quarta-feira, 13 de maio de 2020

MUSGOS e a biodiversidade musical

Os seres humanos reproduzem-se e os seres vivos também. Semelhante à fecundação entre os seres humanos, acontece quase de igual forma com os seres vivos. O gameta masculino viaja por meio líquido ao encontro do gameta feminino que é imóvel. Assim se formam os musgos. Os musgos crescem em abundância em regiões húmidas e abrigadas da luz, próximos de rios e florestas, ali avista-se a beleza que subsiste longe dos olhos humanos, apesar de poderem ser encontrados em quase qualquer parte do mundo. Já nós humanos precisamos da relação e contacto com a natureza para nos sentirmos em paz, em harmonia connosco e com todo o meio que nos circunda. Nem todo o ambiente é propício à formação dos musgos, mas quando se propagam são verdadeiros tecidos da natureza. Estes Musgos trazem do casamento do baixo e da bateria uma fusão de post-prog-rock-punk-jazz experimental, exploram experiências metafísicas da criação singular; ritmos dissonantes e arrítmicos são a chave para a expressão.

Bandas como Primus e Morphine têm o baixo como eixo principal para a base composicional, o mesmo acontece com Musgos, cuja exploração vai além da física do instrumento. Tiago Margaça é quem lhe dá ritmo e groove. Viveu em Berlim, é baixista e artista plástico. A banda iniciou-se como trio e agora são dois com Miguel Sampaio de volta à bateria.

© Tiago Margaça

Tiago como se encontram os Musgos, de boa saúde?
Boas Priscilla, Musgos encontram-se de excelente saúde, depois de 9 anos em Berlin com várias formações. Fechou-se um capitulo com o terminar do álbum “Memórias dissonantes de paisagens arrítmicas” que resume em formato de disco essas vivências. 
Agora de regresso a Portugal é uma grande honra voltar a tocar com Miguel Sampaio, que fez parte da formação original de Musgos, conjuntamente com Roberto Afonso (Lavoisier) por volta de 2007. Depois de bastantes ensaios adaptámos o nosso diálogo ao formato de Duo de baixo e bateria em que os visuais de formatos analógicos preenchem ainda mais o nosso repertório. Neste momento estamos a trabalhar em novas composições, depois de um ano a preparar o set para divulgação do álbum voltámos à estrada que, infelizmente tivemos de interromper, graças à actual situação em que vivemos.

"Bem desde a minha infância que me senti conectado com as artes, considero-me mais escultor que músico e mais músico que filósofo. Mas não sei porque estes três mundos continuam a ser a minha força motora. Provavelmente é porque gosto de questionar o que me rodeia através do fazer."


Como é estar de volta à realidade cultural portuguesa, é um quanto diferente da de Berlim...
Estar de volta a Portugal é maravilhoso, penso que Portugal está a experienciar um momento singular nas Artes e mais em concreto no mundo da música. Desde os meus doze anos que toco baixo e nunca vi tantos concertos e sítios para tocar como hoje. Finalmente Portugal começa a ter um movimento de músicos que não se concentram só em Lisboa e no Porto. Relativamente a Berlim é um mundo completamente diferente, passar de uma grande cidade para uma pequena cidade como Aveiro é quase um choque térmico. O que posso dizer é que é bom olhar para a cidade em que cresci e vê-la com outros olhos acreditando que posso fazer parte do mundo da cultura a partir daqui. Além disso deu-me a tranquilidade para poder trabalhar a 100% na música e nas Artes, às vezes estar numa grande metrópole causa um aceleramento na nossa rotina e não dá tempo à introspecção.

© Diego Gomez

O som de Musgos não é para grandes massas, mas também não é a projecção que importa quando o poder está no encontro de músicos e no cruzamento criativo. Como acontece o processo composicional? 
Sim, Musgos não é algo para as massas, é mais para um nicho de pessoas que não se inserem em géneros musicais ou algo que se ponha numa caixa (estilo musical). O propósito de Musgos sempre foi o da necessidade de fazer música como um modo de libertação. Depois tive a sorte de conhecer e tocar com pessoas espectaculares e fazer amigos para a vida. As composições sempre partiram de mim, embora não tenha sido esse o propósito, pois eu sempre fiz um esforço para que os outros intervenientes viessem com músicas ou ideias para os ensaios. Antes de começar esta aventura, eu já tinha umas 5 músicas já concluídas, devido a ter terminado a minha banda de juventude o vício da música permaneceu e cresceu em forma destas composições a partir do baixo. Isso levou-me a explorar mais os acordes e a ter variações de tempo mais acentuadas. Assim nas Caldas da Rainha onde estudei escultura, comecei a conhecer pessoas que tocavam os mais variados instrumentos e assim se plantou a semente que deu origem a Musgos. 

Projectam filmes em super-8, de quem partiu essa ideia e como se processa?
O filme super-8 foi a razão da minha ida para Berlim, onde trabalhei no melhor laboratório de revelação de película da Europa por 8 anos. Assim tive a possibilidade de trabalhar no meu trabalho de vídeo-arte que posteriormente se uniu a este projecto. 

Berlim tem um histórico forte na cena experimental artística, como comparam e separam os públicos e a liberdade criativa entre lugares, tanto em mentalidade e cultura.
Berlim é uma cidade de contrastes, vê-se de tudo desde o Punk de rua ao homem de negócios de fato, o que é espantoso é que há uma espécie de harmonia entre estes mundos. Na verdade Berlim não é uma cidade, é como musgos, composta de várias cidades. Isto é foi uma cidade que sofreu muitas mudanças até 89 com o cair do muro, assim se percorrer esta cidade vai notar um mudança quase brusca de bairro para bairro, principalmente se for de metro.

Musicalmente encontra-se de tudo, mas o prato da casa é sem dúvida alguma o Techno. Há uma liberdade criativa enorme, com vários sítios undergorund que dão essa possibilidade, o problema que vejo é que com o passar dos anos Berlim tornou-se uma cidade turística de festa. Assim todos estes espaços estão sob a ameaça de desaparecer e muitos deles já desapareceram, estão cada vez mais a deslocar-se para as periferias. Mas culturalmente é uma cidade muito rica e com muito para oferecer.

O nome Musgos abre-se logo a paisagens mais orgânicas, naturais e fora do espectro digital. Existe alguma posição afirmativa quanto a isso, são músicos mais voltados para o modo de fazer artesanal e analógico? 
Sim, Musgos, tal como o nome indica, está intimamente ligado com o mundo natural. Pessoalmente não tenho nada contra o mundo digital, mas não posso deixar de dizer que me sinto mais conectado com o mundo analógico. Principalmente no filme, há algo de metafísico com o processo de capturar imagem através do queimar da película.

© Miguel Sampaio


"Penso que este momento serve para nos reinventarmos e olharmos para as nossas rotinas diárias levantando (espero eu) questões que nos levem a ser melhores seres humanos."




Têm um disco que demorou três anos a ficar pronto. Deve-se ao facto de ter envolvido vários músicos, ou a outra razão?
Este disco resume praticamente os 9 anos vividos em Berlim onde conheci muitos músicos dos mais variados estilos musicais. Mas na verdade este álbum tem uma longa história que vou tentar resumir. No momento em que tínhamos tocado no famoso Lido e So36 (onde tocaram míticas bandas como os Sex Pistols e muitas outras), e, após termos dado uma entrevista na Alex (rádio de Berlim), tivemos a possibilidade de gravar no studio k61 graças à aposta de Mario Engelter, e o baterista com que estava a tocar há aproximadamente 5 anos só gravava as baterias se lhe pagasse. É de referir que nesta altura estava com três trabalhos em simultâneo e a música só me dava despesas como ainda hoje hahahahahhah!!!! Isto era a gota de água e assim começou a procura de um novo baterista. Após termos experimentado vários bateristas, o Boris foi o primeiro que conseguiu os requisitos necessários e gravou a primeira musica “Trânsito”, mas sendo ele um cientista que tirava doutoramento em algo - que não sei agora precisar - teve a possibilidade de fazer uma expedição ao pólo Norte, assim esteve ausente por 6 meses e gravámos outra música na sua ausência com Fiete. Quando regressou tinha já uma nova expedição em dois meses o que me levou a procurar um baterista fixo. Mediante esta procura o álbum foi se gravando e levou-me a convidar o guitarrista anterior, e no final tornou o álbum num aglomerar de amigos músicos que fiz durante os meus "Berlin years".

És artista plástico e músico, como as duas artes se interligam?
Bem desde a minha infância que me senti conectado com as artes, considero-me mais escultor que músico e mais músico que filósofo. Mas não sei porque estes três mundos continuam a ser a minha força motora. Provavelmente é porque gosto de questionar o que me rodeia através do fazer. 

Tendo em conta o cenário do momento, como olham para o futuro da música?
Neste momento Coronoso encontro-me num ritmo alucinante de produção artística e na verdade estava a precisar de olhar para mim e reflectir sobre o mundo. Infelizmente este vírus mortal deu também origem à trágica situação em que vivemos, em que a perda de vidas constante causa o medo e a tristeza. Só espero que passado este tenebroso período da historia da Humanidade, dê lugar a um melhor futuro para todos nós.
A nível musical é muito difícil, pois sinto a falta de ensaios regulares e o cancelamento de concertos que tínhamos nesta altura são um grande retrocesso para nós. No entanto, deu origem a um novo processo de trabalho à distância, o que nos levou a trabalhar em novos temas em conjunto.

Penso que este momento serve para nos reinventarmos e olharmos para as nossas rotinas diárias levantando (espero eu) questões que nos levem a ser melhores seres humanos.


Texto e entrevista: Priscilla Fontoura
Entrevistado: Tiago Margaça, Musgos
Imagens: Diego Gomez, Miguel Sampaio, Tiago Margaça