A evolução das expressões artísticas passa, em certa medida, por alterações, graças ao avanço tecnológico para se reinventar a si mesma, anunciando novas ambições para a arte. Nos dois últimos séculos, os museus e as galerias passaram a adaptar-se às exigências da transformação artística que, no decorrer do tempo, reinventou-se com novos formatos, novas estéticas e abordagens.
No passado fim-de-semana, nos dias 16 e 17 de Novembro, no Auditório de Serralves, o Color Sound Frames mostrou projectos nacionais e internacionais de artistas que têm encontrado resposta nas reconfigurações criativas, nomeadamente, na expansão das relações entre imagem em movimento e o som/música. Para alguns, nesta era pós-digital, tem sido premente regressar às técnicas convencionais para reinventar um futuro que não se esquece de um passado a ser recuperado. Através da exploração analógica e digital, o Color Sound Frames pretende dar visibilidade a práticas experimentais no cruzamento entre imagem e música/som.
Imagem original de Hashem Al Madani & Akram Zaatari cortesia do Arab Image Foundation refotografada e tratado por Charles-André Coderre
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JERUSALEM IN MY HEART: Radwan Ghazi Moumneh e Charles-André Coderre, uma dupla vital; performance 17 de Novembro
Um palco recebe um homem com traços médio orientais, vestido de negro com os olhos escondidos pelos óculos de sol, apenas iluminado por um pequeno foco de luz baixa. Sente-se mistério no ar. No centro daquela plateia encontra-se Erin Weisgerber (apresentando o trabalho da sua amiga Charles-André Coderre) rodeada por várias fitas de filme em 16 mm. À sua frente estão três projectores analógicos. E eis que no espaço de um silêncio é-se num instante sugado para a diversidade sonora da bela capital Beirute, chamada, em tempos, a Paris do Médio Oriente, a da década de 70 do século XX, que transitava de um período de paz para a guerra causada pelo confronto armado entre facções muçulmanas e cristãs. Uma guerra que durou 15 anos e deixou um saldo de mais de cento e cinquenta mil mortos.
Beirute traz saudades aos libaneses que foram obrigados a sair do país para escapar à guerra - a cidade situada na costa leste do Mar Mediterrâneo, considerada a mais bela e desenvolvida cidade do Médio Oriente. Original da terra do cedro do Líbano, Radwan Ghazi Moumneh, a cara de Jerusalem in My Heart, traz, ao Auditório de Serralves, o cheiro desta terra tão prolífera no passado recente da história moderna. O produtor e o músico nasceu no Líbano, mas passou grande parte da sua vida em Montreal, tocando e colaborando com várias bandas notáveis da década de 90 (Suuns, Mashrou' Leila, Matana Roberts, Ought, Howard Bilerman, Efrim Menuck e Thierry Amar).
Sente-se saudosismo e intensidade no som que faz. JIMH nasceu na forma de performance ao vivo site specific abraçando uma variedade de elementos multimédia.
Imagem original de Hashem Al Madani & Akram Zaatari cortesia do Arab Image Foundation refotografada e tratado por Charles-André Coderre |
A partir de 2012, as apresentações de JIMH procuram outra direcção conceptual, passam a uma dupla que utiliza, nas suas performances ao vivo, imagens analógicas de filmes em 16 mm projectadas em repetição. É de cortar a respiração a performance de Weisgerber, qual polvo que manuseia com os seus tentáculos serpenteantes 3 máquinas de projecção de filme consecutivamente, como um verdadeiro mestre que dança para sentir o tempo do metrónomo enquanto, ao mesmo tempo, sincroniza as fitas para mostrar um filme em tempo real. A sua identidade visual completa a riqueza sonora de Moumneh, utilizando imagens de arquivo da Arab Image Foundation re-fotografadas por Charles-André Coderre e submetidas a tratamentos químicos experimentais da sua própria invenção. Erin Weisgerber não pára. A sua performance é dinâmica e frenética, desliga e liga as luzes dos projectores, as suas mãos fazem sombras, e vai correndo as fitas para, de uma maneira muito sensível e refinada, editar uma peça. Moumneh cruza o passado com o presente colocando sempre os olhos no futuro, todos esses tempos transformam-se no agora que Moumneh e Weisgerber pretendem reconstruir. Em JIMH a identidade e a estética audiovisual não separam o oriente do ocidente, transformam estes dois pólos num centro, nascendo assim uma criação intencional às distorções da cultura árabe das cassetes que se ligam às correntes modernas da música electrónica. Esta simbiose é feita pela utilização de instrumentos tradicionais como o buzuk e o canto melismático que abraça sons pop vanguarda para experimentar e dar à luz um renascimento sónico, através de sintetizadores modulares, bancos de filtros, power electronics, gravações de campo, etc.
Erin Weisgerber |
Moumneh apresenta o seu mais recente disco Daqa'iq Tudai, o artwork foi realizado pela artista Charles-André Coderre. Este último trabalho confirma que a reconstrução não separa o passado do presente, transformando toda a cronologia numa só temporalidade vanguardista e contemporânea do Médio Oriente. O título do álbum pode ser traduzido para “minutos que incomodam e oprimem” em que os dois lados paradoxais da música são mostrados. Após o aclamado lançamento de 2015 If He Dies, If If If If If, JIMH continua a expandir os horizontes do profundo conceito estético das tradições árabes.
A actuação deste duo hipnotiza-nos e não nos leva a outros lugares senão ao exotismo do Médio Oriente, cuja camada de ar faz sentir a mistura de cheiros a especiarias e flores. Nas projecções são exibidas caras que desconhecemos, mas que representam um passado trágico sócio-político do país de Moumneh. Ouve-se o tema Bein Ithnein, a percussão darbuka serve de base para os sons modulados assentes no improviso e experimentalismo. O tema Thahab, Mish Roujou', Thahab desdobra-se em manobras luxuriantes, lânguidas encharcadas de reverb através de mudanças virtuosas de Maqam (escalas orientais). Os vocais melismáticos de Moumneh e a sensibilidade à produção electrónica homenageiam as tradições históricas documentadas do género. Por mais que o experimentalismo seja a base da viagem audiovisual deste duo, nada é feito ao acaso, tudo é empurrado de maneira subtil e delicada para novos territórios de distorção sónica carregada de plasticidade e artefactos. A música de JIMH é reconfigurada através da exploração com mais complexidade, que não se esquece da tragédia do passado para o prefigurar noutra estética formal recriando outra peça em si. Desde o 11 de Setembro de 2001 que o Ocidente tem olhado para o Médio Oriente com desconfiança. Tanto de um lado como do outro é partilhado um passado recente conspurcado pelo ódio e oportunismo, virando as costas ao amor e dando lugar à política. JIMH pretende estabelecer essa ligação através do amor, mostrando ao Ocidente a beleza que existe no Médio Oriente. O trabalho audiovisual é, neste contexto, o veículo que transporta esperança para o futuro sem ignorar o passado.
Incidence of Light, de Mariska de Groot
Incidence of Light de Mariska de Groot, a escultura que converte luz em som; instalação
Hoje em dia a arte não encontra limites no que diz respeito ao seu modo de fazer. A instalação "Incidence of Light" de Mariska de Groot, patente no Foyer do Auditório de Serralves, foi criada a partir de LEDS brancos, máscaras e espelhos rotativos, diferentes frequências de luz que espreitam através das pequenas aberturas de uma partitura gráfica cilíndrica em rotação lenta, traduzindo-se numa escultura que transforma o reflexo da luz intermitente de alta frequência em som. As sombras tornam-se silêncios rítmicos e os gradientes de cinzento determinam o volume. A escultura cinética light-to-sound (luz-para-som) explora a noção de som óptico. Mariska pretende expandir as invenções do passado para uma nova abordagem multissensorial a partir da luz, som, movimento e espaço.
Hoje em dia a arte não encontra limites no que diz respeito ao seu modo de fazer. A instalação "Incidence of Light" de Mariska de Groot, patente no Foyer do Auditório de Serralves, foi criada a partir de LEDS brancos, máscaras e espelhos rotativos, diferentes frequências de luz que espreitam através das pequenas aberturas de uma partitura gráfica cilíndrica em rotação lenta, traduzindo-se numa escultura que transforma o reflexo da luz intermitente de alta frequência em som. As sombras tornam-se silêncios rítmicos e os gradientes de cinzento determinam o volume. A escultura cinética light-to-sound (luz-para-som) explora a noção de som óptico. Mariska pretende expandir as invenções do passado para uma nova abordagem multissensorial a partir da luz, som, movimento e espaço.
António Caramelo vs. Demónio António
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António Caramelo vs. Demónio António – fragmentos de imagens-da-memória; performance 16 de Novembro
A performance de António Caramelo divide-se em duas partes que se entrecruzam, um projector analógico exibe imagens-da-memória que se suportam na colecção de histórias de Samuel Beckett, Texts for Nothing. Assim se faz uma viagem que recorre a imagens-da-memória para reinterpretar fragmentos de histórias e lugares. O drone na primeira parte arrasta-se por toda a peça e sons modelados procuram na desfragmentação das imagens a cosedura possível para uma nova construção narrativa experimental. Um segundo filme conduz o público a uma imersão onírica em torno da memória-das-não-imagens jogando com a efemeridade desfeita pela própria ilusão.
A performance de António Caramelo divide-se em duas partes que se entrecruzam, um projector analógico exibe imagens-da-memória que se suportam na colecção de histórias de Samuel Beckett, Texts for Nothing. Assim se faz uma viagem que recorre a imagens-da-memória para reinterpretar fragmentos de histórias e lugares. O drone na primeira parte arrasta-se por toda a peça e sons modelados procuram na desfragmentação das imagens a cosedura possível para uma nova construção narrativa experimental. Um segundo filme conduz o público a uma imersão onírica em torno da memória-das-não-imagens jogando com a efemeridade desfeita pela própria ilusão.
Demdike Stare & Michael England – o aspirador que engole para um buraco negro; performance 16 de Novembro |
São três homens presentes no palco, os Demdike Stare formados em 2009 (Sean Canty e Miles Whittaker) e o artista visual e cineasta Michael England. Não há grande disparidade de intensidade no som, tem quase sempre uma aura negra e possante como se sugasse para um buraco negro. A partida visual de Michael England é feita por algoritmos, uma espécie de MS-DOS complexo, transformado em ondas movimentadas pela vibração sonora que desaparece assim que se pisa a Terra. Aqui há paisagens que remetem para a realidade como a conhecemos. O confronto entre o planeta, que parece desabitado, transita para o submundo marginal ocupado por pessoas que fogem dos padrões “normais”. São convidadas a participar num filme sombrio porque pertencem ao submundo marginal, onde são exibidos penteados de todos os formatos, piercings, tatuagens, traços faciais peculiares; é o paradoxo entre a natureza e a plasticidade, mas tudo isto faz parte da existência. No tema Savage Distort, dos Demdike Stare é mostrada a performance de uma nipónica que nos assombra com movimentos tortos e expressões intimidantes num ambiente pesado e escuro.
Os músicos reconhecidos no seio da cena musical de Manchester apresentam sonicamente um submundo que conhecem bem, uma espécie de freakshow suportado em sons sombrios e frequências baixas, remetendo para Buraka som Sistema e Aphex Twin, bandas sonoras sinistras com elementos de dub, dancehall, jungle, garage e grime.
Canty e Whittaker têm sido responsáveis pelo conjunto de edições essenciais incluindo discos de Shinichi Atobe, Mica Levi e Equiknoxx. Michael England, também conhecido pelo trabalho com editoras históricas de música electrónica como a Skam e a Warp Records, inserindo o design, logotipos e projecções ao vivo para artistas como Autechre, Bola, Meam, Mayming, Graham Massey ou Leila.
A tela exibe espaços que fazem parte de dois mundos diferentes, a massificação dos espaços turísticos (As Cataratas do Niágara e o Museu Madame Tussauds), que remetem para uma sociedade alimentada pelo consumismo meramente estético, dependente de imagens que geram mais poluição mental. Partindo da ideia de Platão, depender de imagens remete, novamente, para a condição de observadores de sombras reflectidas no mundo em que vivemos, essa tal caverna.
Ao passo que na China a fotografia caminha ao serviço da propaganda política, os limites da expressão fotográfica constrangem qualquer vontade de subversão; nas sociedades capitalistas do ocidente explora-se desmedidamente o valor das imagens, própria de uma prática de consumo que não ignora a restrição da sua produção; uma liberdade que tenta suprir o vazio provocado pelo extremismo do consumo, alimentando-se assim sem limites de uma pluralidade de imagens. A produção de imagens constitui uma fonte inesgotável que, se muito explorada, conduz ao desgaste que a poderá tornar obsoleta.
O programa Color Sound Frames mantém-se fiel ao carácter exploratório, estabelecendo a ponte entre o analógico e o digital. Quando diz respeito ao acto de criação toda a exploração é necessária.
Texto: Priscilla Fontoura
Imagens: Priscilla Fontoura e SP
Frames: Hashem Al Madani & Akram Zaatari, cortesia do Arab Image Foundation refotografada e tratado por Charles-André Coderre, Michael England
Performances e Instalação: António Caramelo vs. Demónio António, Demdike Stare &
Michael England, Mariska de Groot, Jerusalem in my Heart
Local: Auditório de Serralves
Datas: 16 e 17 de Novembro, 2019