As curadorias têm a particularidade diferencial em assumir o espaço como parte integrante de uma exposição. A noção espacial é tão ou m...

Ana Jotta, a outsider que se coloca fora do centro, torna a Casa São Roque uma obra de arte com Inventória.



As curadorias têm a particularidade diferencial em assumir o espaço como parte integrante de uma exposição. A noção espacial é tão ou mais importante que as peças. Assim torna-se elementar pensar o lugar como parte da obra.

A exposição Inventória de Ana Jotta, patente na Casa São Roque de Ana Jotta, separa e conjuga dois tempos diferentes, separa os contextos social, político e artístico pela diferença e distanciamento cronológicos; conjuga o antigo e o contemporâneo que habitam o mesmo lugar. Curiosamente, enquanto que na casa, onde a artista reside, não resta nenhum espaço por estar totalmente ocupado por muitas das suas peças, na Casa São Roque são poucos os objectos distribuídos nos compartimentos do palacete; o minimalismo penetra o romantismo e a art noveau presentes na casa, por sua vez os ponteiros do seu relógio andam em contratempo desconcertados no compasso do relógio. 

Mas todas as casas — mesmo que inabitadas — contam uma história. Esta situa-se na parte oriental do Porto, e remonta a 1759. A mansão faz parte da Quinta da Lameira e funcionou também como pavilhão de caça, prática típica da burguesia e das famílias nobres do Porto. Como muitas mansões ou casas imponentes que passaram por épocas mais enérgicas que outras, no século XIX, mais precisamente em 1888, com o matrimónio de Maria Virginia de Castro com António Ramos Pinto, um dos mais conhecidos produtores e exportadores de vinho do Porto, deu-se a expansão e a remodelação da casa - uma encomenda ao arquitecto José Marques da Silva. Como era recorrente na altura, os jardins não foram deixados ao esquecimento e a encomenda foi feita a Jacinto de Matos, responsável pelo desenho do jardim de feição oitocentista que possui Camélias e plantas exóticas. Noutros tempos em que o desleixo e outras questões começaram a tomar conta do espaço, acabando por deixá-lo passível ao abandono, fez com que a Câmara Municipal do Porto adquirisse toda a quinta e a casa ao último dono, António Eugénio de Castro Ramos Pinto Cálem, neto de Maria Virginia e António Ramos Pinto, em 1979. Alguns elementos e objectos continuam em pleno estado de conservação e ainda se inserem na colecção da Casa do Roseiral, enquanto o remanescente foi adquirido pela negociante de antiguidades Aurora Rodrigues Martins. 



No que diz respeito à fachada, o edifício mantém o seu estilo original ecléctico, introduzido com a remodelação de Marques da Silva, que se inspirou nos historicismos franceses do século XIX e na art nouveau belga, tendo sido recentemente reabilitado sob a supervisão de João Mendes Ribeiro.


No tempo presente a história começa a ser contada por Ana Jotta, que deixa nas paredes da casa desenhos que imprimem o seu toque humorístico e caricatural; desenhos-surpresa que só são observados pelos visitantes mais atentos. Apropria cenas da banda desenhada Krazy Kat (de George Herriman), transformando a casa num lar separado por paredes que poderiam ter sido desenhadas por uma criança. 

Num dos vídeos realizados por Miguel Nabinho, Ana Jotta opina sobre o mundo da actualidade. Comenta sobre uma realidade completamente entregue aos meios digitais, um mundo demasiado visual e simplificado, reduzido ao flagelo da globalização que tem vindo a reduzir a capacidade de imaginação. Continua o seu pensamento afirmando que vivemos um mundo global que cria uma história aos quadradinhos contada às crianças, tudo é rápido e de fácil leitura sem interesse nenhum. Nessa medida, o mundo em que vivemos vai-se reduzindo em vez de se ampliar. Apesar de não interessar esta forma de vida à artista, admite estar metida no mesmo caldeirão, pois esta mudança faz parte da evolução dos tempos. Ana Jotta sempre se sentiu como um objecto estranho. Trabalhar e focar no trabalho é a resposta para a sua vitalidade, sem se preocupar com o resultado que possa ter. Nasceu e sempre se considerou artista, porque para se ser artista é preciso trabalhar para o ser, independente das pessoas comprarem ou não as suas obras ou da legitimidade que dão.



Objectos produzidos por Ana Jotta de forma artesanal tais como bordados, candeeiros ou peças de cerâmica, o punho (representando o pai), e a cruz (a mãe), substituem os retratos de família habitualmente mostrados nesse tipo de salão burguês. Uma placa onde se inscreve Amor Vacui, que Ana Jotta trouxe da sua cozinha em Lisboa, está pendurada numa sala de jantar vazia. O desfecho da visita acaba no espaço Garagem onde se pode assistir ao documentário de Francisca Manuel, A coragem de Lassie, título adoptado de uma exposição individual de Ana Jotta, realizada em 1998 em Lisboa. 

Ao fim e ao cabo, Inventória presta homenagem a Rua Ana Jotta, uma retrospectiva do seu trabalho que teve lugar em 2005 na Casa de Serralves. Ana Jotta olhou para esta casa como se pudesse ser sua, decorando-a com peças autorais, e, por isso, a casa passa de inventário a obra de arte. 


Este novo centro de arte contemporânea não esquece os artistas que de uma forma ou de outra são um quanto marginalizados pelo seu país que não os acolhe como deveria. De facto, são os subversivos que dão mais trabalho, os que não se deixam vender por um prato de lentilhas. 

A Casa São Roque abre as portas a Inventória de Ana Jotta e torna-se gradualmente um espaço artístico, permanecendo "anti-cubo branco", definido em contratempo pela história, pela sua anterior função de morada e pelos rastos dos antigos donos. Nesta exposição cruza-se o contemporâneo e o antigo, as histórias e os seus intervenientes de tempos diferentes. 

Anna Jotta rende-se às artes plásticas depois de ter investido parte do seu tempo no teatro e cinema como cenógrafa e figurinista, trabalhos que não quis repetir por não gostar de trabalhar nem de depender de equipas. Escolheu estudar tapeçaria em Bruxelas numa Escola de Cinema e Arquitectura e foi a única aluna, porque nunca seguiu as tendências da maioria — principalmente na efervescência da sua pós-adolescência. Considera-se uma leitora ávida por ser filha única e ter tido muito tempo para escavar os livros da biblioteca dos seus pais que tinha os clássicos, os renascentistas, italianos como Giotto — os livros que os pais podem ter em casa nos anos 50, assim afirma. A sua mãe era uma cinéfila entusiasta e Ana Jotta seguiu as pegadas da sua mãe, sem escolher a preferência por determinado realizador, a selecção dos filmes que via e vê é feita aleatoriamente. O seu processo criativo nasce sempre sem grande critério, segue uma linha às cegas, porque se soubesse todas as coisas já se teria fartado de produzir.

A exposição que apresenta na Casa São Roque - Inventória - é o primeiro capítulo de uma série de exposições na Casa, com o título A Casa e o Atelier. Nas mostras colectivas que se seguem irá examinar o fenómeno das casas e dos ateliers de artistas —a relação entre o lugar onde a arte é feita e o lugar onde a vida é vivida. Nas cidades existem fronteiras mais marginalizadas deixadas ao abandono como as gentes que lá vivem. Sob o ponto de vista geográfico, a zona oriental costuma fazer parte desse eixo que se separa dos centros turísticos mais frequentados. A autarquia do Porto começa por interessar-se pela reabilitação de espaços da zona oriental do Porto, com planos educativos e artísticos que têm como intuito fazer chegar a grupos com carências e sem grandes alternativas a projectos sócio-educativos que promovam oportunidades que todo o aluno e cidadão deveria ter.


Da partida de um lugar nobre se faz a viagem de Ana Jotta, uma artista que se auto-considera outsider, longe dos holofotes - só assim se entrecruza com o inesperado.

Lá fora da Casa sente-se paz, transmitida pelo canto das aves e pelos jardins divididos por labirintos e fontes.


Texto: Priscilla Fontoura
Imagens, Vídeo: Emanuel R. Marques
Exposição: Inventória, de Anna Jota
Local: Casa São Roque