segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Handwrist, um compositor inquieto e imune ao poder das redes sociais, encontra na espiritualidade o caminho para criar

O universo musical está em constante expansão. Novas ideias, abordagens e técnicas fazem com que a música nunca seja uma arte estacionária ou linear. 

Handwrist é o projecto musical do compositor Rui Botelho Rodrigues, um multi-instrumentista com uma capacidade para composições eclécticas com bastante conteúdo temático.
Este ano de 2019 já lançou quatro discos de originais com uma forte componente jazz, mas que também aflora outros caminhos, como o psicadélico, o progressivo, alternativo e até música clássica. 
O compositor multi-facetado une a sua espiritualidade à música que faz, tornando-a complexa, abrangente e aventureira. 

(imagem cedida pelo músico)

- Além de seres um músico produtivo, tens uma discografia imensa que se destaca primordialmente por conter temas que achas interessante e te causam fascínio. O teu mais recente disco, THE GOLDEN SWAN - editado este ano -, reflecte o teu interesse por civilizações e povos ancestrais, podes falar um pouco mais desse tema e o que mais te fascina nesse passado?
RBR: Desde pequeno que tenho interesse em civilizações e culturas ancestrais e todas as disciplinas que as estudam. O que me fascina é poder compreender o presente e o futuro, e penso ser impossível fazê-lo sem compreender e conhecer o passado. Sem sabermos de onde viemos, não sabemos quem somos, nem para onde vamos.

"Um dos 'temas' ou melodias principais do álbum, que vai aparecendo aqui e ali transfigurado de uma forma ou outra, foi composto quando tinha 17 anos, e já teve várias versões, originalmente chamava-se 'At the Gloomy Carnival' e não tinha nada a ver com o país Basco, mas antes com uma sensação que sempre tive desde miúdo de que feiras populares têm algo de filme de terror, no sentido sobrenatural."


- Seguindo a lógica da tua visão, a de querer ter tido a vontade de trabalhar com vozes cantadas em basco, que tipo de intenção gostarias de ter passado se tivesses tido a oportunidade, a de recuperar uma memória que nos aviva um passado capaz de nos levar às origens das línguas europeias? 
RBR: Recentemente li algumas coisas sobre os Bascos e descobri que são o único povo moderno na Eurásia cuja língua e cultura resistiram à influência indo-europeia (da qual todas as outras línguas europeias, do Médio Oriente e da Índia descendem). Achei isso bastante interessante e que poderia ser uma janela para um mundo extinto, e por isso decidi que a história do álbum seria passada no país Basco, em quatro fases de civilização. Penso que cada língua tem a sua própria música, mesmo entre línguas com a mesma origem, por exemplo, o Português e o Espanhol apesar de muito próximos, expressam formas de ser e sentir diferentes. Obviamente sabia que não conseguiria concretizá-lo, mas achei que seria útil que se compreendesse a intenção pelo menos, dado que a história que escrevi se passava lá (mas acabei por não publicar com o álbum, ao contrário do que fiz com álbuns passados). A história começa no período da invasão Romana, e acaba com o domínio final dos mesmos sobre a região.

- Em THE GOLDEN SWAN há quatro movimentos do que idealizaste como uma só peça. O que daí resulta é homogéneo e harmonioso por ser bastante fluído. Como decorreu o processo de composição? E como se quebram e unem essas partes, como se distinguem e unificam?
RBR: É difícil descrever o processo porque é muito intuitivo, muitas vezes nem eu sei racionalizar que sons saem de onde ou vão para onde. Um dos "temas" ou melodias principais do álbum, que vai aparecendo aqui e ali transfigurado de uma forma ou outra, foi composto quando tinha 17 anos, e já teve várias versões, originalmente chamava-se "At the Gloomy Carnival" e não tinha nada a ver com o país Basco, mas antes com uma sensação que sempre tive desde miúdo de que feiras populares têm algo de filme de terror, no sentido sobrenatural. Outros temas fui compondo durante os três anos em que não lancei nada. A parte mais trabalhosa é mesmo misturar estas ideias todas num todo coerente, mas é difícil descrever como se faz a não ser que dê muito trabalho e que se passe muitas horas a tentar coisas e a deitá-las para o lixo antes de ter algo digno de lançar.

"A primeira banda que me influenciou a sério e me levou a pegar na guitarra e aprender as músicas foram os Alice in Chains, aos 12. Depois disso, aos 17, quando comecei a expandir as minhas audições para além do rock, descobri Frank Zappa, que me abriu os horizontes em todas as direcções musicais possíveis e mudou para sempre a minha vida, embora hoje já não o ouça muitas vezes."


(imagem cedida pelo músico)

- O teu eclectismo musical e capacidade para fundir vários géneros musicais resultam numa obra interessante e diversa, quais as tuas principais influências no inicio do teu percurso enquanto compositor?
RBR: A primeira música que me lembro de me tocar de forma profunda foi uma versão editada da Tocatta e Fuga em Ré Menor do Bach, que dava no genérico de uns desenhos animados de uma série educativa chamada "Era uma vez o Homem" que tinha em cassetes e que falava sobre a história humana. Adorava a série e a música, em especial os primeiros episódios sobre história antiga, e adorava o genérico e a música do Bach. Tinha uma colecção de Cds de música clássica que o meu pai me deu que rodava algumas vezes, mas particularmente estas duas faixas do Bach. Devia ter uns 6 ou 7 anos. Depois disso, a primeira banda que me influenciou a sério e me levou a pegar na guitarra e aprender as músicas foram os Alice in Chains, aos 12. Depois disso, aos 17, quando comecei a expandir as minhas audições para além do rock, descobri Frank Zappa, que me abriu os horizontes em todas as direcções musicais possíveis e mudou para sempre a minha vida, embora hoje já não o ouça muitas vezes.

"Uma das coisas que gosto na música é que é necessariamente abstracta."


- Este ano já compuseste e editaste 4 discos. Tribulation, Pilgrimage, Paranoia Hotel e mais recentemente, The Golden Swan. Todos os discos reflectem temas independentes, mas existe algum fio condutor indelével entre os discos que consigas apontar?
RBR: Uma influência que o Zappa teve em mim foi aquilo que ele chamava de "conceptual continuity" e tento espelhar isso na minha música, reinventado temas, transfigurando-os, etc. Em termos de temas no sentido não-musical, Tribulation e Paranoia Hotel estão mais em linha numa espécie de crítica do mundo moderno (uma linha que já tinha começado com Metropolis). Pilgrimage é mais uma meditação bucólica. O único fio condutor realmente é a minha disposição pessoal, que tende a ser negativa quanto ao mundo ultra-tecnológico, as grandes cidades, a alienação resultante e por aí fora – sendo que mais ou menos metade dos álbuns criticam esse mundo e a outra metade celebra o mundo alternativo da ligação à natureza e ao Divino.



"Eu tive contas no facebook e twitter, mas o contacto extra que tinha com os fãs não justificava os negativos. Acho que toda a gente faria bem em sair das redes anti-sociais. São um feedback loop de narcisismo, histeria e ódio em que ninguém se entende e só servem para grandes corporações venderem coisas de forma mais eficiente. Escolho não participar e encorajo sempre que posso outros a não participar também. Se perdi alguns ouvintes por isso, acho que é um preço pequeno a pagar."


- Paranoia Hotel tem como tema o vazio existencial que advém da obsessão pelo materialismo que predomina na sociedade actual. Achas que é o dever de alguma arte, em particular a música, alertar para os riscos e perigos de uma sociedade excessivamente narcisista e materialista? 
RBR: Acho pelo menos que é o meu dever não perder a oportunidade de encaminhar o ouvinte para as ideias que me animam o espírito e que me guiam na vida. Não sei se a arte tem esse dever ou não. Eu sinto que tenho esse dever. Mas sei que a arte pode e deve ser muitas vezes um escape, não um confronto, com o mal que há no mundo. Por isso, 50/50 talvez. Por outro lado, não tenho qualquer problema se os ouvintes preferirem simplesmente ouvir os sons sem tirar nenhuma conclusão. Uma das coisas que gosto na música é que é necessariamente abstracta.

- A tua relação com as redes sociais não é muito "directa", não achas que hoje em dia, para um músico poder divulgar o seu trabalho, é necessário estar ligado às mesmas?
RBR: Eu tive contas no facebook e twitter, mas o contacto extra que tinha com os fãs não justificava os negativos. Acho que toda a gente faria bem em sair das redes anti-sociais. São um feedback loop de narcisismo, histeria e ódio em que ninguém se entende e só servem para grandes corporações venderem coisas de forma mais eficiente. Escolho não participar e encorajo sempre que posso outros a não participar também. Se perdi alguns ouvintes por isso, acho que é um preço pequeno a pagar. Mas acho que nem isso. Se olhar para as estatísticas do bandcamp vejo que tenho mais ouvintes agora do que quando tinha contas em redes sociais. Mas percebo no entanto que para uma banda que dê concertos regulares, por exemplo, seja uma ferramenta difícil de rejeitar. Para mim, não faz grande diferença.

"A espiritualidade é a coisa mais importante na minha vida e desde o primeiro álbum que incorporo isso na minha música. Sei que não é comum neste meio e percebo que cause alguma estranheza, mas por outro lado é-me completamente natural e espero que possa causar alguma curiosidade sobre o assunto em quem nunca pensou sobre isso e tem ideias preconcebidas sobre a combinação entre espiritualidade e música."



- No teu trabalho sente-se uma miscelânea de influências e estados de espírito; humor, sentido de detalhe, de liberdade, de várias ideias num só tema, de profundidade e complexidade. Achas que o jazz é o género mais apropriado para exprimir todos esses estados?
RBR: Embora a minha música tenha influências de jazz, e explore harmonia que é muitas vezes associada ao jazz, eu não diria que o que faço é jazz. Tento encontrar um equilíbrio entre rock, jazz e música clássica. Penso que o jazz, entendido em moldes mais estritos do século XX, não consegue exprimir tudo. Mas também muitas coisas hoje categorizadas como jazz eu nunca diria que eram jazz. Fusão talvez. Mas o jazz verdadeiro, acústico, para mim morreu com Charles Mingus. O Zappa tinha uma piada com a qual concordo que diz: Jazz is not dead, it just smells funny. É esta sensação que tenho quando oiço a maioria do jazz moderno.

- Por um lado, os baixos orçamentos permitem trabalhar as ideias de uma forma menos rebuscada, por outro lado poder trabalhar com orçamentos mais altos permite uma liberdade passível de materializar toda a estética idealizada; o que mudarias no disco, caso tivesses a oportunidade de trabalhar com um apoio financeiro maior?
RBR: Contrataria músicos, salas de ensaios e de gravação. E provavelmente tirava uma licença no trabalho para ter tempo de os dirigir. A grande mudança seria nos sons, que seriam orgânicos, e com muitos instrumentos acústicos, uma espécie de grupo metade jazz metade clássico. Como nunca pude experimentar, não sei bem o que ia sair dali. Se calhar saía pior a emenda que o soneto. Talvez um dia possa vir a saber.


- Agradeces a todos os que apoiaram a construção do álbum, nomeadamente à tua esposa, e dedicas o álbum a vários monstros/mestres da música. São eles que te movem a fazer mais e melhor? Uma curiosidade pouco comum, pelo menos no nosso país, é observar um músico, com referências tão eclécticas que pertence ao espectro do jazz, agradecer a Deus. A espiritualidade é importante na tua vida?
RBR: Obviamente a minha mulher tem uma grande influência e dá-me todo o apoio necessário, sendo a moldura indispensável fazer o que faço. Este álbum em específico dediquei a músicos de língua francesa que me influenciaram muito ao longo dos anos, e que ouvi bastante enquanto fazia este álbum em particular. Mas não diria que eles me movem. Nunca tive problemas em me motivar. A única razão porque não lancei nada durante três anos foi porque tive outros projectos não-musicais em que estive envolvido, mas continuei a compor – daí a avalanche de álbuns este ano. O próximo álbum, que espero lançar ainda este ano também, será precisamente relacionado com a minha espiritualidade – e será sobre 40 mártires Cristãos na Arménia, em 320AD. A espiritualidade é a coisa mais importante na minha vida e desde o primeiro álbum que incorporo isso na minha música. Sei que não é comum neste meio e percebo que cause alguma estranheza, mas por outro lado é-me completamente natural e espero que possa causar alguma curiosidade sobre o assunto em quem nunca pensou sobre isso e tem ideias preconcebidas sobre a combinação entre espiritualidade e música.

Texto: Cláudia Zafre
Entrevista: Cláudia Zafre e Priscilla Fontoura
Entrevistado: Rui Botelho Rodrigues
Imagens: cedidas pelo músico
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