quinta-feira, 7 de maio de 2020

João Canedo gasta a esperança a navegar novos mares

© Hippie and Corporate

A relação com o instrumento é uma relação de compromisso, quando realmente assalta a curiosidade em explorá-lo com dedicação e esforço. Há espaço e tempo para tudo, para saber como se deve afinar e quais as afinações que mais se adequam a cada tema, qual a textura perfeita e, por isso, é importante compreender qual a espessura das cordas para determinado som, se mais cristalino se mais cru, ou qual o tipo de madeira a escolher para uma guitarra, toda esse conhecimento e envolvimento com o instrumento são necessários e vão aumentando, se a oportunidade e interesse existirem. Não existindo e não podendo ter à mão uma guitarra distinta em termos de qualidade e preço, o que importa, na realidade, é o lado mais romântico que leva a quem a maneja à magia que é exprimida pelos acordes que se soltam. João Canedo, um músico português autodidacta, dedilha o som cristalino que transmite a sua experiência de vida com base na observação e contemplação da beleza das coisas, uma espécie de William Tyler que viaja para compreender o mundo ao lado da sua companheira guitarra. 

Gasta Essa Esperança é o novo disco do guitarrista João Canedo, cujo projecto é baseado num guitar show com um estilo percussivo distinto. O disco está disponível na íntegra nas plataformas digitais desde 20 de Março, editado pela Sincronia de Sons e gravado no Stage Studio (Porto). A capa é da autoria do fotógrafo Filipe Braga, com artwork da designer Catarina Pereira Coelho, Lepur’s Design, em colaboração com Joana Fino.

© Hippie and Corporate

Normalmente associa-se músicos a solo a pessoas mais introvertidas e não tão socialmente activas. Identificas-te com esta premissa?
Olá. Sempre fui uma pessoa introvertida, observadora e que nunca gostou de ser o alvo das atenções. Aliás, transpirava e ficava desconfortável quando tinha de me expor em público ou simplesmente de ler em voz alta na escola. Em contrapartida o meu trabalho com música e como artista a solo veio em sentido oposto à minha personalidade. Sempre gostei de inventar música e nunca tracei um plano a pensar que no futuro teria de me apresentar em palco sozinho, mas as coisas foram acontecendo naturalmente e agora confesso que o palco é um dos lugares onde me sinto melhor. Mesmo assim continuo a gostar muito de estar no “escuro” a criar e experimentar. Posso portanto dizer que a minha personalidade evoluiu e já não sou introvertido, mas também estou longe de ser extrovertido. 

© Renato Costa

Nesta altura atípica, como olhas para o estado desta pandemia, principalmente para a cultura, e como vislumbras o futuro?
Estes têm sido dias terríveis para a população mundial em geral e os artistas não têm sido excepção, sobretudo para aqueles que vivem de performances ao vivo. Em contrapartida tem sido uma boa altura para trabalhar em novos arranjos, novas técnicas, delinear planos, etc. Não consigo prever o que vai acontecer no futuro, mas acredito que as performances artísticas vão ser das últimas áreas a poder voltar a trabalhar, por isso todos os artistas continuarão a passar um mau bocado. Toda a sociedade está e continuará a passar esse mau bocado, mas espero que o pior já tenha passado. 

És autodidacta mas tocas como se tivesses alguma formação. Nunca estudaste a técnica do instrumento?
Nunca estudei técnica nem teoria. Sou apenas uma pessoa que gosta muito de explorar e que passou e gastou muito tempo nessa exploração. Esse gasto depois traduz-se em ganho de técnicas. Mas é um trabalho árduo e, por vezes, doloroso. Há situações em que desde o momento em que descubro uma técnica até ela estar segura e fluida podem passar meses. E às vezes uma técnica complexa pode ter apenas uma passagem de um segundo numa música. 

"Toquei, no entanto, pouco tempo com as 12 cordas. Tendo percebido que esta era a guitarra acústica com melhor sonoridade que eu tinha, tirei as cordas para poder utilizá-la como uma guitarra de 6 cordas. Precisava que ela ganhasse a agilidade para eu poder tocar os meus temas que não foram construídos para as 12 cordas. Foi uma guitarra construída no início da década de 70 e, segundo o luthier que me calibra as guitarras, foi construída por um luthier japonês numa das melhores casas de guitarras do mundo."


© Hippie and Corporate

Tens como referências a música tradicional portuguesa, mas acho que bebes mais do folk primitivo americano dos '60 e '70 e do mais contemporâneo, dos músicos que exploraram a guitarra de uma forma mais imersiva, John Fahey, Jack Rose, Glenn Jones, Andy Mckee, William Tyler... Onde achas que te encontras mais como músico e pessoa?
Tendo a concordar com essa apreciação, mas posso dar o exemplo da música “Portugal Pro’fundo?”. Se se metesse alguém a dançar o vira minhoto enquanto eu estivesse a tocar a música, verias que quando digo que tenho influência da música tradicional essa afirmação fazia mais sentido. Deste disco novo a “Bonne Chance” e a “Il Mondo È Bello” também estão um pouco nessa zona. As minhas influências de rock alternativo, indie, folk, música clássica, etc, levam-me para um lado muito contemplativo e reflexivo. Já vi várias pessoas a chorar enquanto eu tocava. Talvez porque, sem intenção minha, as levei a encontrarem-se consigo próprias e a reflectirem sobre algum assunto ou sobre o sentido da vida. Agora tenho andado numa fase de fazer e tocar música um pouco mais alegre porque eu próprio tenho andado mais alegre e expansivo e isso nota-se no álbum “Gasta Essa Esperança”. 

Desses nomes que mencionaste, John Fahey foi algo arrebatador assim que o descobri. Aquela melancolia que me agrada imenso, as harmonias, as melodias, a técnica dos dedilhados… incrível! Conheço o Andy Mckee por causa daquele vídeo de show guitar que fez sucesso no youtube e ele tem uma técnica excelente. Desta nova vaga de “show guitarists” sou fã do Jon Gomm. Em Portugal temos uma boa “fornada” de guitarristas que aprecio bastante, como o Norberto Lobo, Filho da Mãe e Tó Trips. Sobretudo gosto de ouvir gente que procura encontrar na música a sua própria forma de se expressar, sem cânones e é isso que tento fazer quando crio a minha música. Tenho ainda que fazer referência àquele que considero ser um dos melhores músicos/compositores/intérpretes/escritor de canções, o Jeff Buckley e à pessoa que me inspirou a fazer música a solo, o baixista aveirense com o seu projecto de baixo a solo com uma sensibilidade e uma força impressionantes, Alexandre Mano. 

"Sim, é difícil dar a conhecer este tipo de trabalho, mas continuo interessado no que um homem e uma guitarra, sem palavras (e sem o uso e abuso de loopstations (risos), consegue transmitir. E continuo tão entusiasmado quanto no início mas já sem a inocência de outrora. Olho para este projeto como uma missão que não precisa de sins nem nãos ou de aprovações e desaprovações. Claro que fico mais orgulhoso e satisfeito quanto maior for o número de pessoas que se sintam tocadas pela música."


© Hippie and Corporate

Além da parte de tocar, como compreendes o instrumento? Qual a guitarra com que tocas, há quanto tempo a tens, fizeste alguma alteração à estrutura original?
Olho para a guitarra como um instrumento bastante completo porque pode fazer linha de baixo, harmonia, melodia e secção rítmica tudo ao mesmo tempo. Ultimamente tenho trabalhado muito na secção rítmica e procurado técnicas que me permitam inseri-la com os outros elementos, mas o que mais aprecio na guitarra não é muito o virtuosismo, mas sim a harmonia. 

Não tenho tido nenhuma guitarra fixa com que toco. No início comecei por ter guitarras clássicas e só depois passei para as “folk”. Quando crio alguma coisa sei automaticamente se essa música tem de ser tocada em guitarra clássica ou folk. 

A penúltima guitarra que me acompanhou em concertos foi uma guitarra “folk” de 12 cordas. Quando a comprei, estava com alguns problemas, mas assim que consegui que ma arranjassem e depois de ouvir o som acústico dela fiquei encantado. Toquei, no entanto, pouco tempo com as 12 cordas. Tendo percebido que esta era a guitarra acústica com melhor sonoridade que eu tinha, tirei as cordas para poder utilizá-la como uma guitarra de 6 cordas. Precisava que ela ganhasse a agilidade para eu poder tocar os meus temas que não foram construídos para as 12 cordas. Foi uma guitarra construída no início da década de 70 e, segundo o luthier que me calibra as guitarras, foi construída por um luthier japonês numa das melhores casas de guitarras do mundo. Nessa guitarra costumava usar cordas 0,13, que são cordas grossas e com uma tensão alta para a guitarra, coisa que muitas guitarras não permitem ou algo que não é aconselhado. Conseguia ter uns graves muito ricos e a corda mais aguda não soava a apenas um arame fininho (risos). Ganhei bastante força na mão esquerda dada a exigência pedida pelas cordas mais grossas. Claro, porém, que não há “bela sem senão”. O braço era mais grosso do que uma guitarra de 6 cordas, mais largo e mais lento. Depois, o tampo era maciço e nas percussões em guitarra não é aconselhado fazer batidas de bombo fortes, tal como eu tenho tendência para fazer (principalmente quando estou emocionado ou exaltado a tocar), havendo o risco de partir o tampo. Por isto e por, entretanto, o truss rod ter partido, deixei de a usar.

Já usei uma Ovation americana que considero uma boa guitarra mas que, infelizmente, não vai ao encontro das necessidades do tipo de música que estou a fazer agora. 

Entretanto, encontrei a “menina dos meus olhos” e é com ela que tenho tocado sempre. Tem todo o imaginário de som que eu tinha na cabeça, mas que nunca tinha encontrado numa guitarra. É uma “folk” de 6 cordas, com o corpo ligeiramente mais pequeno do que o usual, mas que tem um timbre que me satisfaz, dado o equilíbrio entre graves, médios e agudos. Aliado a isso, encontrei o pickup que creio ter o melhor compromisso na captação das cordas e das percussões. Consigo ter o som natural da guitarra se quiser e também tenho explorado manipular o som com efeitos. O meu próximo trabalho que está a ser feito agora em tempo de quarentena já terá pinceladas dessa exploração. 

"Haverá pior sensação do que passar a vida na praia à espera dos barcos que chegam e partem enquanto continuamos a querer embarcar e, ao invés disso, ficamos?"


© Filipe Braga

Tens mais álbuns originais auto-publicados como “Horas” de 2011, “O Trabalho da Formiga”, Tentar Custa” de 2012, “Gosto do Teu Ar” de 2016, e este “Gasta Essa Esperança” é o teu primeiro álbum de estúdio. É difícil dar a conhecer o trabalho quando tudo que se faz é de uma maneira honesta, genuína e um pouco inocente. Finalmente, consegues gravar num estúdio, como reflectes essa passagem de casa para um estúdio? É como “gastar essa esperança”? Ou seja, ir até ao fim sendo resiliente?
Sim, é difícil dar a conhecer este tipo de trabalho, mas continuo interessado no que um homem e uma guitarra, sem palavras (e sem o uso e abuso de loopstations (risos)), consegue transmitir. E continuo tão entusiasmado quanto no início mas já sem a inocência de outrora. Olho para este projeto como uma missão que não precisa de sins nem nãos ou de aprovações e desaprovações. Claro que fico mais orgulhoso e satisfeito quanto maior for o número de pessoas que se sintam tocadas pela música. 

Os primeiros álbuns foram gravados com uma total inocência e com muito pouco conhecimento, e recursos, sobre como captar, misturar, masterizar, fazer artwork, etc. Contudo, foi um processo em que fui sempre aprendendo e hoje sei melhor o que quero e como quero graças a isso. Gravar em estúdio não foi algo novo, já tinha passado por esse processo quando tive bandas. Acredito que o mais importante é que seja captada uma essência, seja em estúdio, em casa, ao ar livre ou numa sala de concerto. Às vezes em estúdio isso perde-se, mas passar de casa para o estúdio foi algo muito bom porque, pela primeira vez, consegui ter um som que realmente me deixava satisfeito. Também acredito que a qualidade de som tem extrema importância e que a nossa percepção de gosto tem que ver com a forma como o som nos chega.

"Gasta Essa Esperança" vai ao encontro de realizar coisas que sempre temos como sonhos, aquelas coisas que um dia vamos fazer e que depois nunca acontecem. Esse título surgiu de uma letra de JP Simões com Quinteto Tati, chamada “Domingo Sem Deus na Terra da Solidão”. A mensagem que eu tento passar com este disco é para, tal como diz a letra, as pessoas gastarem toda a esperança, gastarem-se a elas próprias e a tudo mais que têm na busca do que ambicionam. Haverá pior sensação do que passar a vida na praia à espera dos barcos que chegam e partem enquanto continuamos a querer embarcar e, ao invés disso, ficamos?

Gostarias de deixar alguma mensagem, seja em relação ao que estamos a viver agora, seja em relação ao teu trabalho?
Sim, quero dizer às pessoas para manterem o ânimo, porque acho e espero que o pior já tenha sido ultrapassado e que a partir de agora as coisas irão melhorar. 

Quero também dizer que estou a trabalhar num álbum que, na minha opinião (que é bastante crítica (risos)), vai ser melhor do que os anteriores, sobretudo por causa das composições e das novas técnicas que tenho adquirido. 

Obrigado!


Texto e entrevista: Priscilla Fontoura
Entrevistado: João Canedo

Imagens: Hippie and Corporate, Filipe Braga, Renato Costa
Vídeo e imagem: João Pedro Santos
Edição: João Canedo