Por mais que o cinema seja ilusão, sente-se sinceridade no cinema de Cláudia Varejão assim que observamos os seus filmes. A ilusão nada tem a ver com a ideia de verdade ou mentira, mas com a magia que leva para uma dimensão que atravessa os limites da realidade.
Cartaz Amu-San, de Cláudia Varejão; (2018) |
AMA-SAN, (2018)
Tanto as longas Ama-San quanto No Escuro do Cinema Descalço os Sapatos são dois documentários que primam pela sensibilidade presente no lado observacional da cineasta Cláudia Varejão, que durante a rodagem de Ama-San não encontrou entrave na língua para produzir o filme, uma vez que estava acompanhada por uma equipa luso-japonesa que domina o português e o japonês. Durante a exibição do documentário luso-suíço-japonês, no cinema Trindade, no âmbito do festival Family Film Project, a cineasta fez referência aos detalhes da rodagem. Cláudia Varejão explicou que a comunicação não se manifesta apenas pela verbal e que a mesma pode ser exprimida sob variadas maneiras e formas, destacando a gestual. Viveu três semanas com as Ama-San que foi o tempo que teve para rodar o documentário. Antes da montagem, traduziram o material todo que coincidentemente batia certo com o que a cineasta intuía.
A especificidade da história das Ama-San enaltece o facto de mergulharem em apneia, em contraste com os atletas de competição que vão perdendo a destreza física, enquanto que as Ama, quanto mais envelhecem, melhor se tornam no seu ofício, que é estar debaixo de água para pescar. A cineasta refere que a ilusão do cinema cria também ilusão física, por isso tudo o que acontece na tela parece possível. Durante o documentário é observado um pano de linho revestido pelas Ama, o pano remonta a dois mil anos, as Ama mais antigas usam o pano branco carimbados com símbolos vermelhos que simbolizam a protecção dos deuses – uma superstição ou valor espiritual - porque muitas morrem e ficam presas nas algas quando submergem em alto-mar. A realizadora não foi bem recebida nas aldeias que visitou aquando da sua pesquisa promovida por uma bolsa do oriente, os moradores olhavam-na com desconfiança. Na última aldeia que visitou, a aldeia de Wagu – uma pequena vila piscatória da Península de Ise, Matsumi, Mayumi e Masumi - foi muito bem recebida e foi a partir dessa localidade que construiu o seu documentário que acompanha os dias de três japonesas que mergulham em apneia sem recurso a qualquer material externo.
A cineasta afirmou que o cinema exige muita técnica, mas tem uma grande dose de acaso. Filmou com a Canon EOS 5D MARK II, por ser de fácil transporte, mas o trabalho de montagem exigiu muita dedicação. As filmagens subaquáticas foram realizadas por um especialista em imagens debaixo de água. No que respeita a ângulos, a cineasta influenciou-se em OZU e transferiu para a câmara o olhar do cineasta japonês que se adapta à baixa escala para destacar as personagens utilizando ângulos ascendentes. O cinema de Cláudia Varejão é marcado por uma grande sensibilidade, por um olhar que ressalta a essência humana. As Ama-San, quais caçadoras do mar, unem-se com o propósito de continuar uma tradição que existe há mais de 2000 anos, cujo ofício exige que consigam arrancar os abalones das rochas do fundo do Oceano Pacífico, sem auxílio de qualquer aparelho externo, tal como uma botija de ar, contam, apenas, com a saúde dos seus pulmões para que o trabalho possa ser executado com sucesso.
No Escuro do Cinema descalço os Sapatos, de Cláudia Varejão; (2016) |
NO ESCURO DO CINEMA DESCALÇO OS SAPATOS, (2016)
Em celebração a quatro anos de existência, a Companhia Nacional de Bailado de Portugal convida Cláudia Varejão a acompanhar o quotidiano de bailarinos, coreógrafos, músicos, ensaiadores, costureiras, técnicos de luz, som e toda uma alargada equipa que ocupa os corredores e salas de ensaio com danças e exercícios rigorosos. No Escuro do Cinema descalço os Sapatos acompanha as criações e estreias da companhia e também o trabalho silencioso de cada bailarino.
Cláudia Varejão é originária do Porto e estudou cinema no Programa Gulbenkian Criatividade e Criação Artística da Fundação Calouste Gulbenkian em parceria com a escola alemã Deutsche Film und Fernsehakademie Berlin, na Academia Internacional de Cinema (AIC) em São Paulo, Brasil e fotografia na AR.CO, em Lisboa. Tem alargado a sua obra, produzindo documentários de curta e longa duração. Falta-me, Fim-de-semana, Um Dia Frio e Luz da Manhã são trabalhos que têm conquistado vários prémios em festivais de importância internacional. Em 2016 estreou no Cinema du Réel a sua primeira longa metragem No Escuro do Cinema descalço os Sapatos, um filme sobre a Companhia Nacional de Bailado. Também em 2016, Cláudia Varejão estreia Ama-San no Visions du Réel, filme premiado com uma menção honrosa no Festival Internacional de Karlovy Vary.
Cláudia Varejão tornou-se cineasta de uma maneira menos ortodoxa, começou a estudar Educação Física, mas a sua grande paixão foi o cinema que, no seu caso, enobrece o elemento humano.
Texto: Priscilla Fontoura