Kaatayra é um projecto brasileiro do músico Caio Lemos que une black metal a sonoridades tribais e uma subtil mas eficaz influência de mús...

Kaatayra: Black metal que encontra a sua verdadeira forma na transcendência e tribalismo


Kaatayra é um projecto brasileiro do músico Caio Lemos que une black metal a sonoridades tribais e uma subtil mas eficaz influência de música brasileira. O resultado é um black metal extremamente atmosférico e inventivo. 

Os discos de Kaatayra são uma experiência na transcendência de um género que brotou como um dos mais conservadores, mas que surpreendentemente foi o que permitiu mais transgressões e misturas de influências. 

Kaatayra tem realmente toda a história à sua frente para impor as suas narrativas sonoras que divagam entre o caos, a brutalidade e a paz serena. 

Como foi o nascimento de Kaatayra?
Primeiramente, obrigado pelo convite! Eu estava num período da vida em buscar uma melhora da minha saúde mental e física depois de um período difícil e conturbado. Eu busquei isso me conectando à natureza. Para ser mais específico: fazendo caminhadas dentro do mato, trilhas de cachoeiras, me alimentando melhor e passando mais tempo perto do verde. Isso ajudou muito para eu me sentir melhor.

O Kaatayra surgiu como uma forma de trabalhar essa superação e todas essas experiências. Às vezes vejo o primeiro álbum como se fosse uma forma de agradecimento

Eu escrevi as letras antes de fazer as músicas e então sonorizei elas no formato de Black Metal. Daí surgiu Kaatayra, que é uma palavra mais ou menos inventada, influenciada pelo Tupi-Antigo que significa “Filho/a do Mato”.


Toda História pela Frente imiscui o naturalismo de um Black metal atmosférico com influências tribais, especialmente na percussão. Como foi o processo de gravação do disco?
Todas os temas eu gravo em estúdio-caseiro com excepção de alguns instrumentos de percussão que foram gravados na Escola de Música de Brasília. Esse álbum foi o que mais trabalho me deu e o processo foi bem stressante, acho que justamente por causa das limitações que existem em estúdios-caseiros. Utilizei samples de percussão brasileira e algumas gravações antigas que eu tinha para fazer as partes acústicas.



A natureza parece ocupar um lugar central na génese de Kaatayra, tanto através da atmosfera geral como de apontamentos sonoros como o som de pássaros e outros. Qual a relação de Kaatayra com a natureza e que papel desempenha na identidade do projecto?
O facto da natureza ser um tema para Kaatayra foi um processo natural e muito pessoal por que tinha a ver com o que eu estava vivendo na época. E isso vale para todos os álbuns, porque com Kaatayra ou não, eu sempre estou com esse tema em mente de um jeito ou de outro. O primeiro álbum foi sobre essa conexão mais profunda, se reconhecer parte integrante, se dar conta da sua magnitude e importância. Romantizei bastante a beleza e força da natureza.

O segundo álbum eu trabalhei raiva e insatisfação. Essa raiva foi direccionada ao próprio ser humano e a como ao longo da história criamos um descaso com a mata, terra, rios e mares a troco de algo que só alimenta a destruição, doença e desigualdade.

O terceiro álbum tem as letras mais oníricas e acho que isso o torna o mais psicadélico. Foi fortemente influenciado por experiências que eu tive ao tomar Ayahuasca e me vislumbrar com a beleza pura e crua da natureza.

O último álbum é uma esperança que “Toda História Pela Frente” seja uma história de mais proximidade e respeito em relação à natureza.



Em "Só Quem Viu o Relâmpago à Sua Direita" existe uma confluência exímia de guitarras acústicas e de um folk negro, com uma grande influência tribal e de raízes brasileiras, assim como até alguns elementos psicadélicos com apontamento de órgão no segundo tema. As líricas parecem exaltar o regresso a algo que parece ser puro e inocente. Que regresso quer Kaatayra?
Esse álbum foi feito num período após trabalhos com medicina indígena. Eu estava no vislumbre pós-trabalho com Ayahuasca. Eu não tenho crença alguma, pelo menos não uma convencional, mas, talvez, esse regresso é quase como se fosse algo religioso de regressar à origem de tudo. De regressar à própria morte que também é o nascimento. Ao mesmo tempo já flirtei muito com filosofias políticas que propõem o fim do sistema civilizacional e andam à volta do reconhecimento de sermos animais e do que o que nos afasta disso nos faz mal. A aniquilação das burocracias e do sistema económico e político-social em que vivemos, o segundo álbum traz isso, então talvez haja essa ideia de algum tipo de regresso às formas antigas. Foi algo que esteticamente quis trabalhar no Kaatayra, e como sempre, foi espontâneo e natural.


A cover art de "Só Quem Viu o Relâmpago à Sua Direita" mostra um relâmpago a atingir um ninho. Que conceito e/ou simbologia se pretende expressar através dessa imagética?
Eu fiz essa capa de forma digital, é uma colagem. Por trás está uma pintura linda que infelizmente esqueci o título e nome da artista. O relâmpago não faz parte da pintura original, eu pus em cima, mas não foi proposital que se atingisse o ninho, então não há nada por trás disso. O relâmpago simboliza um conhecimento, uma Ciência, que está escondida nas ervas, na natureza. Essa sabedoria que se adquire, é poderosa como um relâmpago, novamente é uma referências ao sonhos que a medicina de ervas pode invocar.


Kaatayra é em si bastante intimista e selvagem, no entanto, alguma vez foi pensado uma transfiguração para os palcos e tocar ao vivo?
Não é algo que eu almejo. Por agora pelo menos, não tenho vontade de ir atrás disso.


Gostaríamos muito de ver alguns videoclips para os temas. É uma ideia que está em cima da mesa?
Também é algo que, por agora, não tenho interesse em fazer, mas acho que é principalmente por causa do trabalho e do tempo que fazer um videoclip demanda. Sem contar que as músicas do Kaatayra são muito longas, teria que sair quase um curta-metragem haha.



Kaatayra lançou 3 discos de longa-duração apenas este ano e todos com bastante qualidade. Este ano parece ter sido de inspiração ímpar, a situação em que vivemos de pandemia teve alguma influência?
Na verdade não, o que essa pandemia influencia é no aumento de stress e angústia para ser sincero. Acho que pelo facto de eu captar, mixar e masterizar tudo sozinho acelera muito o processo de lançar os álbuns. Sem contar que também eu não penso muito e fico voltando nas composições, eu permito que os riffs, que foram feitos espontaneamente, sejam os que estarão no álbum, eu penso “Bem, se isso foi o que saiu agora, é isso que tem que estar no álbum.” Mesmo se eu não acho o melhor dos riffs.


As líricas de Kaatayra lêem-se como poesia. Há alguma influência literária que seja relevante e/ou inspiradora para Kaatayra?
Directamente não. Mas, talvez, indirectamente, eu tenha sido influenciado por Manoel de Barros que é um poeta que gosto muito.

Texto & entrevista: Cláudia Zafre
Entrevistado: Kaatayra