Palavras chave: realizadoras, subversivo, cinema, subversão  Introdução Dotadas de visões singulares sobre a sociedade, sexualidad...

As realizadoras e o subversivo (Anos 70/80) - Parte 1

Palavras chave: realizadoras, subversivo, cinema, subversão 

Introdução
Dotadas de visões singulares sobre a sociedade, sexualidade, espiritualidade e política, certas mulheres realizadoras fincaram pé na sétima arte, realizando filmes ou peças vídeo que revolucionaram o status quo e abriram as fileiras para gerações seguintes de mulheres realizadoras. 

Seja através de metáforas ou alegorias de cariz político, retratos psicossexuais ora directos, ora simbólicos, a feminilidade no cinema começou a sentir-se cada vez mais presente durante os anos 70 e 80, antecipando a emergência de um olhar e sentir femininos que se tornaram cada vez mais marcados na nossa contemporaneidade. 

Liliana Cavani 

Liliana Cavani e Mio Takaki na rodagem de Berlin Affair, © Liliana Cavani

Nascida em Itália nos anos 30, Liliana Cavani tornou-se mundialmente reconhecida após a sua longa-metragem, Il Portiere di Notte (The Night Porter) lançada em 1974. O filme gerou alguma controvérsia e teve reacções mistas por parte da crítica, devido à maneira como abordou as temáticas da sexualidade e a vertente do sadomasoquismo. O filme acabou por ser considerado um clássico de culto e um exemplo do género obscuro de cinema denominado naziplostation

A realizadora nunca teve medo de abordar certas temáticas mais delicadas e/ou densas, assim como, de realizar alegorias políticas, como é o caso no filme I Cannibali (The Cannibals) realizado em 1969, que se serve do mito grego de Antígona para pintar o cenário político italiano da altura. 

O seu interesse pela história reflecte-se na sua cinematografia, que se divide entre documentários, longas e curtas de ficção e até à realização de óperas. 

Věra Chytilová

Vera Chytilová na rodagem do filme Zlatá sedesátá, © Vera Chytilová

Humor absurdo alia-se a situações bizarras protagonizadas por duas personagens femininas que juntas compõem um duo bastante irreverente no clássico Sedmikrásky (Daisies). Um filme surrealista, colorido e provocador que elegeu Chytilová como uma forte voz feminina na nova vaga do cinema Checo. Daisies, lançado em 1966, continua a magnetizar ainda nos dias de hoje e pode ser lido de várias formas, como uma crítica ao consumismo, um manifesto feminista ou até uma afronta à ideologia comunista, são inúmeras as suas leituras e interpretações que cabem aos espectadores identificar. 

O filme foi banido na República Checa, após o seu lançamento, por conter demasiadas cenas de desperdício de comida, mas no ano seguinte, ganhou um prémio em Itália. Foi Daisies que ajudou a cimentar a carreira de Chytilóva na sétima arte, mas apenas a nível internacional, tendo sido continuamente pressionada pelo governo do seu país que dificultou cada vez mais a sua vontade de realizar filmes. Foi através da pressão internacional que Chytilová voltou a realizar. A sua longa-metragem Hra o jablko (The Apple Game) realizada em 1976 garantiu-lhe dois prémios, sendo um deles o Silver Hugo do Festival internacional de Chicago. 

Apesar dos prémios, a realizadora continuou a ser alvo de pressões e controvérsias por parte do governo checo. Chytilová afirmou-se com um olhar vibrante, surrealista e irreverente e imprimiu o seu cunho à new wave checa. A realizadora faleceu em 2014 com a idade de 85 anos. 

Marguerite Duras 

© Marguerite Duras

Multifacetada e uma das mais importantes e influentes autoras, Duras nasceu a Abril de 1914 na então Indochina Francesa (Vietname). Provida de uma grande cultura literária, Duras escreveu romances, peças de teatro, ensaios e realizou filmes com um cunho experimental bastante demarcado. 

Hiroshima Mon Amour de 1959 realizado por Alain Resnais, foi talvez um dos seus argumentos mais acessíveis e que lhe auferiu uma nomeação para melhor argumento original da academia. 

Como realizadora, Duras foi mestre de filmes ora contemplativos, tempestuosos, melancólicos e profundamente reflexivos. Détruire, Dit-Elle (Destroy, She Said) lançado em 1969 e um dos seus primeiros filmes adaptado do seu livro com o mesmo nome, recheia-se de simbolismo que permeia a identidade das personagens, fazendo com que se nos tornem familiares e próximas. 

Nathalie Granger, realizado em 1972, é um exercício de cinema com um cariz algo minimalista que se divide entre o quotidiano de duas mulheres francesas no início dos anos 70. Um slice of life que aparentemente descreve o mero quotidiano de duas mulheres que é subvertido por um subtexto subtil de mistério e ameaça. 

India Song, realizado em 1975, tem um andamento lento que convida à reflexão e é um dos exemplos de cinema contemplativo. A narrativa não é totalmente clara ou linear, mas centra-se no imaginário e vida amorosa da protagonista, casada com um diplomata francês em meados dos anos 30 na Índia. É um filme que evoca a linguagem cinematográfica e estética própria de uma realizadora que nunca optou pelo imediato e acessível. 

Doris Wishman 

© Doris Whishman

Se houvesse um prémio de cinema para os melhores títulos de filme, Doris Wishman seria uma séria candidata. Títulos como Satan was a Lady, Bad Girls go to Hell e A Night To Dismember pertencem ao catálogo cinematográfico extenso e surpreendente de Wishman. 

Nascida em Junho de 1912 em Nova Iorque, Wishman começou a sua carreira na sétima arte a realizar filmes com a temática do nudismo, tendo pedido dinheiro emprestado à sua irmã para realizar Hideout in the Sun, filmado em 1958. 

Mais tarde, enveredou por filmes com a possível bolinha vermelha no canto superior direito do écran, dedicando-se a temáticas sexuais e fazendo parte do género de sexploistation, normalmente filmes de orçamento muito reduzidos que contêm situações sexuais e nudez algo gratuita. Um desses exemplos foi o seu filme, Bad Girls go to Hell, que contém uma sequência de sonho bastante interessante. 

Em meados dos anos 70 realizou o original Deadly Weapons, detentor de uma premissa inusitada que ilustra uma mulher de seios avantajados que os usa como arma para se vingar dos homens que mataram o seu marido. 

O seu trabalho no final dos anos 70 e início de anos 80 resvalou para a realização de filmes pornográficos e eróticos e aflorou depois o género do slasher (revitalizado e popularizado por clássicos como Halloween de John Carpenter), realizando o bizarro mas fascinante A Night to Dismember com a duração curta de apenas 69 minutos. 

Doris Wishman uma vez disse: “When I die I’ll make films in hell.”, uma citação audaz e que personifica de certa forma, uma realizadora que navegou vários mares do cinema com um barco movida ao leme da perseverança e resistência, características próprias de realizadores de exploitation

Barbara Hammer 

© Barbara Hammer

Barbara Jean Hammer filmou e retratou em grande-plano as relações afectivas e sexuais de mulheres. O envolvimento lésbico e as problemáticas de género, fizeram parte da cinematografia de Hammer

Licenciada em psicologia, Hammer sentiu-se inclinada a fazer filmes de cariz experimental sobre as suas experiências pessoais. Foi nos anos 70 que se assumiu como lésbica e começou a realizar filmes em super 8, realizando Dyketactis, considerado um dos primeiros filmes de temática lésbica. Dyketactis, uma curta filmada em 1974, é um retrato de vários casais lésbicos, construído a partir de imagens explicitas de relações sexuais. Nas primeiras exibições da curta foram também interditas as entradas de homens nas salas. 

Radical na sua abordagem e uma voz activa do mundo lésbico, Hammer realizou um sem número de curtas e o influente documentário Nitrate Kisses, realizado nos anos 90, que aborda a vida e testemunhos de mulheres que contam como era ser lésbica nos anos 30, 40 e 50. 

Hammer faleceu recentemente em 2019 com 79 anos, mas deixou um legado importante para e no cinema queer

Chantal Ackerman 

Chantal Akerman e Babette Mangolte na rodagem News from Home© Chantal Akerman

Autora de curtas, documentários e longas e ficção, Ackerman nasceu na Bélgica, em Junho, em 1950. A sua mãe - com quem sempre manteve uma relação próxima - foi uma sobrevivente do holocausto, tendo sido encarcerada em Auschwitz durante vários anos. 

Ackerman decidiu que queria realizar filmes em idade muito tenra e cedo começou a realizar curtas, documentários e ficções com a sua estética e visão únicas. Um dos seus trabalhos mais reconhecidos e aclamados foi a longa de duração titânica, Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles que narra realisticamente o quotidiano de uma dona de casa em Bruxelas que, além de cuidar do filho, recebe também alguns homens em casa com intuito monetário para a subsistência do seu filho e dela mesma. O filme é considerado hoje em dia como um filme de culto e um dos exemplos basilares de cinema arthouse

Apesar desse filme ser considerado um exemplo de cinema feminista, Ackerman sempre rejeitou e quis distanciar-se desse rótulo, afirmando certa vez que existe multiplicidade na expressão, e que quando se diz que certo filme tem uma linguagem feminista, parece que estamos a dizer que há apenas uma forma de uma mulher exprimir-se. 

Ackerman ofereceu a sua visão e filosofia próprias (segundo a realizadora inspirada nos escritos de Gilles Deleuze e Felix Guattari) a vários documentários e longas de ficção. Faleceu em 2015 com apenas 65 anos, vítima de suicídio, deixando um legado imenso a cineastas e cinéfilos.

Texto: Cláudia Zafre