Uma das maiores tragédias que pode acontecer a um músico é perder a audição. E talvez um dos maiores desafios é contrapor essa circunstância ainda tão fresca para quem passa por ela. O poder de superação à tragédia é de facto o que distingue os seres que se abrem à evolução dos que se perdem nas circunstâncias do momento.
Sound of Metal habita dois lugares paradoxais, o do silêncio e o do ruído. Esses dois lugares mesclam-se nalguns momentos devido à inadaptação de um novo contexto vivido pela personagem principal, o baterista (Ruben) Riz Ahmed, de igual modo, o silêncio viaja entre dois momentos, o ruidoso e o harmonioso.
Quando existe a dicotomia ausência e presença de som, o nome que mais salta à vista dos expoentes máximos de músicos que perderam a audição é o de Ludwig Van Beethoven. O alemão, cuja história foi marcada pela perda de um sentido essencial para a criação das suas obras, a 7 de Maio de 1824 voltou aos palcos, após 12 anos, para apresentar a sua última sinfonia que tinha como factor inédito juntar a voz ao género musical. Sem grande receio, o compositor enfrentou o palco com uma paixão desenfreada, movido pela força e pela coragem, assim indicam os registos históricos. Beethoven sacudia o corpo e agitava os braços ao ritmo da música. A sua concentração era tanta que, mesmo no final da peça, continuava a gesticular com as costas viradas para a plateia até que uma das solistas aproximou-se para o fazer observar o entusiasmo caloroso da plateia elitista que ali se encontrava. Todos ficaram perplexos pelo excelente resultado, uma vez que Beethoven além de surdo, não se tinha preparado tão bem quanto devia.
Obrigado a viver isolado do mundo, devido ao mal pernicioso agravado pelos médicos, sentiu-se frustrado por não ter vivido a sua vida com o sentido que deveria existir num estado de perfeição maior e mais apurado que o permitisse criar as melhores composições; ainda assim, seguiu a sua vida permitindo que a música o salvasse e não se deixou intimidar pela surdez.
O filme realizado por Darius Marder expõe a inconsequência de muitos fãs e músicos face às frequências mais potentes com efeitos perniciosos e irreversíveis para a sensibilidade auditiva, como também demonstra como os efeitos do consumo de substâncias aditivas prejudicam a saúde auditiva.
A narrativa centra-se no casal de músicos Ruben (Riz Ahmed), o baterista de uma banda noise/metal/punk que a meio de uma digressão, e sem sintomas prévios, perde a audição, e Lou (Olivia Cooke) guitarrista e vocalista. O ex-viciado em heroína encontrou na música e ao lado da sua namorada a tábua de salvação. Impossibilitado de continuar a digressão, Ruben vai, focado na esperança e na solução do problema que o acomete, à procura de um milagre para recuperar a audição. O argumento escrito pelo realizador e o seu irmão Abrahim parte da premissa do docuficção de Derek Cainfrance, cuja história explora parte da vida de um baterista de heavy-metal que estoura os tímpanos e fica surdo e reaprende a viver no mundo do silêncio. Sound of Metal coloca o silêncio como protagonista e convida o espectador a viver a experiência da perda auditiva, como também a sentir o esforço de Ruben que, tenta a todo o custo, recuperar este sentido tão importante muitas vezes negligenciado por se o ter como dado adquirido da existência humana.
O título do filme sugere o paradoxo que o metal permite, a reverberação do alumínio que serve como ponte para surdos sentirem o ritmo e a intensidade através do toque, e o som metalizado oferecido pelos implantes cocleares. Isto poderá ser plasmado ao próprio acto de viver: reconciliado com as tempestades da vida ou insurgidos por elas sempre à procura de uma reviravolta.
Sound of Metal coloca em discussão a possibilidade da correcção de uma surdez, se devemos aceitá-la ou procurar uma solução disponível; de certa forma estas questões levam à reflexão da própria vida, será um vício estar sempre atento a tudo, escutar tudo, ou é muito necessário desligar um pouco e procurar na surdez a harmonia possível para os nossos ruídos internos? O filme não se perde nas escolhas passadas, mas concentra-se nas decisões do futuro.
Em suma, Riz Ahmed exprime de uma maneira convincente sobre a frustração que o abala e demonstra com naturalidade a força que o acompanha para recuperar o que à partida já estaria perdido. No entanto, há que entender que o que estava perdido não repara nem força o presente. Permite, sobremaneira, entender essa reestruturação, neste caso aprender uma nova língua (dar novos movimentos ao corpo e mãos), que exige uma adaptação para conhecer um mundo novo que, apesar de musical, é distante para quem usa a música como ferramenta diária. Convém referir que essa adaptação muitas vezes não se perde na própria tragédia, mas, pela força da capacidade de superação, poderá, porventura, fazer um pássaro voar mais alto mesmo que com a asa ferida. A vida tem a capacidade de surpreender com propósitos que jamais teriam passado pela mente, pois para muitos a surdez física será como uma fronteira que impossibilita a criação musical, mas, enquanto uns a fazem pelo processo directo da audição, outros não se quebram pela interrupção do meio directo e dão largas através de outros sentidos.
Texto: Priscilla Fontoura