terça-feira, 21 de abril de 2020

Mário Vitória: Os artistas e as artes são como que JEDIS, reorganizam e equilibram as forças, ampliam e libertam as mentes colonizadas

A arte como meio de comunicação tem o poder de transformar realidades. Talvez seja de todas as outras disciplinas a que mais poder causa sem assumir ideias fechadas em si mesmas, caso contrário ganharia tendências propagandísticas. Mais abstracta ou mais directa à interpretação, a honestidade faz parte de quem lhe coloca alma. É então com o poder do imaginário que surge uma espécie de nuvem protectora que possibilita a catarse criativa, deixando o medo ser um tropeço para passar a ferramenta útil ao acto de criação.

Mário Vitória nasceu em 1983. Realizou estudos intermédios em Lyon (França), Bolonha (Itália) e Sheffield (Inglaterra). Licenciou-se na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. Mestre pela mesma Faculdade em Práticas e Teorias do Desenho. É mestre também pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação do Porto na área das Artes Visuais. Sobre a sua obra já escreveram vários autores da cultura Portuguesa, como Boaventura de Sousa Santos, João Pinharanda, Bernardo Pinto de Almeida, Fernando António Baptista Pereira, Laura Castro, Gonçalo M Tavares, Ana Zanatti, José Luís Peixoto, Valter Hugo Mãe, Artur Cruzeiro Seixas, Manuel António Ribeiro e Ana Luísa Barão.

Pretérito Perfeito, 2017; acrílico sobre tela - © Mário Vitória

Muitos pensam que as referências nascem de se olhar para outros autores e não pelo escutar os pormenores que acontecem à volta, quando são esses muitas vezes que realmente sopram ao ouvido e impelem a “comunicar”. O imaginário de "Pretérito Perfeito", criado em 2017, pretende ser quase um “statement” idealista porque as mensagens são claras. No seu trabalho a mensagem parece ser crucial. Como as edita para confinar tudo a um só “capítulo”? 
A obra Pretérito Perfeito, fala de uma cumplicidade entre Deuses que têm um plano para um mundo melhor. No entanto, como o título sugere trata-se de um tempo verbal que ocorreu no passado, existe o indício de uma ancestralidade ideal, como que uma necessidade de regressar à fonte para encontrar a emissão correcta. Esta obra tem em si um certo grau de idealismo nesse aspecto, ou utopia, como que se a palavra “perfeito” não nos fosse acessível, porque parte de um tempo e espaço que não é o nosso. Ocorreu no passado, na fonte, ou se encontra num plano que ainda não é o nosso. Nos dias que correm gostava que estivesse neste momento algum agente ou deus criador a engendrar desígnios melhores para todos nós. 

Uma obra é resultado de tantas coisas, feitas de tantas latitudes, que cada vez mais me convenço que de facto, as sinergias são tantas que chegam a extrapolar, o próprio autor na sua própria história e nas suas próprias intenções. No meu caso, tento controlar de um modo consciente e racional a maioria das minhas propostas e, apesar de tudo, esse caso de “controlo” impossível de “aprisionar”, também se evidencia. Acontece por exemplo algo curioso... como convivo com muitas das minhas obras no atelier, executando várias ao mesmo tempo, por vezes, depois de concluir algumas reparo que, apesar de todas as suas mensagens e estruturas elaboradas, as figuras vieram para o enunciado por outras razões. Algo de latente esteve a trabalhar e por alguma razão despertou, fico impressionado, porque aquela obra pode carregar múltiplas funções e leituras... Continuaremos longos anos, enquanto não formos feitos de “Bytes” a citar longamente Umberto Eco e a sua “Obra Aberta”, como pode alguma vez a obra pertencer a um artista? 

Para que Lado vai o Vento?, 2014; instalação e objectos - © Mário Vitória 

Um quadro não apresenta um antes e um depois, o tempo parece congelar o momento, e cabe a cada um - de acordo com a bagagem que tem - interpretar o conteúdo do que se encontra na tela, de acordo com os vários contextos sócio-culturais. Como se conta a história de um quadro? Curiosamente no seu trabalho há essa mistura entre personagens mitológicas e contemporâneas, como é o caso da escultura "Para que lado vai o Vento". 
É verdade a obra “Para que lado vai o vento” convoca em si tantas personagens e contextos, que podemos falar de uma certa cosmogonia. Personagens de contextos tão aparentemente distantes que se cristalizam e se reflectem nas várias faces dessa escultura poligonal. A história de um quadro, ou melhor aquilo que ele tenta contar, tece-se de estruturas evidentes, os signos que se escolheram para comunicar. No meu caso procuro arquétipos, simbologias, dogmas e normas instituídas. Parto dessa base e norma para comunicar, baralho as hegemonias para questionar os seus alicerces. Foi o que fiz com essa obra especifica “Para que lado vai o vento” foi uma peça pensada para uma exposição sobre direitos humanos, seria pela primeira vez exposta numa universidade de expressão secular. E por isso mesmo, quis falar da opressão, falar do âmago humano e todas as suas dispersões, a sua voracidade e a sua vontade em se perpetuar em poder e guerra. É incrível o número de plataformas de conhecimento existentes no mundo contemporâneo, a proliferação de universidades e o mundo esse, continua cada vez mais violento, poluente... parece de facto um paradoxo.

"Outras serviam para advertir o espectador para a passagem do tempo que não é eterno. Nos dias de hoje, em que a entidade abstracta do tempo parece ser aquela que é a mais valiosa, não cessamos de o desperdiçar. Preciso desse estilo para falar do mundo da guerra, da nossa apetência para o belo, para o virtuosismo, para a decadência do brilho e do lustro, da vaidade."


Para si as técnicas clássicas são importantes para a execução de um quadro, ou a criatividade é a máxima? 
A questão está um pouco confusa... colocada assim erradamente presumimos que a criatividade é um género abandonado do clássico, ou o que está no passado está ultrapassado. A temática da criatividade é muito complexa e muito conflituosa. A criatividade é difícil de medir, tal como a excelência de um artista, está dependente de contextos apesar de pequenas normas que podíamos dizer de gerais, como o equilíbrio ou a desproporção, o belo ou o feio, mas mesmo esses conceitos estão sempre de viagem. Aquilo que posso dizer em relação ao meu trabalho é que este é completamente anacrónico, atemporal, ecléctico, não quer ser novo, não percorre os caminhos dessa ânsia. Ele quer comunicar e encontrar significados inesperados. Despertar sentimentos, dar voz a quem não tem, relembrar, reunir, encorajar, é isso. 

O sentido de estética na antiga Grécia nasce com o sentido de belo, já no século XX, o conceito transmuta para a procura de uma verdade. Acha que qualquer mensagem deve ter em si uma verdade contida? 
Uma questão muito conflituosa, porque a verdade é isso mesmo, flutuante por vezes... Existia alguém que dizia “Tudo bem não se irrite, pode ganhar a questão mas não pode ficar com os factos” ou seja a verdade. Podemos percorrer o seu sentido por aí. Às vezes o meu trabalho, na sua vertente mais denunciadora ou perigosamente mais moralista, limita-se apenas a mostrar. Mostrar é relacionarmo-nos com factos e isso aproxima-nos eventualmente da verdade que às vezes dói, outra vezes manifesta-se como fonte de prazer. Pensemos também na caricatura, a exímia caricatura em que aquilo que apresenta é ainda mais real do que o seu referente. Rimo-nos e surpreendemo-nos na exposição da sua possibilidade de verdade.

As “culturas” mais plásticas parecem estar misturadas com outras no seu trabalho, uma vez que não se cinge apenas às técnicas clássicas do desenho, mas também à cultura pop da banda-desenhada e à técnica da colagem. Existe em si uma necessidade de se reinventar a todo o momento? 
Misturo muitas coisas para tentar comunicar aquilo que acho que é pertinente em determinado momento. Podemos considerar que o meu trabalho é um género de sistema alegórico. Craig Owens dizia “Um alegorista não inventa a imagem, confisca-a”, concordo com ele.

"Crescemos em contextos altamente competitivos, onde só agora, no maior plano das dificuldades é que observamos como juntos seremos mais fortes. A referência da partilha está a ser relançada. As doutrinas da partilha por via da religião ou conduta social estão cada vez mais entrelaçadas com o enriquecimento espiritual de diversas disciplinas, para além da construção do “eu” ser uma temática em voga."

Naturezas Assassinas: A Súbita e Inesperada Luz da Tartaruga na Natureza Assassina Delirante, 2017; óleo sobre tela - © Mário Vitória

Por exemplo, em "Naturezas Assassinas" essa reinvenção é apresentada pela mensagem, uma natureza que não é morta mas com vida própria, mistura referências para dar à luz uma nova interpretação com outros elementos que remetem para o mundo fantástico da infância. É uma pretensão à volta da infância que apela a ver o mundo de uma forma mais criativa? 
Recorro ao expoente desse estilo, das suas mensagens que estavam muitas vezes veladas, já que os seus motivos e objectos apresentavam-se num aparente “congelamento”. Outras serviam para advertir o espectador para a passagem do tempo que não é eterno. Nos dias de hoje, em que a entidade abstracta do tempo parece ser aquela que é a mais valiosa, não cessamos de o desperdiçar. Preciso desse estilo para falar do mundo da guerra, da nossa apetência para o belo, para o virtuosismo, para a decadência do brilho e do lustro, da vaidade. Preciso muito desse séc. XVII Holandês recheado de “Vanitas” das suas simbologias para me referir aos embaraços contemporâneos. Para além disso, esses meus trabalhos, são uma própria sátira ao mundo da pintura e da “verdade” da representação.

"Existe, por um lado, um instinto interior ou acto compulsivo de riscar e de apresentar, por outro tenho um sentimento de 'missão' de engendrar e preparar enunciados para mais tarde dialogar com o público. Chego a trazer no casaco um caderno que cabe em qualquer bolso, na porta do meu carro encontram diários gráficos, lápis, canetas, em todos os meus contextos familiares alargados não faltam materiais, se existem férias na bagageira do carro já lá estão recortes e livros para trabalhar."

Circo Humano: Migração, 2015; acrílico sobre tela - © Mário Vitória

Em "Circo Humano" a tendência surrealista é evidente. Em Portugal nomes como Cruzeiro Seixas, Mário Cesariny e Isabel Meyrelles são amplamente associados ao Surrealismo. Como se encontra o Surrealismo em Portugal, temos fundações como o Cupertino de Miranda, mas os jovens artistas de hoje encontram-se mais isolados no que respeita à colectividade. Esse sentido de grupo vai deixando de existir? 
Concordo, existe um niilismo contemporâneo assustador. Crescemos em contextos altamente competitivos, onde só agora, no maior plano das dificuldades é que observamos como juntos seremos mais fortes. A referência da partilha está a ser relançada. As doutrinas da partilha por via da religião ou conduta social estão cada vez mais entrelaçadas com o enriquecimento espiritual de diversas disciplinas, para além da construção do “eu” ser uma temática em voga. Um “Eu” que se concretiza na sua plenitude se existir um “Nós” a todos os níveis, é algo muito recente nas nossas sociedades hipercapitalistas, mas também é já um novo caminho esperançoso e desejado. 

Instalação e Objectos: As Três Cores Primárias e as Inevitáveis Pontes que se Estabelecem, 2016 - © Mário Vitória

Muitas vezes as cores, que servem de pano de fundo, são também mantidas nas personagens que vêm de histórias, contos diferentes para se fundirem numa só tela. Como as trabalha e como é o seu processo de criação?
De tantas ramificações que a minha obra tem podemos responder a este ponto com uma dicotomia ou dualismo, que não me agrada muito, mas clarifica o que vou dizer: 1) O meu trabalho quer ser plano de intervenção; 2) Por vezes quer ser descomprometido. Imaginemos que num grupo existe uma função, uma intencionalidade útil, no segundo esse compromisso e utilidade não são evidentes. Seja como for, trago sempre comigo materiais de trabalho. Existe, por um lado, um instinto interior ou acto compulsivo de riscar e de apresentar, por outro tenho um sentimento de “missão” de engendrar e preparar enunciados para mais tarde dialogar com o público. Chego a trazer no casaco um caderno que cabe em qualquer bolso, na porta do meu carro encontram diários gráficos, lápis, canetas, em todos os meus contextos familiares alargados não faltam materiais, se existem férias na bagageira do carro já lá estão recortes e livros para trabalhar.

“'A arte lava a Poeira dos dias' disse o Picasso, eu estou muito concordante com esta afirmação. A arte gera significados 'Conflituosos', nem sempre ela comunica da maneira mais fácil. Aliás, ela não é um animal doméstico. Os artistas têm o dever de abanar consciências, ou mesmo quando estão muito abanadas, repousá-las. Proponho uma comparação: Os artistas e as artes são como que 'JEDIS', reorganizam e equilibram as forças, ampliam e libertam as mentes colonizadas."

Instalação e Objectos: Ensaios de um Mundo num Cemitério Falso de Ossadas, 2008 - © Mário Vitória

Gostaria de trabalhar o vídeo, trabalha também a escultura e a pintura. A música faz parte também da sua vida? E está nos seus planos realizar uma animação? 
Estou em constante processo de experimentação, é inevitável. Já trabalhei vídeo, gravura, vitral, ilustração, gostava de aprender cerâmica, e ampliar novas técnicas, como a metalúrgica. Vou tendo as minhas eleições, já trabalhei muito a fotografia ou vídeo, mas regressei com força ao desenho, fotografia, escultura e à pintura. Ando de volta sempre de objectos e outros materiais que vou encontrando. Tenho ideias, são elas que me pedem os materiais para se manifestarem. A própria vida é um gerúndio, o desenho é o meu esqueleto, o meu corpo vai sendo. 

Circo Humano: A Ideia é uma Menina a Promessa de um Parágrafo, 2017; acrílico sobre tela - © Mário Vitória

Na altura em que vivemos, muitas vezes não sabemos quem é o tirano, quem é o oprimido nem o opressor, em que o maniqueísmo é cada vez mais eliminado e o relativismo suspende qualquer responsabilidade; como pode então a criatividade mexer com as mentes mais preguiçosas, sendo muitas vezes o último grito de socorro capaz de mudar mentalidades?
O maniqueísmo pode ser complicado se atendermos sempre a dois pólos, o bem ou o mal. Foi por isso que mais acima disse que não gosto muito de dualismos. Costumo até dizer que no mínimo há uma tríade para qualquer existência, mas julgo que entendi a questão. “A arte lava a Poeira dos dias” disse o Picasso, eu estou muito concordante com esta afirmação. A arte gera significados “Conflituosos”, nem sempre ela comunica da maneira mais fácil. Aliás, ela não é um animal doméstico. Os artistas têm o dever de abanar consciências, ou mesmo quando estão muito abanadas, repousá-las. Proponho uma comparação: Os artistas e as artes são como que “JEDIS”, reorganizam e equilibram as forças, ampliam e libertam as mentes colonizadas.

"Qualquer arte precisa do seu silêncio. O Erling Kagge falou muito bem deste silêncio e da arte do caminhar necessária para os dias de hoje. Adopto muito a sério essas lições. O mundo pode engolir-nos num ápice. Se não existirem esses refúgios de solidão/meditação/isolamento/produção tidos como lentos ou 'tempos mortos' não existirão 'tempos vivos'."

Circo Humano: Dá-me Um Toque Quando lá Chegares, 2017; acrílico sobre tela - © Mário Vitória

A arte é enaltecida quando se torna multidisciplinar porque bebe de outras artes para se tornar uma só “canção”. Acredita que a multidisciplinaridade é a fusão perfeita para educar gerações? 
Acredito muito! Tenho as minhas horas de percurso académico como professor e como aluno, nem sei se já parei esse “turismo”, mas de tanto me debruçar nesses caminhos tenho de ser justo e dizer que os maiores momentos de aprendizagem foram com pessoas muito mais novas do que eu, e ainda provenientes de contextos inesperados. Parece-me que devemos ser sérios com as ferramentas que trazemos no espírito e tentar aprender ao máximo com os professores, amigos, não tanto com aqueles que sabem ensinar, mas com aqueles que têm conteúdo para ensinar. 

Como a solidão enriquece o trabalho criativo? 
Qualquer arte precisa do seu silêncio. O Erling Kagge falou muito bem deste silêncio e da arte do caminhar necessária para os dias de hoje. Adopto muito a sério essas lições. O mundo pode engolir-nos num ápice. Se não existirem esses refúgios de solidão/meditação/isolamento/produção tidos como lentos ou “tempos mortos” não existirão “tempos vivos”.

Imitando o Tempo em 2088 num Portugal Mobius, Obra em Colaboração com Cruzeiro Seixas, 2012 - © Mário Vitória

Temos uma rubrica intitulada Bagagem, onde pedimos 5 livros, 5 discos, 5 filmes/séries, poderá dizer-nos quais são para si os 5 livros, 5 discos, 5 quadros que tem como referência?
A pergunta mais difícil de todas... a resposta revelada pode contrastar com expectativas. O meu aqueduto pode ir de um “Forest Gump” ao outro extremo onde se encontra o “Senhor dos Anéis”. Vou tentar colocar as coisas assim, vou recordar-me de momentos intensos de produção e pensar nos livros, quadros, bandas sonoras e playlist que lá andavam, coisas que se consomem compulsivamente: 

Livros:
- Viagem na irrealidade Quotidiana, de Umberto Eco; 
- Bestiário, Fábulas e Outros Escritos, de Leonardo da Vinci; 
- Um mundo iluminado, de Hubert Dreyfus e Sean Dorrance Kelly; 
- Uma viagem à India, de Gonçalo M. Tavares; 
- Epistemologias do Sul, de Boaventura de Sousa Santos; 
- O tratado da Árvore, de Robert Dumas

Discos: 
- Ten, Pearl Jam;
- Desintegration, The Cure; 
- Deeper Understanding, War on Drugs; 
- Live Arenaplatz Set, Nils Frahm; 
-  B'lieve i'm goin Down, Kurt Vile.

Quadros: 
- Escola de Atenas (os cartões preparatórios), de Rafael; 
- Virgem dos Rochedos (aquela que está na National Gallery), de Leonardo da Vinci; 
- As Tentações de Santo Antão, de Hieronymus Bosch; 
- Cocktail Drinker, de Max Ernst; 
- Ash Flower, de Anselm Kiefer.

Texto e Entrevista: Priscilla Fontoura
Entrevistado: Mário Vitória
Trabalhos: © Mário Vitória - www.mariovitoria.com