É um pouco injusto não dar continuidade à visualização de uma série por causa de um primeiro episódio que não pareça promissor. Não sei se será bem o caso da série de produção brasileira Bom Dia, Verônica, criada por Raphael Montes, uma adaptação do livro da dupla Llana Casoy e Raphael Montes publicado sob o pseudónimo Andrea Killmore, mas, à primeira vista, a série pode não inspirar à visualização de episódios posteriores.
Tainá Muller representa a escrivã Verônica que protagoniza a trama trágico-dramática. A segurança de Verônica, durante toda a temporada, é posta em causa pela história que vai sendo descortinada ao longo da temporada que desvenda o laço enredado por toda uma trama que gira à volta da corrupção presente no corpo policial e na justiça. Bom Dia, Verônica não descura o alto nível de produção. A intencionalidade visual reside em destacar os momentos mais gráficos e marcantes ao estilo fotográfico dos filmes neo noir.
A trama acompanha a complexa jornada da escrivã que, a todo o custo, tenta encontrar um criminoso manipulador e psicopata que aprisiona a vida da sua namorada, a verdadeira vítima de violência doméstica. Como costuma ser habitual nas histórias de abusos e de violência doméstica, o abusador detenta algum poder e manobra todo o jogo de acordo com a sua influência, as suas mentiras e manipulações, cometendo Gaslighting contra a vítima culpando-a de todos os seus comportamentos, ao ponto de a adoecer e fazê-la duvidar das suas faculdades psíquicas. Próprio de um inescrupuloso egoísta que não olha a meios para atingir os seus fins. Além de procurar justiça mediante os abusos diários que Janete (Camila Morgado) sofre às mãos de Brandão (Eduardo Moscovis), agressor com tendências assassinas, Verônica é perseguida pelos seus colegas de trabalho que vivem da sede e da ambição, e tais comportamentos implicam a sabotagem do caminho da agente de investigação cujo objectivo persiste apenas na busca pela justiça e verdade.
A história leva o espectador a sentir as suas vísceras em contínuo estado de convulsão provocado pelo género suspense policial que carrega twists a todo o momento e que são difíceis de serem digeridos. Um tema que é trabalhado com delicadeza sem banalizá-lo, principalmente quando se é emergido pelo arco de Janete que é reflectido quando vai demonstrando amiúde as suas dores e opressões constantes provocadas pelo seu namorado com quem coabita, porque tais violências levam também a momentos de dúvida motivados pela constante manipulação e persuasão. As violências às quais Janete é submetida constantemente são expostas de forma gradual, revelando a linha crescente de acontecimentos que vão ficando mais intensos e mais impactantes.
O elenco vive da naturalidade muito presente nas personagens Janete, (Camila Morgado) e Brandão, (Eduardo Moscovis), o arco mais complexo de toda a trama. Camila Morgado representa bem a vulnerabilidade de alguém que tem vivido abusos psicológicos e físicos do agressor Eduardo Moscovis, que manipula constantemente a sua namorada com palavras elogiosas, tornando-a exclusiva e única no seu mundo patológico e doentio, iludindo-a a manter a relação com mentiras de uma possível mudança de comportamento, quadro que não acontece e só tende a piorar.
Verônica é empática e insurge-se durante toda a série quanto às injustiças cometidas, até no escritório de onde se esperaria a presença de valores ético-morais dos especialistas: protecção, transparência, neutralidade, segurança e rectidão. De facto, Verônica é das poucas personagens que se constrói dos valores com que cresceu, vivendo cercada qual iguana que foge para se proteger de serpentes astutas que a podem ferrar a qualquer instante. O seu chefe Wilson Carvana (Antonio Grassi) só se concentra na ansiedade da entrada para a reforma, mantendo, desta forma, o circuito corrupto que vai ficando suspenso ao ritmo do pêndulo da dúvida, não sabemos ao certo se o seu chefe protege-a ou se trabalha ocultamente no declínio da sua "afilhada". Como se não bastasse, Verônica tem, de lidar com Anita (Elisa Volpatto), sua superior e promovida a delegada, que se mostra hostil face ao envolvimento de Verônica na investigação. No seu todo Bom Dia, Verônica agarra o espectador à trama e quase que o vicia para consumir a temporada de uma só vez. Uma série que pede por uma nova temporada. O tema retratado em Bom Dia, Verônica merece ser exposto cada vez mais, a luta contra a violência doméstica cujos trâmites, apesar de partilharem linhas gerais muito clássicas, manifestam acontecimentos muito próprios e maquiavélicos, principalmente por quem pensa ter algum poder, seja na esfera política, social, e/ou económica.
Resta elogiar a banda-sonora. A temporada encerra com o clássico "Índios" de Legião Urbana, trazendo a superfície a nostalgia dos anos 80 que se sente quando se ouve a voz de Renato Russo.
Quem me dera ao menos uma vez
Ter de volta todo o ouro que entreguei a quem
Conseguiu me convencer que era prova de amizade
Se alguém levasse embora até o que eu não tinha
Quem me dera ao menos uma vez
Esquecer que acreditei que era por brincadeira
Que se cortava sempre um pano de chão
De linho nobre e pura seda
Quem me dera ao menos uma vez
Explicar o que ninguém consegue entender
Que o que aconteceu ainda está por vir
E o futuro não é mais como era antigamente
Quem me dera ao menos uma vez
Provar que quem tem mais do que precisa ter
Quase sempre se convence que não tem o bastante
Fala demais por não ter nada a dizer
Quem me dera ao menos uma vez
Que o mais simples fosse visto
Como o mais importante
Mas nos deram espelhos e vimos um mundo doente
Quem me dera ao menos uma vez
Entender como um só Deus ao mesmo tempo é três
E esse mesmo Deus foi morto por vocês
Sua maldade, então, deixaram Deus tão triste
(...)
Quem me dera ao menos uma vez
Como a mais bela tribo
Dos mais belos índios
Não ser atacado por ser inocente
Numa Relação Séria com a Netflix: Série: Bom Dia, Verônica