Cartaz: Andrey Tarkovsky: A Cinema Prayer (2019); Imdb |
Qualquer referência a Andrey Tarkovsky nunca pode ser negativa, não fosse considerado o mestre do cinema existencial. O cineasta russo ensinou-nos a espiritualidade da sétima arte e demonstrou também como as imagens não se ficam pelas meras imagens. Andrey Tarkovsky é quem comanda a oração feita através de gravações raras. Ao longo do documentário vamos ouvindo - em modo diarístico - as suas memórias de infância e da vida adulta, a sua percepção da arte e as suas reflexões em torno do destino do artista e do sentido da existência humana, que permitem ao espectador submergir no seu mundo misterioso pelas imagens dos seus filmes e registos pessoais. O modo reflexivo de representação cria uma espécie de metanarração que nos faz esquecer o realizador (filho) e nos aproxima do pai (do cinema poético).
Realizado pelo filho do cinesta Andrey A. Tarkovsky, o documentário é acompanhado por gravações inéditas de poemas do seu avô Arseny Tarkovsky e lidos pelo próprio.
O filme é composto por excertos dos filmes do cineasta-pai, fotografias e vídeos raros feitos nos lugares onde viveu e trabalhou, como a Rússia, a Suécia ou Itália, o seu lar adoptivo.
O documentário biográfico aborda a relação distante que Tarkovsky (1932-1986) teve com o seu pai, que cedo divorciou-se da sua mãe. O cineasta escolheu viver com a sua mãe e irmã e confessa que não sabe como a sua mãe foi tão forte, nem como conseguiu proporcionar-lhe uma educação artística com formação de piano e cinema. Ainda que distantes, é sentido em A Cinema Prayer o profundo vínculo cultural e espiritual entre pai e filho.
Se quisermos ir ao encontro da mesma densidade espiritual na arte, é provável encontrá-la nos últimos vultos artísticos. Arvo Pärt é um desses exemplos, poderia ser o Tarkovsky da música, que se contrapõe ao materialismo do mundo ocidental que vive à velocidade da promoção da materialidade e da exaltação do ego e que, por consequência, vai atropelando a espiritualidade que de dia para dia ganha menos vitalidade — é a humanidade que se auto-destrói continuamente. O documentário A Cinema Prayer vai além da simples leitura da imagem, é uma oração, uma chamada para o sentido da existência humana e para as interrogações que tocam o espírito.
Dividido em sete capítulos e um epílogo, o filme-documentário começa onde acaba, nas memórias de infância, que, para Tarkovsky, são essenciais para a compreensão do Eu na arte. O mestre do cinema dava liberdade total ao actor se o mesmo partilhasse da sua visão. Contrariamente à construção da mentalidade portuguesa, que no fundo nunca foi alicerçada nos valores espirituais mas no Catolicismo materialista e supersticioso romano, a russa, em meados do século XVII, teve como líder da Igreja Ortodoxa Russa o patriarca Nikon que introduziu reformas radicais na Rússia, "convidando", forçosamente, os chamados velhos cristãos ou os velhos ritualistas a fugir para outros pontos remotos do mundo para manterem as práticas litúrgicas e rituais da Igreja Ortodoxa Oriental. Em 1978, uma dessas famílias foi descoberta por um grupo de geólogos na remota República Russa da Cacássia, na Sibéria. Os Lykov pareciam pertencer a um século anterior: usavam roupas caseiras e utilizavam instrumentos primitivos na vida quotidiana, eram completamente auto-suficientes e altamente religiosos. E é nesta estrutura que a república é enraizada nesta construção histórico-religiosa, que dividiu puritanos e supersticiosos, cuja influência continua, ainda hoje, presente no pensamento do povo que acabou por herdar este legado que traz consigo pegadas de várias cisões políticas, sociais e religiosas.
O filho do mestre do cinema não se sente intimidado em iniciar o filme colocando a nu as fragilidades do seu pai: o cineasta relata que aos três anos foi parar ao hospital esfomeado alimentando-se das peles dos lábios por causa da fome causada pelo pós guerra, num desabafo diarístico que coloca a verdade acima da vergonha, assumindo que nasceu doente.
Andrey Tarkovky; Imdb |
O documentário é todo um desabafo puro do que o cineasta considera serem os alicerces mais importantes da vida, para o russo amor é sacrifício, no sentido em que é dar-se ao outro, é ir além dos valores materiais e não o "eterno" impossível viver romântico-superficial. Tarkovsky afirma que Larisa Tarkovskaya seria a sua única mulher por lhe ter sido leal e fiel, foi quem se sacrificou por ele. Todos os seus filmes interligam-se na mesma linguagem. Desvenda também que o livro da revelação, o Apocalipse, escrito na ilha de Patmos por João, é o seu preferido.
Filho do cineasta Andrey Tarkovsky, nasceu em Moscovo em 1970. De momento, vive entre Florença, Paris e Moscovo e trabalha para preservar e promover o trabalho do seu pai Andrey Tarkovky. Realizou em 1996 o documentário televisivo The Reminiscence, dirigiu a curta-metragem Bastignano (2006) e, além do cinema, dedica-se a organizar exposições de fotografias, concertos e publica livros.
Texto: Priscilla Fontoura
Imagens: Imdb
Texto: Priscilla Fontoura
Imagens: Imdb