terça-feira, 17 de setembro de 2019

Vanguarda e Baladas nascem da união entre continentes, Mike Patton e Jean-Claude Vannier

Género: rock, alternativo, experimental, pop francês
Álbum: Corpse Flower
Data de lançamento: 13 de Setembro, 2019
Editora: Ipecap
https://mikepatton.bandcamp.com/album/corpse-flower


Mike Patton é um nome indissociável do tipo de música que não cessa de surpreender e evoluir de formas inovadoras. Dotado de uma criatividade ímpar e talento para se envolver em projectos musicais arrojados e eclécticos, Patton começou uma das suas míticas bandas, Mr. Bungle em 1985 com os amigos e colegas músicos Trevor Dunn e Trey Spruance.

Foi a sua participação em Mr. Bungle que lhe valeu o convite para juntar-se a Faith No More, uma das bandas mais marcantes de metal alternativo que funde o funk ao metal, criando um som único que marcou e continua a marcar gerações de músicos.

Patton nunca foi um homem de uma só banda e o seu imaginário musical sempre necessitou de vários terrenos férteis para crescer, por isso, Patton envolveu-se em variados projectos musicais que obtiveram sucesso junto da crítica e do público.

Fântomas, uma banda formada por Patton, Buzz Osbourne, Trevor Dunn e Dave Lombardo e que desbravou caminho no metal mais vanguardista e experimental, lançando em 2001 o inesquecível The Director’s Cut, um disco conceptual que reúne várias interpretações de temas carismáticos de bandas-sonoras de filmes. Uma brilhante colagem de sinfonias caóticas, mas melódicas que fundem o metal ao jazz, ao experimental e ao rock.

Tomahawk, com uma abordagem mais directa e rockeira, mas que surpreendeu tudo e todos em 2001 com o seu disco homónimo. Uma contagiante mistura de rock tradicional com o mais alternativo e uma pontada certeira de metal.

Tanto Tomahawk como Fântomas obtiveram reconhecimento mundial e fizeram vários digressões.

Incapaz de limitar a sua criatividade, Patton também se juntou a Dan The Automator no projecto Lovage que editou em 2001, Music to Make Love to your Old Lady by, provando mais uma vez o seu eclectismo e vontade de explorar novas e diferentes sonoridades.

Para alguns fãs e Pattonmaníacos, o seu projecto mais acessível comercialmente talvez seja Peeping Tom que une o talento vocal de Patton com beats virados para o trip-hop e o hip-hop.

A sua lista de colaborações é também extensa e fascinante, tendo colaborado com John Zorn, Kaada, Masami Akita (Maldoror), Rahzel, Dälek, The Dillinger Escape Plan, Zu e Naked City.

Corpse Flower, capa por Kenro Izu

E é este ano que surge a sua mais recente colaboração que resultou num disco editado este mês pela Ipecap. Corpse Flower é fruto da colaboração de Patton e do compositor francês Jean-Claude Vannier.

Ambos os músicos se demarcam pelo seu interesse em variados géneros musicais e o seu eclectismo contagiante reflecte-se nas suas criações. 

Vannier trabalhou e colaborou com vários músicos, inclusive Serge Gainsbourg e foi em 1972 que lançou o seu primeiro disco a solo, L’enfant Assassin des Mouches. Uma obra desafiante, intensamente exploratória e que funde o jazz ao rock experimental e psicadélico, música de inspiração carnavalesca e a inclusão de vários elementos sonoros orgânicos como sinos de igreja, sons de respiração, batidas de relógio e tantos outros sons da nossa realidade. Um disco que vale bem a pena escutar e experienciar visto estar disponível em algumas plataformas de streaming.

Ao escutarmos o trabalho do compositor francês percebemos que a colaboração com Patton é a junção de duas peças essenciais na engrenagem da música intrépida e criativa. Os músicos que planearam durante vários anos uma colaboração, encontraram finalmente o seu ano em 2019 para lançar Corpse Flower.

Uma das qualidades deste disco, e que talvez levante imediatamente bastante curiosidade, relaciona-se com o seu método de produção, pois o disco foi gravado em dois locais diferentes. Em L.A (EUA), Patton tocou com os músicos Smokey Hormel, James Gadson e Justin Meldal-Johsen e em Paris (França), Vannier contou com a colaboração da Bécon Palace String Ensemble, Didier Malherbe e Bernard Paganotti.

Corpse Flower junta as identidades e imaginários musicais dos dois músicos numa harmonia singular em que se destacam os blues, música cinemática, lounge e até reminiscências de chanson francaise. Esta mistura poderia ser inusitada se não fosse feita por dois músicos apaixonados pela exploração musical.

Ballade C.3.3 é o primeiro tema do disco e onde Patton recita algumas estrofes do poema de Oscar Wilde, The ballad of Reading Gaol.

Yet each man kills the thing he loves
By each let this be heard,
Some do it with a bitter look,
Some with a flattering word,
The coward does it with a kiss,
The brave man with a sword!

Some kill their love when they are young,
And some when they are old;
Some strangle with the hands of Lust,
Some with the hands of Gold:
The kindest use a knife, because
The dead so soon grow cold.

As estrofes são recitadas numa entrega vocal típica de Patton, mas que podem fazer lembrar a ferocidade contida e contagiante de Henry Rollins. Esta entrega vocal é feita acompanhada por uma guitarra eléctrica que se desfia em ritmos blues, um piano Rhodes que oferece textura e dinâmica e floreados agradáveis de harmónicas. É a introdução e as bem-vindas para a entrada num mundo sónico que despoleta o nosso imaginário para cenários soturnos, enigmáticos e sedutores. Como se David Lynch transformasse em imagens O Paraíso Perdido de John Milton, mas passado em Paris dos anos 60 em cabarets underground de reputação duvidosa mas intrigante.

O tema seguinte, Camion, já não se trata tanto de uma balada, mas de uma viagem sónica pelos trilhos sonoros que podem ser reminiscentes de passagens mais soalheiras de músicas dos Mr. Bungle.

Chansons d’amour é um tema que inicia com um piano algo melancólico e uma atmosfera cinematográfica de um encontro de dois amantes numa ruela obscura num dia chuvoso e cinzento. Dois amantes enclausurados na dinâmica perigosa, mas atraente de um amor proibido. A voz de Patton torna-se, por vezes, um quase sussurro que se reveste das notas do piano de Vannier. É como uma chanson francaise, mas negra e exploratória.

Cold Sun Warm Beer arrasta-nos novamente para um imaginário “bungliano” com a composição musical cerebral, mas imprevisível e a voz de Patton a ser acompanhada por um coro de várias vozes alteradas pelo compositor francês. É um tema impressionista e surrealista que faz lembrar a inventividade de Captain Beefheart.

Browning é talvez o tema que melhor ilustra a relação de dois músicos de origens bem diferentes, europeia e americana que se juntam para criar música. Existe a volatilidade de Mr. Bungle de Los Angeles que se une ao rigor clássico e refinado europeu. A voz de Patton contrasta e harmoniza com as secções de acordeão que relembram uma Paris boémia e alegre.

Hungry Ghost remete-nos para um universo que como indica a canção, é pleno fantasmagoria com uma instrumentalização críptica e dinâmica vocal que remete para o que é misterioso. Um tema que apesar de curto é intensamente experimental e progressivo.

O tema que dá nome ao disco, apresenta-nos um Patton com um registo vocal sussurrado e cortante, como se tivesse acabado de sair de um castelo na Transilvânia. A letra é um discorrer de cortes diferentes de carne, como filet mignon e afins. O verdadeiro terror de um vegan ou vegetariano. No tema, há espaço para explorar passagens de rock psicadélico que se imiscuem em melodias com um cerne de feira carnavalesca do inferno.

Insolubles é um tema que finalmente, tem nuances muito subtis de influência do médio-oriente, misturadas com arremessos de acordeão melancólico que está em sintonia com a toada vocal de Patton, ora lenta, ora mais solene e apaixonada.

On top of the world, tem assobios e uma letra iconoclasta, mas profusamente divertida. When I get on top of the world, I’ll take a shit right down on this Earth. Este excerto de lírica faz relembrar a agressividade engraçada e exuberante de Boris Vian que num dos seus poemas, escreveu

Tudo foi dito cem vezes
E muito melhor que por mim
Portanto quando escrevo versos
É porque isso me diverte
É porque isso me diverte
É porque isso me diverte e cago-vos na trombra

É ao mesmo tempo, o tema talvez mais acessível em termos de melodia e também o mais convencional em termos de composição.

Yard Bull é mais uma reviravolta surpresa no disco, levando-nos para um cenário de pradarias e do faroeste. Harmónicas que harmonizam com uma orquestra intenta em reproduzir a essência de um qualquer western alternativo.

A Schoolgirl’s Day é um exercício lírico interessante, visto que narra o quotidiano de uma rapariga de liceu. Os seus gestos e acções são nos narrados por Patton num registo de voz confidencial, ao mesmo tempo que é acompanhado por guitarras serpenteantes e momentos de apoteose e desconcerto que duram meros segundos.

Pink and Blue é o tema que encerra o disco e é talvez o mais carregado de temáticas complicadas como amor não reciproco e a sua ligação directa mas tortuosa com o alcoolismo. Nem todos os amantes sofredores bebem, mas praticamente todos os que bebem são amantes sofredores. Pelo menos, é o que se sente nesta música que é uma homenagem a uma das figuras da chanson francaise, Jacques Brel. Uma bela balada orquestral que é uma ode e um bálsamo reconfortante para todos aqueles que amam sem ser amados.

Corpse Flower revela-se em todas as suas pétalas melancólicas, mas de beleza singular como um disco que não teve medo de explorar diferentes sonoridades e que as acolheu com suprema inteligência, sensibilidade e criatividade. Consegue ao mesmo tempo transmitir e exalar melancolia com exuberância e sentido de humor. É um disco que reúne duas almas gémeas musicais que estiveram afastadas durante muitos anos e que finalmente conseguiram juntar as suas afinidades para criar este disco. Uma flor exótica, perigosa e bela que se enraíza imponentemente no oásis da música alternativa.

Outros músicos que participam no álbum: Smokey Hormel (Beck, Johnny Cash), Justin Meldal-Johnsen (Beck, Air, Nine Inch Nails) e James Gadson (Beck, Jamie Lidell). Os músicos parisienses são: Denys Lable, Bernard Paganotti (Magma), Daniel Ciampolini, Didier Malherbe, Léonard Le Cloarec e Bécon Palace String Ensemble.

Texto: Cláudia Zafre