Palavras-chave: artistas de rua, música, nomadismo, viagens, estrada Introdução Durante esta época em que a rua é como que um visl...

Trovadores viajantes que fizeram da rua também o seu palco. Um outro tipo de liberdade.

Palavras-chave: artistas de rua, música, nomadismo, viagens, estrada

Introdução
Durante esta época em que a rua é como que um vislumbre de um óasis no deserto, parece estranho falarmos de músicos de rua. Talvez, e devido à radical mudança das circunstâncias, os sentimentos se tenham alterado - assim se espera -, e voltar a ter liberdade começa, cada vez mais, a ressurgir com uma saudade que se anseia quebrada assim que a nova fase permita, mas, claro, que retomar a uma suposta normalidade ainda irá levar o seu tempo. O sabor de andar na estrada sem qualquer ansiedade ou medo vai ser difícil, mas é possível que o passado negro e pesado seja apagado com o tempo, afinal não dizem que o tempo cura todas as feridas?
Ser músico de rua é diferente de ser músico de festivais ou concertos marcados por agentes, ou até ser músico de estúdio. Não quer dizer que cada situação seja limitada a um modo de viver, obviamente que todos podem ligar-se, mas, de facto, ser músico de rua exige uma coragem e uma autonomia diferente dos outros casos. Alguns vivem num estado de solitude, próprio de quem gosta de avançar na vida sem impedimentos emocionais que privam a liberdade de andar na estrada para entoar cantigas; outros, pelo infortúnio da vida, escolhem a rua como morada e espaço de sobrevivência. Alguns géneros musicais tendem a uma forma de vida que outros, como por exemplo o blues que tem na sua génese a vida de estrada.

Nesse sentido, os exemplos de músicos/performers de rua que seleccionámos distinguem-se pela forma como tratam o instrumento ou como constroem as suas canções/versões de outros temas. São, por isso, quem dão mais cor às cidades. 

Imagem © John Haldane

Abby the Spoon Lady
Percussionista e contadora de histórias, Abby the Spoon Lady (Abby a Lady das Colheres) vive em Asheville Carolina do Norte. Paralelamente ao seu activismo local, também gere um canal audiovisual onde disponibiliza a sua série para o colectivo Asheville Buskers sobre performance de rua. Abby the Spoon Lady é das poucas percussionistas de colher que resta nos EUA e artista de rua profissional há mais de uma década. Abby estudou percussão, música e folk americano assim que viajou de norte a sul dos EUA de comboio e a pé. Agora, devido aos seus vídeos, é conhecida internacionalmente e costuma tocar com outros músicos em festivais. Também já participou em curtas de terror, e a sua vida tem sido referência para a criação de alguns documentários tal como Nashville 2012 e Buskin' Blues, cuja temática aborda a cena de artistas de rua da sua cidade. De momento é presidente do colectivo Asheville Buskers. Num mundo musical onde prevalecem carinhas bonitas, é possível ainda tropeçar por preciosidades onde o blues tradicional é tocado apenas a uma guitarra e um par de colheres. A elegância da performance de Abby deixa-nos rendidos ao seu encantamento.

Frame vídeo Ytube

Donald Gould
Donald Gould impressionou os residentes de Sarasota ao tocar piano nas ruas da Florida. Donald Gould, um homem de 56 anos e ex-veterano da marinha, aprendeu a tocar piano enquanto miúdo e estudou educação musical na universidade Spring Arbor no Michigan. Assim que a mulher de Donald Gould faleceu em 1998, o músico desenvolveu um problema de dependência e consumo abusivo, acabando por fazer da rua a sua casa.

Frame vídeo Ytube

Para Natalie Trayling a rua parece o local perfeito para exprimir sentimentos como se ninguém habitasse nela, a não ser quem faz dela o seu palco. Natalie Trayling toca o seu órgão como se estivesse num teatro romano. Com 85 anos, a pianista toca espontaneamente peças criadas por si. A emotividade presente nas suas peças são comunicadas pela beleza das suas melodias que não precisam de mais nada a não ser das notas que se fazem soar.

Imagem © Phil WSK

Nascido a 15 de Junho de 1988, numa zona rural de Inglaterra, Lincolnshire, Jack Broadbent cresceu a ouvir Radiohead, Robert Johnson, Joni Mitchell e Davey Graham. Estas lendas influenciaram o seu percurso na música, que é distinto em estilo e performance. Aclamado como o mestre de slide guitar pelo festival de jazz Montreaux, Jack Broadbent passou os últimos anos a impressionar o público internacional com a sua mistura única de guitarra slide e vocais comoventes de folk e blues. Com 5 álbuns lançados, Jack sempre foi um nómada que habita a estrada como se fosse a sua própria casa. 

Imagem © Leon Blankleyder

Estas Tonne
Estas Tonne é um artista autêntico no que respeita à sua relação com a música. Cria temas como pano de fundo que poderiam ser emprestados a várias bandas-sonoras. Originário da Ucrânia, não se prende ao país onde nasceu. É um nómada por excelência que leva no bolso passaportes carimbados. Influenciado por várias referências culturais sem se identificar com uma em especial, deixa-se enriquecer pelas culturas do mundo. A sua música é, portanto, um reflexo de muitas abordagens. Uma fusão de estrutura clássica, técnica do flamenco, raízes do cigano, características da paisagem sonora latina e electrónica - uma variedade de estilos que flui de um para o outro, passando quase despercebido e cada um aparece como surpresa numa estrutura harmoniosa do som, sofrendo alterações em cada performance, em forma e melodia únicas. A sua música é moldada pela expressão emocional e por uma ampla gama de elementos sonoros que não só resultam de vários géneros musicais, mas também do acesso às próprias emoções. Elas tecem o brilho da alegria na música, a tensão dos desafios, a velocidade da excitação, a gentileza do coração aberto, a graça da conexão divina e o equilíbrio do “eu” à vontade.

Estas Tonne apresenta-se em concertos, conferências, rua, arte ou outros festivais, mas continua envolvido em colaborações que variam de diferentes projectos cinematográficos, poesia, meditação, a dança ou arte circense. O seu envolvimento no projecto do filme Time of the Sixth Sun mostra-o no papel de trovador viajante, que espalha um impacto significativo na sociedade e no mundo enquanto experimenta a sua transformação interior.

© Cam Cole fb

Cantautor, músico de rua, viajante, é originário de Londres e perambula pelas ruas e concertos a one man band. Explora desde o folk, delta blues, grunge ao rock 'n roll. Cam Cole é homem de palco independente e safa-se com o que tem às mãos e aos pés, domina ao mesmo tempo a guitarra e a bateria improvisada como poucos. Recicla porque concebe o que está além das possibilidades limitativas dos objectos. Sejam copos ou outros objectos, Cam Cole improvisa com o que tem e dá vida e cor à cidade, deixando o público com um sorriso nos lábios. Não há cá arranjos ou produções rebuscadas, os temas são crus e directos ao ouvido. O artista trata sozinho da logística toda, sem precisar de qualquer intermediário para montar o seu palco.

© Mitchell Cullen video Ytube

Um pouco à margem de outros músicos, que muitas vezes fazem da música mais um produto do que um contacto genuíno com outros, sem grandes artifícios chega da Austrália Mitchell Cullen para tocar música do mundo. O cantautor dá a conhecer o seu estilo único juntando uma guitarra dinâmica com o instrumento indígena originário do país de onde vem, o didjeridu. Os vídeos onde se apresenta têm sido foco de várias visualizações. A sua energia é contagiante e qualquer pessoa que esteja presente num concerto seu não sairá de lá certamente de igual forma.

© Tash Sultana

A australiana, ainda muito novinha, começou a demonstrar interesse pela guitarra, apenas com 3 anos explorou o instrumento que a avó lhe ofereceu. Desde então a autodidacta estabeleceu uma relação séria com o instrumento. Domina mais de 12 instrumentos e a sua voz também tem um timbre que acalenta os corações. Começou a tocar nas ruas de Melbourne, e agora com muitos olhos virados para si toca nos maiores festivais do mundo - conquistou a atenção global assim que disponibilizou vídeos feitos em casa, num ápice tornaram-se virais. Com a ajuda de uma loop station faz camadas numa só canção que é preenchida pelos efeitos de pedais criando assim a ambiência perfeita. 

© Triciclo Vivo

O duo Ricardo Martins (Baixo eléctrico) e Miguel Almeida (Bateria) sempre que possível anda pela baixa da cidade do Porto, e traz a energia necessária para fazer mexer o público que se movimenta no centro da cidade. Viaja também para outros lugares. Carrinhos de compras são os meios de transporte para os amplificadores. O baixo e guitarra brincam com ritmos e exploram o lado mais experimental da música. O duo idealizou o projecto em busca de uma vida musical original, cria temas originais com base na experimentação com influências da fusão e world music. Actua desde 2011 em diversos ambientes e contextos, não só a duo ou a trio, mas já participou com mais músicos. Ricardo e Miguel são amigos de longa data, a dupla abre-se sempre a novas sonoridades e cruza-se com músicos de diferentes contextos. Os dois terão certamente reunidas muitas histórias para contar.

© The Great Machine

Banda israelita que não se prende apenas a festivais ou a concertos fechados. Em Israel é muito vulgar haver concertos ao ar livre, o bom tempo propicia esses momentos, e, além do mais, as ruas são bem movimentadas, principalmente quando se finda o shabbat. Nas ruas Ben Yehuda em Jerusalém e Rothschild 12 em Tel Aviv amontoam-se músicos e outros criativos para mostrarem o que melhor sabem fazer, alegrar as ruas e emocionar por quem lá passa. Os The Great Machine já estiveram em Portugal no SonicBlast Moledo, mas sempre que podem montam a carrinha com os amplificadores para afirmar que a resposta a qualquer coisa é o amor. 

Conclusão:
São muitos os músicos (e uma série deles fica por nomear) que começaram a tocar na rua. Muitos continuam anónimos e a cumprir o primeiro mandamento que não altera um modo de vida almejado, despegado de qualquer compromisso que amarre qualquer possibilidade de liberdade. Ser músico de rua implica coragem e abertura para lidar com qualquer público que possa ser menos receptivo a novas sonoridades. A rua é, por isso, o estrado que possibilita a comunicação crua, genuína e autêntica. Uma aventura sem igual e um outro tipo de liberdade. 

Texto: Priscilla Fontoura