Imagem: Gio Simões Miãm é um dos projectos a solo do produtor e músico  Cássio Sales . Irreverente e prolífico, o criador brasileiro está s...

Miãm: Experimentalismo nas nuances da existência


Imagem: Gio Simões

Miãm é um dos projectos a solo do produtor e músico Cássio Sales. Irreverente e prolífico, o criador brasileiro está sempre envolvido em projectos inovadores que dinamizam a cena cultural no Brasil. 

O seu disco de estreia a assinar como Miãm tem um título já de si intrigante e ilustra plenamente as composições sonoras presentes no EP. Na Fila da Cabeça Antes de Nascer é um EP construído por camadas e que oferece um escape sonoro que se planta no imaginário do ouvinte. Ora calmo, ora turbulento, tempestuoso e inquieto, os três temas do EP compõem uma tela de sons vitais para a imprevisibilidade e tormentas da nossa actualidade. 

Misturando com dinamismo e complexidade, o noise com o indie rock, numa atmosfera lo-fi com fortes vínculos ao experimentalismo, Miãm assegura-se como uma experiência vibrante, soando como uma rebelião orquestrada, pensada e sentida no quotidiano inseguro que todos atravessamos. 

Cássio, tens tido um percurso muito prolífico tanto na criação como na produção musical. Vais lançar agora um álbum do teu projecto a solo Miãm. Que mais projectos tens criado durante este tempo?
Sempre fui inquieto no sentido criativo. Tenho sempre que estar mergulhado em algum processo criativo ou acção cultural para me sentir bem, ou vivo. Nos últimos seis anos, quando decidi abandonar de vez minha vida académica (formei-me em História pela Universidade Federal de Pernambuco), passei a dedicar-me à música de modo integral, e tentei produzir o máximo que pude durante este período. O meu principal projecto durante anos foi a banda instrumental Cosmo Grão, da qual ainda sou baterista e estive à frente, durante grande parte do tempo e na maior parte das acções, como produtor. Idealizei e produzi o RUMOR - Ciclo de Arte Sonora e Música Experimental, junto ao amigo e artista sonoro Yuri Bruscky, projecto que também tem um significado especial para mim. Aprendi e contribuí muito com a cena experimental da minha cidade e do Brasil. Paralelamente a estes trabalhos, contribuí também com outros artistas, como Paes, Ana Ghandra, Al Jamal, entre outros. E estive sempre nas entrelinhas compondo e experimentando algo que se tornaria meu, Miãm.

Sabemos que te mudaste para uma zona mais rural. Como foi essa decisão e o processo de mudança? O novo ambiente inspirou-te a criar projectos diferentes?
A minha saída da cidade mudou completamente o meu estilo de vida e minha relação com a criação. Sempre fui um indivíduo activo e em simbiose com a dinâmica da cidade, vivi e actuei num momento de grande efervescência na cena cultural de Recife. Mas senti-me encharcado pelos excessos da vida urbana. Percebo agora o quanto de desorientação e automatismo eu vivi durante esse meu intenso mergulho urbano. Não acho que foi algo necessariamente negativo... mas sinto que havia chegado ao meu limite. Pois bem, coincidentemente (ou não), a essa altura, eu acabei conhecendo a mulher que se tornaria minha esposa e mãe do meu filho, a artista visual Gio Simões, com quem passei a sonhar uma vida fora do ritmo do Recife. Decidimos mudar-nos para uma fazenda em Gravatá, início do Agreste pernambucano (nordeste do Brasil), meio que de súbito. Foi tudo muito rápido. De repente, estávamos isolados no meio à natureza, rodeados por bichos, num ambiente que exala forças cuja origem eu ainda desconheço. Criámos uma pequena sala para eu poder tocar e gravar. E esse foi um marco na minha vida e na minha carreira. A minha primeira lembrança desse período foi a de poder soar no volume que quisesse e a qualquer hora e não ter que me incomodar por estar incomodando alguém no raio de quilómetros. Essa sensação foi libertadora. Eu vi-me num espaço onde o meu processo criativo estava blindado. Era como se fosse uma câmara de auto conhecimento. Lembro também de que me senti livre por ter uma nova rotina, completamente diferente da cidade, sem ritmos sugeridos por ela, e na qual a produtividade se tornou um respiro e não um fardo físico e mental. Senti realmente que estava vivendo uma nova experiência, que poderia recomeçar, se quisesse: um marco zero.

Como foi o processo de gravação do álbum?
Assim que montei a minha pequena sala de estúdio, na minha nova casa, em meados de 2017, comecei a gravar compulsivamente. Inclusive, as primeiras gravações que fiz eram um escopo do que se tornaria, meses depois, a faixa "071727", música que abre o ep do Miãm. Eu não tinha muitos equipamentos, tinha a minha bateria, um amplificador de guitarra antigo e tosco, um microfone de karaoke, uma guitarra e um baixo emprestados, um placa de 2 canais, e um fone de ouvido comum. Eu não tinha sequer um monitor de referência para me ouvir com decência. Mas eu realmente não ligava para nada disso. Tudo era perfeito do jeito que era, e mais do que o suficiente para eu me sentir à vontade para compor e gravar. Paralelamente a "071727", eu dei início a "Devo me virar com isso". Apesar de serem bem diferentes entre si, entendi que faziam parte da mesma busca e do mesmo processo. Nesta faixa, eu havia comprado uma guitarra para mim, e é engraçado entender como nela eu consigo me sentir explorando esse instrumento. A última faixa do ep que gravei, foi a faixa 02: "Sobra". Senti que precisava criar uma faixa de ponte entre "071727" e "Devo me virar com isso". Acho que "Sobra" foi a única faixa produzida de forma consciente e objectiva. A essa altura eu já tinha um novo amplificador de guitarra, monitores, e alguns microfones que me permitiam explorar espacialidades ainda no processo de captação. Mas todo o processo foi realmente gravado na pegada lo-fi. Foi meu primeiro processo de gravação e mixagem por conta própria. Tudo no espírito DIY e one man band.


Explica-nos um pouco o conceito do nome do álbum relacionado com a própria arte do disco.
O conceito do disco passa pela ideia de nascimento e auto-conhecimento, com uma abordagem afectada pela minha infância. De alguma forma, sugere uma aleatoridade do ser, ao mesmo tempo que também se inclina para um conceito de providência em relação a si mesmo e perante a própria vida. A capa meio que representa isso, de modo bem figurativo (como queria que fosse): embora sejamos corpo e química, quis brincar com a ideia de que a cabeça nos conduz, e que ela seria a última etapa do concebimento. A ideia de cabeça, mente e consciência se misturam numa confusão bem primária, de modo bastante proposital. A ilustração foi criada por mim e pela minha esposa (cujo alter ego baptizamos de "Zinzi"). Gosto de como tudo acaba soando vago, confuso e aberto. Como tudo é, afinal de contas. A vida terrena ocidental, como vivemos, é assaltada por procedimentos burocráticos e queria também brincar com isso. Como se no momento do concebimento a gente já entrasse nesse clima.

A música pode funcionar tanto como terapia como também um escape. Quando ouvimos os 3 temas do álbum, sentimo-nos transportados como que numa viagem sónica, que tanto aparenta tranquilidade como alguma tormenta. Que ideias mais prementes te lembras de ter enquanto criavas essas composições?
As músicas do ep sugerem um percurso, um lugar e uma narrativa que surgiu espontaneamente, mas que foi assumida no momento da finalização. Sempre fui inclinado à música instrumental, e acaba sendo natural o processo de criar um percurso narrativo sónico. Especificamente para o Miãm, operei sob um estado de fluxo. Caminhei pra frente dando corpo às primeiras ideias que surgiam. Então, o que acabou me guiando nas composições foi o meu humor, algumas impressões quotidianas transpostas em formato musical, e paisagens ligadas à alguns sonhos. Existe um lugar sensível no ep permeado por intenções, acidentes, super exposição de mim mesmo e honestidade pura.

De que forma tens sentido esta mudança mundial por causa da pandemia?
Eu já estava vivendo de uma forma isolada há mais de três anos. Embora tenha sentido, obviamente, uma intensificação nesse quesito da restrição do contacto social, esse não foi o aspecto que mais me impactou. O stress político acho que foi a maior questão, para mim, dentro do meu contexto de classe e de vida. No Brasil, a pandemia tornou ainda mais explícita a bizarrice que é o (des)governo Bolsonaro. Estivemos nas mãos de um genocida, de uma equipe de governo que despreza a vida, omitia e minimizava dados reais, desrespeitava os mortos, e mais um bocado de absurdos.
Todo o plano que tracei há anos atrás me pareceu um plano de sobrevivência mais do que nunca: estava isolado, com minha família, num lugar no meio da natureza, com minha estação de criação, pronta. Meu home estúdio (o Glândula.lab) me fez manter a sanidade. Segui compondo, gravando e mixando na medida do possível, seja quando eu precisava descarregar ou esquecer um pouco a doidice que tava acontecendo no meu país e no mundo.

Que projectos estás a preparar para o próximo ano e que queiras partilhar connosco.
Para o próximo ano, tenho vários lançamentos. Em Janeiro, tem o lançamento do segundo álbum de inéditas da Cosmo grão, banda da qual sou baterista e compositor. Em seguida tem uma série de lançamentos de um novo projecto, a Miragem, concebido em parceria com o músico e designer Thiago Couceiro. Quero também lançar o primeiro álbum do Miãm, que já está bem encaminhado (tenho uma porção de músicas já gravadas). Também vou trabalhar como produtor no disco da banda de surf music instrumental Os Aquamans. Tenho outros projectos que estão tomando corpo. Creio que 2021 vai ser um ano movimentado na minha carreira.

Texto e Entrevista: Cláudia Zafre
Entrevistado: Miãm (Cássio Sales)