Para muitos brasileiros, Laerte Coutinho é um dos nomes que mais salta à vista quando se faz referência à história das tiras e quadradinhos de artistas brasileiros. Com grandes pitadas de humor, existencialismo, sexualidade, crítica política e social, os cartoons desta mente brilhante conseguem definir sucintamente o que muitas vezes perpassa na mente desta pessoa que "habitou o corpo de um homem" por 60 anos e que recentemente decidiu começar a sua transformação física.
Grosso modo, o documentário Laerte-se, co-realizado por Eliane Brum e Lygia Barbosa, explora a história da personagem principal que se encontra a viver uma etapa muito importante da sua vida, a indecisão de uma possível mudança de sexo que lhe provoca ansiedade e incerteza, como diz Laerte: pode, mas deve? Neste contexto em que muitas vezes se impõem os verbos, mais vale esperar e permitir que o tempo ajude na tomada de decisão.
Cartaz do documentário Laerte-se (2017) |
No seu mundo onde vivem diversas possibilidades e interrogações, permanecem também acontecimentos trágicos que a traumatizaram, no entanto Laerte não dramatiza quanto aos mesmos. Com uma grande dose de humor, este documentário é, acima de tudo, um manifesto da autenticidade e honestidade e cujas características fazem de Laerte uma pessoa singular e muito querida pela comunidade de artistas. Algumas questões que levam a pensar prendem-se com a hierarquia entre os transgéneros que fizeram alterações e os que não fizeram, os que já concretizaram todas ou algumas etapas sentem-se num patamar acima dos outros; outro desabafo de Laerte, a artista entende que, enquanto homem, viveu claramente num mundo paternalista e muito machista, mesmo no campo das artes, e que a luta pelos direitos de igualdade de género deverá ser uma acção diária pois ainda anda a passo de caracol.
O documentário inicia-se com uma troca de emails entre Laerte e uma das realizadoras nos quais é abordada a vontade de Laerte adiar o documentário que tem vindo a ser prorrogado, devido ao facto da cartoonista sentir-se insegura em expor um assunto que considera sensível; na verdade, Laerte nunca se sentiu muito confortável em expor a sua vida privada, que é muito virada para a sua rotina e família, nem gosta de ser objecto de investigação. Depois de alguma "negociação", a protagonista aceita avançar com aquele que poderá ser o maior documento sobre a sua vida, expõe a sua infância, a educação que teve dos seus pais e a ligação com os mesmos, a sua irmã, os seus filhos, a sua vida artística e privada e os conceitos e pensamentos que tem sobre o mundo e do seu Brasil que sofreu, desde a ditadura, mudanças que imprimiram polarizações no povo.
Poderíamos ser transportados para a série Transparent, criada por Joey Soloway, cujo progenitor assume também numa idade avançada a sua vontade em transformar o corpo.
Este documentário incrível plasma uma tremenda sensibilidade e leva-nos a várias reflexões sobre as nuances da existência. Esta duplicidade existe nos vários sentires da vida, a "transgeneridade" de não se saber bem em que corpo se habita, de onde se é, a que realidade se pertence, se é que se pertence a algum lugar. Essa exclusão e inadaptação levam, se calhar, a uma liberdade maior, a de mais possibilidades de existir e imaginar. Talvez, seja uma das mais fortes reflexões que Laerte-se deixa no ar. Laertem-se!
Sabe-se que, infelizmente, Laerte está hospitalizada por Covid, continua em recuperação com suspeitas de melhoras. Vamos desejar o melhor, pois precisamos de Laerte!
Texto: Priscilla Fontoura
Numa Relação Séria com a Netflix: Laerte-se (2017)