segunda-feira, 27 de abril de 2020

Os Nu levantam o véu sobre a hostilidade crescente na sociedade ocidental

Os NU são cáusticos. Entregam-se ao exagero do conteúdo das líricas e exploram a cadeia instrumental do rock e do experimental. Os riffs das guitarras enchem a estrutura instrumental e as letras descrevem a sinceridade de uma mente sem filtros. Já não há nada que preencha o vazio, da boca, ​viscos​ de cristal; assim meio que grita a voz expressiva e teatral de Rui Pedro, no tema “Dentro de um sono que é quase Morte”, que, ao longo da jornada, vai caminhando a passos pesados num deserto. Encontra-se sozinho naquele cenário e observa “A mesma Areia Morta”, a mesma miragem. 

Seis membros: André Soares (baixo), Carlos Adolfo (guitarra, saxofone e percussão), Miguel Filipe Silva (guitarra), Ricardo Coelho (bateria), Rui Pedro Almeida (voz) e Urbano Ferreira (teclado, efeitos e percussão) discursam o mesmo poema cheio de palavras intensas e gordas, numa live session, lançada a 20 de Março e distribuída em 3 momentos que se interligam num sonho que se confunde com pesadelo. 

Nu, © Vera Marmelo (ZigurFest)

"Existe uma partilha de mensagens que alteram a sua forma na poesia e na literatura, mensagens habitualmente associadas a estados mentais da sociedade ocidental; a perda de humanidade, a alienação tecnológica, o medo, a psicose, a vaidade, a competição feroz ... sintomas reais que tentamos desmascarar na nossa música."



Há algo na vossa live session que leva um pouco aos Zen, Mão Morta, aos extintos Balão Dirigível e Sereias, têm estas bandas como referência? 
Antes de mais, queria em nome da banda agradecer as tuas palavras e o vosso interesse pelo nosso trabalho. Dentro dos nomes que referenciaste, devo dizer que alguns estiveram mais presentes do que outros. Não diria que se tratam de referências directas, mas é certo que algumas delas marcaram a nossa adolescência e permaneceram dentro das nossas cabeças, sobretudo os Mão Morta e os Zen. Sendo nós uma banda de muitos elementos, pode dizer-se que as nossas referências vagueiam por vários cenários, sendo que há claramente uma tendência que nos une que é o gosto pelo Rock e pelo som mais marginal, o que faz com que estes nomes, dentro do panorama português, se associem compreensivamente ao nosso som.

As letras são cruas e bastante visuais, quem as escreve e qual o conceito que faz de Nu uma banda que coloca a lírica no mesmo patamar que o instrumental? 
Não diria que existe propriamente um conceito que possa ser aqui descodificado, talvez essa não seja a palavra certa... a lírica nos NU parte de uma vontade de criar imagens mentais naqueles que nos ouvem, imagens umas vezes brutais e directas, outras vezes apenas paisagem. Existe uma partilha de mensagens que alteram a sua forma na poesia e na literatura, mensagens habitualmente associadas a estados mentais da sociedade ocidental; a perda de humanidade, a alienação tecnológica, o medo, a psicose, a vaidade, a competição feroz ... sintomas reais que tentamos desmascarar na nossa música.

As letras da banda variam entre colagens de vários escritos de autores como Thomas Pynchon, Malcolm Lowry, Michel Houellebecq... e textos criados por nós. Actualmente sou eu o responsável pelos textos, porém o nosso baterista também escreveu parte dos que acompanham o som do nosso primeiro EP.

"Acho que a verdadeira crise na nossa cultura é uma crise de longa data, muito para além da económica. Uma crise de ideais, de identidade, de criatividade, etc. Falando de música, honestamente acredito que vivemos tempos de uma grande pobreza, de espírito sobretudo. Há muito que a imagem tem invadido todo o espaço que pertencia à música, aliada à vaidade e a uma ou várias receitas repetidas, cheias de cor e de América que deixa cair por terra tudo aquilo que era humano, real e genuíno na música."



Com todo este estado de emergência, com todo o distanciamento social e com a quebra da cultura e de outros mais sectores, como olham para o futuro da cultura?
É um caso complexo... Tendo em conta aquilo que são factos, aguardamos uma crise económica colossal para a qual não estávamos preparados. Por isso, o dinheiro vai ser para os artistas ainda mais escasso. E com acções governamentais como a que vimos recentemente na criação de um festival televisivo ultra centralizado, o cenário torna-se ainda pior. Felizmente, não foi avante. Por outro lado, e talvez mais importante do ponto de vista cultural, existe neste momento (não para todos, claro) tempo... Tempo morto, o total oposto daquilo que tínhamos antes do vírus, muita actividade, entretenimento, exercício... Creio que este tempo pode ser importante para que algumas pessoas possam criar, aprofundar, tirar conclusões. É claro negativo para grupos de criativos perderem o contacto, nós por exemplo, não nos voltamos a reunir como banda desde que isto começou, o que é uma grande merda. Porém, temos procurado soluções para trabalhar e continuar a produzir à distância através da net, acho importante este tipo de adaptações, a adaptação à distância, a adaptação à falta de rendimento, a vitória da vontade e do espirito contra as fendas causadas pelo vírus. A história já nos provou que as fases de maior desconforto podem servir como impulso à grande criação, porém os tempos são de facto diferentes, resta-nos a esperança.

Acho que a verdadeira crise na nossa cultura é uma crise de longa data, muito para além da económica. Uma crise de ideais, de identidade, de criatividade, etc. Falando de música, honestamente acredito que vivemos tempos de uma grande pobreza, de espírito sobretudo. Há muito que a imagem tem invadido todo o espaço que pertencia à música, aliada à vaidade e a uma ou várias receitas repetidas, cheias de cor e de América que deixa cair por terra tudo aquilo que era humano, real e genuíno na música.

Longe vão os tempos em que nasciam bandas como os Morphine, Neubauten, Lounge Lizards, Velvet Underground, Iggy Pop ... cantautores como o Bob Dylan, Leonard Cohen, Nina Simone.... mesmo em Portugal, com nomes como aqueles que referenciaste em cima. Gente que tinha realmente algo a dizer e por isso se diferenciava, que manifestava o desconforto de uma geração, que queria muito mais do que ganhar uma massas ou ser um sex symbol. Hoje, pelo contrário, pressinto antes uma tendência para a caricatura e para a alienação da realidade na música, o que não me parece fazer sentido tendo em conta que se vive um clima hostil, em que até perversões como a censura parecem regressar lentamente junto de uma onda espessa de acções individualistas e de extremismo de toda a espécie que começaram a contaminar o ar bem antes do vírus. Contudo, existem ainda pequenos nichos espalhadas por aí, pessoas com vontade de fazer coisas sérias. Há que procura-los e fortalecê-los.

Vão ser tempos verdadeiramente fodidos, há que desenterrar a humanidade que ainda nos resta.

Nu, © Ah!Photo (Hardclub)

Em 2016 lançaram o single Lunar Caustic, em Setembro, do mesmo ano, o EP Sala de Operações no 338, em 2018 lançam o EP II, como tem sido a viagem de Nu e quando planeiam lançar um disco de longa duração?
Podemos dizer que a viagem dos NU tem sido discreta mas activa e com os seus picos de intensidade. A banda passou por várias fases e algumas entradas e saídas de membros. Juntamo-nos a partir de uma iniciativa do pessoal do Carpe Diem (bar-concerto que é para nós uma espécie de segunda casa, nós chamamos-lhe “A Sede”) , os “Concertos Púbicos”, que consistia em aliciar a malta que tocava algum instrumento a juntar um grupo ou banda protótipo e criar um pequeno concerto, visto que havia uma série de gente que tocava, mas não existiam bandas. Assim nasceu a primeira formação dos NU e a partir daí temos feito música juntos e dado alguns concertos pelo país. Recentemente arrendámos um armazém numa aldeia em Santo Tirso, espaço anteriormente ligado a uma escola de equitação onde construímos, com os nossos próprios recursos, um novo estúdio. Aqui gravamos a live session que deu origem ao novo álbum. Tencionamos dar-lhe o melhor uso possível, continuar a criar novos temas e tentar fazer com que a nossa música ganhe diferentes formas. Um novo álbum está nos planos também.

O vosso single Lunar Caustic partilha o nome com um romance escrito por Malcolm Lowry, editado em 1968. Existe alguma relação com essa obra? E se sim, são fãs do trabalho desse autor? 
Sim, a relação que existe com esse romance é directa, sendo a letra do tema Lunar Caustic um excerto desse livro, uma grande trip do protagonista. O livro passa-se entre tabernas e um hospital psiquiátrico e na altura pareceu-nos perfeito. Apresentámos a primeira vez esse tema nos “Concertos Púbicos “ com um projecto chamado ele próprio Lunar Caustic, mais tarde, adaptamo-lo ao som dos NU.

A live session lançada a 20 de Março deste ano, intitulada “Diferentes Formas da Mesma Areia Morta” consegue ser ainda mais directa e sem filtros que os outros discos anteriores. Podem falar um pouco do conceito e se é uma ponte para um trabalho de longa duração? 
O nosso novo trabalho está dividido em duas partes que se interligam. O primeiro tema, guiado por sintomas decadentes do homem citadino, o isolamento social, a depressão omnipresente alimentada pela frustração, foi escrito por mim. A segunda parte é uma colagem de passagens do livro V. de Thomas Pynchon que, nas suas palavras, nos expõe a um mundo cada vez mais em rota de colisão com o inanimado.


De quem é a autoria da ilustração da live session e se está relacionado com os estados da psique, do consciente e do inconsciente? 
Sim, tal como nos textos, esses são temas muito presentes no nosso trabalho. A Ilustração escolhida para a capa é o resultado de uma série de testes que fiz inspirado pelas letras do álbum. Apresentei-as ao pessoal e a maioria votou nesta versão.

Acham que a música é a melhor terapia para não ceder à loucura, principalmente para esta quase distopia que vivemos agora? 
A música tem uma importância diferente para diferentes tipos de pessoas.
Para quem gosta realmente, para quem a ouve, talvez esta funcione como espaço de refúgio, uma procura possivelmente justificada por uma insatisfação com aquilo que os rodeia, não lhes sendo isso suficiente, ou então, simplesmente guiada pela curiosidade. Essa procura, alimentada por coisas reais, parece-me um método saudável de combate à loucura, ao tédio. Porém, talvez não seja suficiente. Existem diferentes formas de afugentar a loucura. Na perspectiva de quem produz não tenho dúvidas de que a música, tal como outras métodos de criação quando exercidos da melhor maneira, se tornam um método viável para afastar a loucura, ou até, para tirar partido dela. No entanto mais uma vez tenho dúvidas que isso seja suficiente. A verdade é que por outro lado a criação, artística ou não, pode também levar à loucura.



Uma vez que têm um sentido crítico, qual é a vossa fórmula para curar o vírus, referimo-nos ao humano, obviamente, o que consegue manipular as mentes mais apagadas. 
Não te consigo dar uma resposta concreta a esta pergunta, confesso que me quebrou o ritmo de resposta. Soltei ao longo desta entrevista algumas pistas daquilo que me parecem ser possíveis vias de “cura” para o “vírus”, a decadência, a alienação... Não me cabe a mim dar qualquer tipo de receitas de vida pois acredito que é infinita a quantidade de caminhos que nos possam manter estáveis e vivos, mas seguramente que nenhum desses caminhos é composto por elementos inanimados.

Gostariam de deixar alguma mensagem a quem vos lê e ouve?
Mantenham-se vigilantes, curiosos e humanos.

Texto e Entrevista: Priscilla Fontoura
Entrevistado: Rui Pedro Almeida (vocalista)
Imagens: Vera Marmelo (ZigurFest); Ah!Photo (Hard Club)