda sente-se não só nas letras, mas também nas composições.

Estranhamente, o tema mais cativante e o mais pesado - até o mais convencional - aqui é o expansivo 7empest de 15 minutos, com mistura de guitarras rítmicas e solos flangeados, bateria rolante e um vocal furtivo e crescente de Maynard, com um refrão acusador: 

We know better
It's not unlike you
It's not unlike you
We know your nature

O conteúdo lírico persiste com o seu teor metafísico e revela alguns contrastes espirituais que existem dentro da banda. Por um lado, o interesse teosófico e no oculto que é alimentado por Danny Carey, por outro lado, o naturalismo transcendentalista de Maynard que acentua uma melhor e mais profunda ligação com a natureza, uma relação simbiótica entre humano-natureza - que chega a ser espiritual - e que relembra o movimento transcendentalista popularizado nos Estados Unidos durante o século XIX influenciado por vanguardistas como Ralph Waldo Emerson, Walt Whitman e Henry David Thoreau.
A natureza era importantíssima para os transcendentalistas e assumiam-na como uma entidade profundamente holística e de terapia saudável para o ser humano. 

Esta preocupação sensitiva com o mundo natural também está presente no cuidado de Maynard ao escolher os solos ideais para a plantação das vinhas. O documentário Blood into Wine sobre a produção de vinho é uma das coisas mais interessantes que o vocalista fez.


Colecção de imagens: instagram toolband

É também essa uma das características que define a banda, a preocupação e interesse dos membros da banda em cultivar e criar mais e melhor, independentemente da música. Esta criatividade incessante é acompanhada pelos fãs da banda que seguem os outros projectos musicais de Maynard, como A Perfect Circle e Puscifer e as esculturas de inspiração alienígena de Adam Jones, que contribuíram e continuam a enriquecer o imaginário visual da banda.

As artes visuais e plásticas são também elementos que mais os distinguem, tanto pela existência de Alex Grey, como pelos telediscos que detêm a sua marca peculiar e bem característica.

A arte de Alex Grey também se tornou irreconciliável do universo Tool. O artista norte-americano é multi-facetado, criando várias formas de arte além da pintura, como por exemplo, escultura ou instalações.

A sua arte é única e inspiradora, apoiada fortemente em conceitos filosóficos, espirituais e esotéricos. A sua preocupação com o mundo espiritual é muito característica e é também o fundador, juntamente com a sua mulher, da The Chapel of Sacred Mirrors em Nova Iorque, sendo uma igreja que se dedica à disseminação da arte vanguardista e visionária.

Além de colaborar com Tool e ter-se tornado um membro activo e imprescindível do universo da banda, a sua obra também apareceu em capas de bandas como Meshuggah, The Beastie Boys e a capa mítica do também ele mítico álbum dos Nirvana, In Utero.



Estas componentes visuais também acompanham o tempo e o processo de crescimento da banda e dos seus membros, notando-se até mudanças no logotipo da banda. O nome TOOL é agora escrito com linhas mais finas de inspiração egípcia, substituindo o tom mais carregado e pesado de anos passados.

A banda sugeriu e afirmou que o disco ilustrava o processo de envelhecimento e a sapiência que geralmente o acompanha. No entanto, as líricas são livres de interpretação e a banda prefere que assim o seja, dando espaço para o imaginário do ouvinte se tornar livre e solto.

Em jeito de curiosidade, fica a informação que após o nome do disco ser revelado, a palavra Inoculum foi uma das mais pesquisadas no dicionário online Merriam-Webster.

É-nos dito que tudo muda, mas Tool mantém-se fiel às suas raízes e estética, sem com isso descurar a possibilidade de experimentação subtil e da criação em Fear Inoculum de um disco maduro, progressivo, melódico e que, seguindo a linha criacional da banda, consegue surpreender e encantar. Alguns fãs poderão ter sentido algum desapontamento por aguardarem o factor ultra surpresa depois de tanto tempo de espera, no entanto, o amadurecimento da banda reflecte acima de tudo um compromisso com o passado que, embora esteja hoje musicalmente mais refinado, não se imiscui das suas bases para não se desvirtuar: Undertow, Aenima, Lateralus e 10 000 Days fazem parte não só da formulação matemática inteligente dos músicos, mas do espírito que os agita.

Deixamos uma pequena paródia escrita e realizado por Blake Studwell. Qualquer fã de Tool perceberá.



Texto: Cláudia Zafre, Priscilla Fontoura, SP
Imagens: Álbum Fear Inoculum, Colecção de imagens: instagram toolband


Tool: Danny Carey - bateria, sintetizador; Justin Chancellor - baixo; Adam Jones – guitarra; Maynard James Keenan - vocalista
Músicos adicionais: Lustmord - efeitos som ondas do mar e água
Produção, mistura e gravação: Joe Barresi
Masterização: Bob Ludwig
Produção: Tool
Engenheiros assistentes: Jun Murakawa, Morgan Stratton, Kevin Mills, Garret Lubow, Wesley Seidman, Scott Moore, Greg Foeller
Técnicos guitarra: Dan Druff, Tim Dawson, Scott Dachroaden, Pete Lewis, Sacha Dunable
Técnicos bateria: Bruce Jacoby, Jon Nikcolson, Joe Slaby, Junior Kittlitz
Faixas adicionais: Mat Mitchel, Tim Dawson, Andrew Means
Artwork e design
Direcção de arte, direcção de vídeo: Adam Jones
Cover art, booklet art, conceito video e direcção de vídeo: Alex Grey
Design e layout: Mackie Osborne
Efeitos visuais, design: Joyce Su
CGI: Matthew Santoro
Efeitos visuais: Ryan Tottle & Dominic Hailstone
Tool portraits: Sean Cheetham

Fotografia: Kristin Burns, Alex Landeen, Travis Shinn, Lee Young, Ann Chien