terça-feira, 28 de abril de 2020

:PAPERCUTZ - As luzes e sombras da electrónica

Género: electronic, dark pop, dream pop 
Álbum: King Ruiner 
Data de Lançamento: 3 de Março, 2020
Editora: Sounds of a Playground 
Foto por Aëla Labbé. Design por Susana Maia 

King Ruiner é um nome imponente que pode trazer reminiscências de um mundo fantasioso de lutas entre colossos, criaturas fantásticas e exóticas. É um título adequado para um disco que se divide entre uma atmosfera ora alva, ora mais densa, carregada de penumbra. 

O álbum é o terceiro longa-duração do projecto :Papercutz que teve origem na mente de Bruno Miguel. A gravação teve lugar em quatro cidades diferentes: Porto, Nova Iorque, Hamburgo e Tóquio. 

Os 13 temas que compõem o disco criam um clima de electrónica profundamente imersiva que se alimenta de texturas e camadas tanto dinâmicas quanto exuberantes, que harmonizam com os vocais melódicos por Emmy Curl, Ferri e Lia Bilinski. 

Esta mergulho no universo de King Ruiner brota de um eclectismo e de uma noção exploratória que a música electrónica oferece constantemente, fazendo-a singrar em campos por desbravar. 

É uma fusão e um interesse por ritmos alienados da cultura ocidental, profusamente repletos de misticismo que povoam o universo sensitivo de King Ruiner. Uma busca constante pelo desconhecido e um recomeço perpétuo de emoções e ideias que alimentam os beats progressivos, as percussões de timbres exóticos e as líricas intimistas e introspectivas. 

© Bruno Miguel, Susana Maia

O tema introdutório Choral é o portal de entrada para King Ruiner. Alimentado por texturas cósmicas e sintetizadores promissores de uma viagem para uma outra realidade. Essa é povoada por beats elegantes mas imprevisíveis e vocalizações que tanto agitam a mente como o corpo. Halfway There poderia ter a etiqueta de single. Estruturalmente é animado por um refrão que se espraia por uma percussão progressiva, inúmeras mudanças de ritmos e emoções com uma ambiência surrealista, mas, por outro lado, familiarmente próxima. É um tema forte que estabelece a toada para King Ruiner

São inúmeros os pontos altos que permeiam o disco, persistindo uma homogenia fluída que transcreve King Ruiner para o patamar da conceptualidade. Um disco que tem de ser ouvido na íntegra. As partes únicas e individuais formam um todo arrebatador e complexo, tanto na sua temática como melodia. 

As vocalizações deixadas a cargo de Emmy Curl, Ferri e Lia Bilinski são instrumentos orgânicos e quase místicos que se imiscuem nas camadas e texturas de electrónica imprevisível e engenhosa. Alonga-se a fusão entre vozes e máquinas que constroem um outro senso, uma outra realidade extra que - com o seu carácter cinemático - apelam à recriação de paisagens ou cenários de uma outra natureza, alienígena, contudo estranhamente familiar. King Ruiner traz-nos a fantasia e outras naturezas místicas para bem perto de nós, aconchega-nos com um senso de familiaridade até então desconhecido, e é num eclectismo imenso que encontramos o nosso lugar e espaço na paisagem sempre mutável da electrónica.

- O teu terceiro disco foi gravado em várias cidades. Como foi esse processo?
Foi normal porque passo uma boa parte do meu ano a viajar em concertos. Foi através destas que o álbum foi concebido aos poucos, a ideia era espelhar um pouco essas experiências multiculturais que fazem parte de mim. Eu não deixo de ser um rapaz que gosta de música do Porto mas tenho tido a sorte de fazer parte de um todo bem maior que a minha cidade de nascença.

- Como foi colaborar novamente com Emmy Curl (Catarina Miranda)? E como foram as colaborações com Ferri e Lia Bilinski?
A Catarina tem sido a presença mais constante porque fez parte dos concertos ao vivo já do álbum anterior e é a primeira a gravar neste álbum. A Lia conheci em digressão e a Ferri foi me recomendada pela nossa editora Japonesa. O processo criativo é viverem a personagem das letras e conceberem a sua voz para este trabalho porque muitas cantoras, tal como elas, podem se apresentar em diversos registos e tem que escolher um. Do meu lado, como produtor, o meu papel é fazer com que elas se sintam parte de um grande todo, do álbum, e antever o resultado final. 

© King Ruiner Performers: Fotos dos artistas (Emmy Curl, Lia Bilinski, Ferri)

- Este disco sente-se como um trabalho conceptual. Que ideias e temas te atraíram para a sua composição?
Tal como em outros álbuns de :PAPERCUTZ, 'King Ruiner' é realmente um trabalho conceptual mas cuja narrativa acompanha uma personagem que luta por descobrir o seu lugar no mundo. Ele é inspirado em mim e pessoas à minha volta, e personagens de livros e filmes. Penso que existe uma enorme pressão de sucesso em todos nós e sendo uma ideia vaga tem as suas consequências a nível pessoal. Este trabalho começa no ponto do último álbum em que decido escrever músicas que documentam tudo o que estava a passar a nível pessoal, positivo ou não, porque acho que a música como forma de arte é mais directa quando sincera.

- As líricas estão escritas em inglês. Sentes-te mais confortável no uso da língua inglesa? As letras surgem antes ou depois da composição musical ou é um processo quase simultâneo?
O Inglês é uma linguagem para mim tão natural como o Português, os meus pais como professores acharam que os filhos tinham que ter essa mais valia desde cedo e hoje em dia comunico uma boa parte do meu dia, com editora, amigos espalhados pelo mundo, entre outros em Inglês. Eu já escrevi letras em Português e colaborei com escritores nacionais e acho a nossa língua detentora de uma capacidade poética que poucas têm, mas o Inglês tem uma universalidade que me tem permitido tocar um pouco por todo o mundo, o que não quer dizer que não volte à nossa língua mais tarde. As letras surgem por vezes antes ou depois do tema mas é um processo de afinação até chegar à canção final.

- :PAPERCUTZ já tem alguns anos de existência. Que linhas temáticas tens gostado mais de explorar?
A minha vivência pessoal. Está tudo lá em forma de música. É a minha forma mais sincera de expressão.


© Maria Louceiro

- O artwork do disco é cativante e bastante enigmático. Segue uma linha esteticamente semelhante ao disco anterior. Que conceitos pretendes transmitir com essa estética?
Eu tenho a sorte de contar com uma designer, a Susana Maia, que desde o início dita a componente visual de :ppctz e ajuda-me a escolher outros artistas com quem trabalho. Voltamos a colaborar com a Aëla Labbé, depois do 'The Blur Between Us' que é uma fotógrafa incrível francesa que consegue numa imagem espelhar a inocência da juventude como o peso de anos futuros. E é um pouco isso, eu sou essa criança que teima em crescer. 

- Com a situação grave da pandemia, o cenário da música mudou radicalmente. Como é que te estás a adaptar a esta nova realidade?
Talvez tenha sido um dos músicos portugueses que mais cedo foi afectado por esta pandemia, tinha uma digressão na China que foi cancelada e desde 2019 que previa que isto poderia vir a acontecer.... de momento todos os nosso concertos de apresentação internacionais foram cancelados e, como tal, cedo percebi que tinha que me focar em trabalho de estúdio. Nesse sentido estou mais ocupado que nunca, temos uma edição alargada do álbum com remisturas por artistas nacionais (Octapush, Throes + The Shine, Scúru Fitchádu, Fondness, entre outros) que estou a supervisionar, estou a trabalhar com o Vasco Mendes num novo vídeo para o nosso próximo single 'All Of The Ways', um novo tema para um compilação da nossa editora no Japão, outros artistas internacionais na capacidade de produtor e a escrever uma nova banda sonora, algo que pretendo fazer cada vez mais depois de já ter completado dois filmes. A minha forma de combater esta situação é dedicar-me ao trabalho. Se calhar sou limitado nessa minha abordagem, existe quem se vire para a religião nestas alturas. A música é a minha religião e espiritualidade, não faço mais que a servir e esta bem me tem ajudado a passar por este e outros momentos.


Texto & Entrevista: Cláudia Zafre
Entrevistado: Bruno Miguel (:PAPERCUTZ)