segunda-feira, 30 de março de 2020

Numa relação séria com a Netflix: Self Made: Inspired by the Life of Madam C.J. Walker



A abolição da escravidão, uma reflexão

Hoje abordamos mais a questão da escravidão do que a série que sugerimos Self Made: Inspired by the Life of Madam C.J. Walker.

Ao que tudo indica a palavra escravatura é um quanto confusa, mas mais do que isso, é propositadamente confusa. Porque como tantas outras, o seu significado resvala nas circunstâncias dos tempos, alterando o seu sentido por causa das imposições políticas e sociais das épocas. Portanto, a confusão não foi criada pelos que agora a utilizam e se limitam a reproduzir um mau uso herdado, deve-se, em grande suma, pelos que no século XIX começaram a utilizá-la com duplo ou triplo significado.

Ao contrário da língua portuguesa de Portugal, os brasileiros, talvez por ter sido um país colonizado e por ainda hoje sofrer as más atitudes e decisões do passado, continua a utilizar o uso correcto das palavras. Para os brasileiros, a compra e venda de escravos refere-se a tráfico de escravos, o domínio absoluto de uma pessoa sobre outra e respectiva descendência, que ficam sendo sua posse, aplica-se a «escravidão»; e «escravatura» é apenas outra forma de dizer «escravaria», uma grande quantidade de escravos.

Os portugueses permitiram que no decorrer do tempo as terminologias se alterassem, deixando que a terminologia correcta para escravatura – mais usualmente sinónimo de «escravidão» –, se misturasse numa miscelânia de significados, que origina pelo menos da década de 1830 e do tempo em que Portugal esteve fortemente pressionado por Inglaterra para suprimir o tráfico negreiro que se fazia por via marítima. Devido à pressão inglesa que Portugal desenvolveu a tese falaciosa de que fora o primeiro país a abolir a escravatura, quando essa "abolição" de facto referia-se apenas ao tráfico de escravos numa parcela do seu território, não à escravidão que só vinha a ser abolida de forma gradual entre 1854 e 1875.

A prática da escravidão é uma das mais terríveis manchas da história da humanidade. O chamado Mundo Novo precisava de mão de obra para o seu desenvolvimento, e assim muitas civilizações nasceram e imperaram. Um número incalculável de africanos foi escravizado, subjugado e levado para as Américas. Vários movimentos nasceram a partir dessa crise de valores, em 1871 foi promulgada a Lei do Ventre Livre que concedia a liberdade a todos os filhos de escravos nascidos a partir daquela data. Em 1885, a Lei do Sexagenário libertou os escravos com mais 60 anos. Somente em 1888, com a assinatura na lei Áurea pela princesa regente Isabel, é que foi proclamada a libertação dos escravos no Brasil.

A norte da América a escravidão sofreu também um tempo manchado com sangue, dor e sofrimento, por isso vislumbrava em Sião a libertação que "abria o mar" à construção de uma vida livre e protegida nessa terra prometida, sendo assim uma alegoria à terra da libertação evocada nas canções durante o exílio. Aquando da adaptação, após a libertação da escravidão subjugada em grande parte ao trabalho da plantação, a catarse era feita nas entoações de canções spiritual e gospel, géneros que deram luz a outros como o jazz e a música de intervenção. 

Cartaz da série Self Made: Inspired by the Life of Madam C.J. Walker 

Do legado da lista de afro-americanos que conseguiram sair do jugo da escravidão para se tornarem empreendedoras salta à vista o nome C.J. Walker, uma das pioneiras do ramo da estética afro-americana, cuja vida é retratada agora na série distribuída pela Netflix "Self Made: Inspired by the Life of Madam C.J. Walker". A realização de Kasi Lemmons é criativa, vários mediuns são misturados para criar uma narrativa ritmada e actual. Há 20 anos que Kasi Lemmons começou a pesquisar a vida da empresária de produtos de cabelos Madame C.J. Walker, uma mulher negra que se tornou a primeira milionária feminina nos EUA. Por ter ficado convencida de que era uma história extraordinária e que merecia enfoque, a série retrata a vida desta mulher capaz de navegar um mar turbulento, em plenos anos 1900 e conseguiu, destemidamente, acabar a viagem com resiliência e sucesso. Por isso, Lemmons decidiu debruçar parte da sua pesquisa na vida de uma lavadeira, filha de escravos. A série é dividida em quatro partes e Octavia Spencer é a protagonista da história. A série reintroduz ao mundo a figura de C. J. Walker, cujo nome muitos já ouviram, mas poucos exploraram por completo.


Esta proposta não se fica apenas pelo convite para visualizar a série; referir o contexto que se debruça sobre a designação e evolução da palavra "escravidão" levanta uma reflexão que deve ser feita para que se entenda as mentalidades vigentes. Esta história - como tantas outras que retratam a temática - não só diz respeito a muitos afro-americanos e a afro-brasileiros, que vingaram na vida com muita superação e fé, mas, sobretudo, a todos nós. No entanto, nos dias de hoje, poder-se-ia aplicar a palavra escravidão a outros contextos, inclusivamente às relações interpessoais em que um pretende sobrepor-se ao outro sem olhar à sua liberdade e diferença. 

Texto: Priscilla Fontoura
Série: Self Made: Inspired by the Life of Madam C.J. Walker 
Frames: Série Self Made: Inspired by the Life of Madam C.J. Walker