O mundo parece estar virado do avesso, ou já estava e os comuns mortais não fizeram caso disso. O ano que passou foi especialmente marcado, além da pandemia, pelas hostilidades políticas entre os EUA e o Irão. Há décadas que estes dois pólos da civilização contemporânea estão numa espécie de divórcio mal superado e em contínuo litígio. Será que com Biden as relações mudarão de figura entre as duas potências?
O presente artigo pretende destacar o trabalho de uma artista iraniana que desde os anos 70 exilou-se nos EUA para, à distância, fazer-se ouvir artisticamente, com o propósito de apontar para a problemática do estado em que encontrou o seu país de origem. Após ter voltado a visitar o Irão, já com um regime teocrático instalado, esse mesmo país que herda uma história rica e única, esse Irão que já foi a Pérsia dos zoroastras e o apogeu dos grandes pensadores, Shirin deparou-se com a mudança radical de um país laico que passou a teocrático, tornando-se um lugar interdito para quem nele vislumbrava a liberdade. Essa mudança fez com que muitos iranianos saíssem do país.
Shirin Neshat, Offered eyes, 1993 |
Shirin Neshat, iraniana nascida em 1957.
Conheci o trabalho de Shirin Neshat em 2013 através de um amigo, muitos dos nossos encontros e conversas eram à volta de pessoas cujo trabalho admiramos.
A iraniana nasceu em Qazvin, no Irão, e mudou-se para os EUA em 1974 para estudar na tão conhecida Berkeley, no estado da Califórnia. Após ter adquirido o grau de mestre em Artes em 1983, decidiu viajar até Nova Iorque, lugar onde assentou e trabalhou durante 10 anos na Storefront for Art and Architecture. Em 1993, ao retornar ao seu país natal, 14 anos após a Revolução Islâmica, Shirin voltou à criação, desta vez com uma índole mais politicamente activista. Esta mulher de estatura baixa mas de olhos penetrantes, suportou-se na multimédia - fotografia, vídeo e filme - para explorar e materializar os projectos que se começavam a definir pela identidade muito característica do seu input intelectual, a oposição entre oriente e ocidente, e a maneira como a mulher é caracterizada nesses dois ambientes.
Para Shirin, a arte tem que ter um cunho político, para si os artistas devem ser politizados com consciência, e no seu caso em particular, ter nascido iraniana e crescido num país que carece de direitos humanos desde a revolução islâmica, faz com que o seu trabalho gravite descontroladamente nas temáticas da tirania, ditadura, opressão e injustiça política. Contudo, Shirin não se assume activista, acredita que a sua arte, não obstante a sua natureza, é uma expressão de protesto, e um choro para a humanidade.
Shirin Neshat, Fervor Series, 2000 |
Shirin Neshat, Fervor (Couple at Intersection), 2000 |
As suas primeiras vídeo-instalações - Turbulent (1998), Rapture (1999), and Fervor (2000) examinam a questão de género e sociedade, especialmente as leis islâmicas que restringem a liberdade da mulher. O seu primeiro filme Mahdokht (2004) baseia-se no livro de Shahrnush Parsipur "Women Without Men".
Destaca-se a vídeo-instalação Turbulent (1998), cuja crítica aponta para o homem como figura central. Este homem canta para uma plateia (só de homens) que o aplaude após a sua performance "confortável para os ouvidos habituados à cultura popular", enquanto a mulher mais capaz de sair das normas, liberta-se, saindo das linhas da canção popular. Esta mulher apresenta uma estrutura livre e improvisada perante uma plateia vazia, mesmo assim é como se a sua voz conseguisse sair das paredes daquele espaço. As duas personagens do vídeo (Shoja Azari - homem, e Sussan Deyhim - mulher) criam uma metáfora musical poderosa inerente aos papéis de género, poder cultural e injustiças praticas pelo governo iraniano. Fica aqui a sugestão para investigarem mais o trabalho desta artista tão sensível.
Texto: Priscilla Fontoura