"A representação do mundo, tal como o próprio mundo, é obra dos homens; descrevem-no a partir do seu próprio ponto de vista, que confundem com a verdade absoluta."
- Simone de Beauvoir -
Palavras-chave:
Antónia Rodrigues, António Rodrigues, Aveiro, mulheres, mulheres portuguesas, emancipação, Portugal, século XVI
Introdução
Levaria uma grande investigação estabelecer um ponto de partida para perceber quando nasceu e viveu a primeira "feminista"*, tanto no mundo quanto em Portugal. Partir desse ponto seria apenas tolo, porque muitas vezes, nem mesmo recorrendo a documentos, se pode determinar a realidade ou a verdade factual - existem vários factores determinantes que muitas vezes nem obedecem aos direitos fundamentais do homem e da mulher.
*O termo feminista está entre aspas porque, neste caso, diz respeito à ocupação de um território feito com independência e liberdade que dificilmente se coaduna com a pertença a um grupo.
Hoje, dia 8 de Março de 2021, em que se celebra, mundialmente, o dia da Mulher, faz sentido mudar a história, reescrevendo-a. No livro "De Língua Afiada" de Michelle Dean são reunidos nomes de mulheres que ficaram conhecidas como "de língua muito afiada". Este livro foi feito no sentido de avivar as suas proezas e dar a conhecer o trajecto, muitas vezes, feito em contramão. Críticas, mordazes, atentas, aguerridas — Susan Sontag, Dorothy Parker, Hannah Arendt, Rebecca West, Joan Didion, Mary McCarthy e Nora Ephron são exemplos que transformaram a vida e a cultura do século XX. Estas mulheres correram riscos, defrontaram preconceitos, desafiaram o poder masculino na imprensa e na cultura dominante - partiram das suas próprias experiências para formularem pensamentos que viriam a mudar o percurso da cultura dominante. Outro exemplo que coloca em perspectiva a desconsideração que um mundo construído por e para homens tem ignorado sistematicamente metade da população é o livro "Mulheres Invisíveis" de Caroline Criado Perez - uma vez que quase toda a história humana carece de um grande défice informacional. "A começar pela teoria do homem caçador, os cronistas do passado deixaram pouco espaço para o papel da mulher na evolução da humanidade, quer a nível cultural quer biológico.", "Mulheres Invisíveis" de Caroline Criado Perez. Por contraste há nomes de mulheres que são força motriz para a resiliência de muitas, por exemplo, os judeus celebram a festa do Purim para reavivar a libertação do povo hebreu, promovida pela rainha Ester (Hadassa), aquando do exílio na Babilónia sob domínio Persa, e outros nomes são recordados como mulheres que se afirmaram em épocas de menor liberdade tais como Devorah (a juíza Débora).
Em Portugal, o trajecto ainda se faz com alguma lentidão, mas há nomes que são parte da história e da cultura, muito infelizmente nem sempre são tidos em conta, ainda. Só no final de 2019, a Reitoria do Porto, por exemplo, juntou às paredes do Salão Nobre da Reitoria o retrato de Leopoldina Ferreira Paulo - (1908-1996), antiga professora da Faculdade de Ciências e a primeira mulher a doutorar-se pela U.Porto (a 23 de novembro de 1944). Pelas mãos do pintor Mário Bismarck, passa agora a figurar ao lado de outros 49 professores e figuras históricas da Universidade o Salão Nobre da Reitoria.
A história das universidades precisa ser reescrita, uma vez que pouco ou nada integra nomes de mulheres que também fizeram parte da estrutura - as mulheres até então seriam apenas figuras alegóricas para exprimirem outros sentidos. Este problema transversal acontece em todas as universidades, ao visitarmos os Salões Nobres das Universidades quase nunca vemos retratos de mulheres; pelo contrário, vemos paredes com quadros dos seus fundadores, reitores, professores e outras figuras do género masculino. Uma vez que estes lugares também funcionam como lugares de memória, convém levantar a questão; que lugar ocuparam as mulheres na academia? Somos feitos da memória passada e da futura também, por isso convém combater esta amnésia que colocou a mulher sempre nos patamares mais desnivelados da sociedade.
Antónia Rodrigues: aventureira e heroína, oriunda da então vila de Aveiro
Hoje fala-se de uma mulher que teve que disfarçar o rosto e o corpo para combater na guerra, obedecendo assim à sua própria vontade, quebrando as regras da época e ultrapassando a questão de género. Antónia Rodrigues, no final do século XVI, disfarçou-se de António para poder ser grumete de caravela e bravo oficial-cavaleiro em Mazagão, uma praça portuguesa no Norte de África, hoje cidade marroquina de El Jadida. Em menos de 20 anos dividiu-se entre homem e mulher e tornou-se o que os dois géneros poderiam aspirar: grumete, espingardeiro e herói honrado.
Revista Visão |
Oriunda de Aveiro, a considerada Joana d'Arc do lugar das salinas e dos ovos moles não foi figura consensual na passagem das décadas; porém, a descrença foi deixando de fazer sentido graças aos artistas e historiadores que fizeram frente aos cépticos, praticando trabalhos que deitassem por terra a negligência muitas vezes perpetrada até pelos historiadores mais displicentes. Marcos Muge surge em 2001 com um painel de azulejos em homenagem a uma “mulher à frente do seu tempo”. O artista estudou a indumentária militar da época (fins do século XVI) e a Descrição do Reino de Portugal, texto publicado em 1610 por Duarte Nunes de Leão, contemporâneo de Antónia Rodrigues,
que relata ao pormenor a vida
e os feitos da heroína aveirense, confirmando o que está resumido na placa toponímica – hoje muito degradada. O autor do painel de azulejos só por duas vezes teve oportunidade de o exibir em Aveiro, a última das quais em 2010. “Como Antónia Rodrigues veio do povo, não é lembrada, na cidade, com uma obra plástica digna. Era uma mulher do povo e, por isso, não faz parte das narrações da História”, diz Mário Silva Carvalho, autor do romance
A Amazona Portuguesa. - na Visão.
No início do século XX, a Rua de São Roque, centro dos restaurantes e da la movida da agora cidade, passou a chamar-se Rua Antónia Rodrigues - local onde está a placa: “A célebre Antónia de Aveiro que, fugindo de casa aos 15 anos, foi, vestida de homem, combater gloriosamente os Mouros em Mazagão, onde obrou prodígios de valor, conservando durante anos, com a sua virtude, o segredo do seu sexo.”. - em Ruas com História.
Origens de Antónia Rodrigues
Talvez a primeira mulher no mundo “Marinheira”, fazendo-se passar por homem, andou embarcada, tendo conseguido enganar toda a tripulação. Nascida a 31 de Março de 1580, Antónia Rodrigues, também conhecida por Antónia de Aveiro, filha de Simão Rodrigues (pescador), e de Leonor Dias, nasceu no seio de uma família com parcos recursos familiares, que lhe dava a conhecer as histórias aventureiras de tantos navegadores aveirenses. Antónia foi, muito jovem, para a casa da sua irmã, em Lisboa, a pedido dos seus pais.
"Antónia Rodrigues era 'arrapazada', gostava de brincar na areia com espadas, atirar pedras, mergulhar na água da ria. Mesmo as tarefas domésticas nas quais a mãe insistia que ela ajudasse, não lhe diziam muito. Como desde pequena acompanhava o pai na pesca da Ria de Aveiro, dominava as artes da marinhagem. Decide, por isso, assumir o papel de grumete e utilizar os seus conhecimentos para disfarçar a sua condição de menina.", tal como descreve o romancista Mário Silva Carvalho no seu livro A Amazona Portuguesa.
Contexto de vida
Vestido de António, não estaria habituado à vida dura do mar, cujo embate das ondas por força da brisa magoava o seu rosto delicado. A caravela não era cómoda para esta mulher disfarçada de homem que vivia preocupada caso descobrissem a verdade. O seu cabelo teria sido cortado. Fugiu da sua irmã, a quem odiava, por falta de empatia e afecto, gerando-se nela um espírito revoltado com sede de liberdade apaixonado por uma vida de aventura, assim que ouvia os relatos (fantasiosos ou factuais) dos Capitães de Navios que aportavam à capital.
Se a tripulação descobrisse a verdade, estaria metida num grande sarilho e talvez teria sido jogada ao mar. Mas, com apenas 12 anos, as suas formas femininas ainda não tinham desabrochado. Motivada pelas brincadeiras geradas no barco do pai, cedo começou a realizar todas as tarefas de grumete que o mestre da caravela lhe atribuía.
Já em Mazagão, no Norte de África, alistou-se no exército português "o arguto soldado" e aprendeu a manejar a espada de forma exímia - sendo que a sua coragem e determinação deram-lhe honras como oficial-cavaleiro. A experiência garantiu-lhe feitos extraordinários que alcançou como António, viveu um período brilhante de actuações militares quando eram frequentes os ataques nessas praças portuguesas no Norte de África. António foi promovido pelo ataque que comandou contra os muçulmanos, vencendo-os, depois de ter descoberto que estes preparavam uma ofensiva nocturna.
Tais práticas conferiram-lhe a fama de "o terror dos mouros", chamando por sua vez a atenção das donzelas fidalgas. Como o coração tem razões que a própria razão desconhece, Antónia apaixonou-se por um companheiro de armas. Deixou, por isso, que o seu coração determinasse o destino não conseguindo mais viver sob o disfarce, cinco anos depois volta a partir para Lisboa, casada com o seu ex-colega de armas.
Sem medo do porvir, Antónia tal como enfrentou os mouros, decidira contar a sua mentira ao Capitão-Mor que, certamente surpreendido, não teve alternativa, não obstante as glórias militares que justamente merecia, a Heroína de Mazagão trocou as fardas pela roupa civil, com pena de seus companheiros e muitos amigos. A sua determinação fez com que El-Rei a recebesse com tantas honrarias, atribuindo-lhe uma pensão vitalícia.
Considerações Finais
Antónia estaria convencida de que era uma mulher diferente da sua época, corajosa sem se coibir de habitar e trabalhar nos mesmos lugares dos homens. Os seus sonhos não deixaram de se cumprir, desbravou mares e dominou a espada.
No dia em que cortou o cabelo e vestiu as roupas de Grumete compradas na Feira da Ladra, não sonhava que viria a ser a única cavaleira condecorada do exército português por muitos e muitos séculos. Se Antónia Rodrigues foi a Joana d'Arc portuguesa, se é mito ou verdade, pouco importa. Ainda que os acontecimentos reportem a um período muito recuado, em que a documentação é escassa, é relevante afirmar que devemos e temos que respeitar a História. Nesse sentido, a História merece ser reescrita, no sentido de descobrir e tornar relevante o que tem sido negligenciado num mundo feito por e para homens. Para as mulheres perseverantes, continuem a dar luta.
Sugestão de livros:
- De Língua Afiada de Michelle Dean
- Mulheres Invisíveis de Caroline Criado Perez
Texto: Priscilla Fontoura
Fontes: