Palavras-chave: música, mulheres, violência Introdução Sabemos bem que as mulheres continuam a ser vítimas de salários mais baixos que os ho...

Mulheres da música que sobreviveram à violência doméstica e ao falso encanto da serpente

Palavras-chave: música, mulheres, violência


Introdução

Sabemos bem que as mulheres continuam a ser vítimas de salários mais baixos que os homens, os dados assim o indicam, como os mesmos também provam que as mulheres ainda lutam por postos superiores e pela igualdade de género. Um dos exemplos máximos dos cursos que tem prolongado uma cultura masculina é a Engenharia — para se cursar nas especialidades mais práticas e técnicas, as mulheres vêem a dificuldade à porta motivada pelo arrastamento da evolução da dialética-histórica construída sobre a raiz masculina. Segundo o artigo científico Estudantes de Engenharia: entre o empoderamento e o binarismo de género: "No que concerne às engenharias, a segregação espacial e diferenças salariais na sociedade são visíveis para as estudantes da área. O caminho advindo do feminismo, na busca das mulheres por reconhecimento e autonomia, parece ainda ganhar nuances frágeis, enquanto possibilidade vislumbrada por essas estudantes."; para colmatar o desequilíbrio projectos como Engenheiras por um dia têm sido desenvolvidos para combater esta predominância.

Sabe-se que, na sua maioria, são as mulheres as principais vítimas de violência doméstica, quando são tidas como agressoras, os tribunais tendem a vitimizar os homens, porque parece que a permissividade suportada numa espécie de "selecção natural" continua a vigorar, tal como a sociedade ocidental tem mantido uma conduta paternalista e tendenciosa. Bem como as associações que tratam os assuntos relativos à violência doméstica preocupam-se apenas por elevar o índice de casos sem perscrutar nem ouvir as versões contraditórias, despacham dossiers carentes de investigação sem ser dada a devida análise, não há acompanhamento nem avaliação; pode acontecer que a alegada vítima declare falsas verdades que não são averiguadas, dessa feita vários processos são facilmente criados premeditadamente com intenções maquiavélicas e vingativas, pesando, posteriormente, na avaliação supérflua feita pelos magistrados.


Do mesmo modo, quem julga casos de violência doméstica tende a preferir um homem violento a uma mulher, na maior parte dos casos quando esta tenta ecoar o seu auto-respeito, depois de ter tolerado tanta agressão e mentiras da parte do seu par. Dá-se como exemplo, entre tantos outros, uma das possíveis leituras patente no subtexto do livro The Knockout Queen: "é natural para um homem simplesmente 'perder a paciência', mas se uma mulher fizer a mesma coisa, então é um sinal de que algo está mais errado, psicológica ou quase metafisicamente. (...) 'Bunny', eu disse, 'os juízes não gostam de mulheres violentas. Eu não sei como dizer isto. A minha mãe cortou o meu pai superficialmente com uma faca de frutas e ficou três anos na prisão. Se um homem tivesse feito isso, se fosse apenas uma disputa regular de violência doméstica e a mulher a ser esfaqueada, ele provavelmente nem teria visto o interior de uma cela de prisão.'." 

Este é somente um ínfimo exemplo de como a sociedade paternalista continua a tratar a mulher que, paulatinamente, tenta fazer-se ouvir em canções, filmes, livros, murais, como um que li algures: "não somos histéricas, somos HISTÓRICAS". Muitas mulheres vítimas de grandes abusos, mentiras compulsivas, agressões físicas e manipulação psicológica e que se mantêm ocultas, uma vez que o abusador conhece os trâmites da "lei", vêem-se desarmadas por não terem crescido em solo podre, doente e sem nutrientes saudáveis — simplesmente não foram criadas com anti-corpos para a maldade e foram durante anos enredadas nas teias de agressores mascarados de falsos amantes. Afinal de contas quantas mulheres estão presas, injustamente, por se terem defendido dos agressores que por anos as manipularam e tentaram sujeitá-las a actos tóxicos, vícios e condutas impróprias?!? Quantos usaram o empoderamento dos seus pares para singrarem na vida? Quantas foram vítimas de queixas-crime de predadores amorais que já controlaram os passos das mulheres, acederam à sua informação pessoal e as agrediram?

São incontáveis as vezes que se ouviram louvores disfarçados de machismo: para mulher toca bem, ou elogios que teçam destaque aos atributos físicos, apenas e meramente.

Elza Soares © Ana Branco

Elza Soares, a amazona resiliente
Elza Soares viveu tempos de pura violência doméstica, essa mulher para quem olhamos hoje e que nos confunde com uma atitude forte, jamais poderia levar-nos a uma representação de uma vítima da violência porque para os olhos de muitos, uma mulher empoderada jamais pode ser vítima do que quer que seja. Verdade seja dita, talvez essas sejam as que toleram mais o que qualquer outra pessoa poderia aguentar; viveu sob o mesmo tecto com um homem alcoólatra que a manipulava de forma abusiva. Os abusadores dizem que o álcool no limite só os afecta e que jamais afecta o seu cônjuge - uma leitura meramente egocêntrica, uma vez que o egocentrismo acarreta uma longa lista de defeitos de carácter que tornam a pessoa doente: autopiedade, satisfação de interesses egoístas, glorificação de si mesmo, comodismo, etc.

A cantora do milénio, e dona de uma das vozes mais marcantes da música brasileira, sofreu em determinadas fases da sua vida tragédias sem precedentes. Com o lançamento de A Mulher do Fim do Mundo, Elza renasce qual fénix, lançado em 2015 o disco mistura samba, rap e música electrónica; debruça-se sobre temáticas feministas, violência doméstica e negritude - assuntos que fazem parte da sua experiência e que só ela pode entender como acontecimento máximo carregado com tudo o que o contempla. A segurança e determinação de Elza Soares não são apenas traços de personalidade, mas atributos que foi conquistando pelo o que a vida lhe foi ensinando. Segundo as biografias espalhadas sobre a sua vida e os relatos contados, "Elza casou-se obrigada pelo pai, aos 13 anos de idade. Pobre, perdeu dois filhos; um deles recém-nascido, o outro para a fome. Sofreu com violência doméstica; enviuvou aos 21 anos. Trabalhou como empregada doméstica, como lavadeira. Viveu um grande - e conturbado - amor com o jogador de futebol Mané Garrincha, que ainda era casado com outra mulher quando os dois se tornaram amantes. Teve um filho com ele, morto aos 9 anos num acidente de carro. Publicou a autobiografia Minha Vida Com Mané, editada em 1969 e hoje raríssima, fora de catálogo há mais de 40 anos.", poderá ser encontrada na seguinte fonte. Ouçamos "Cadê meu celular? Eu vou ligar pro 180".


Victor Hugo disse que quem poupa o lobo sacrifica a ovelha, e costuma ser assim numa sociedade paternalista em que para julgar ou culpar um homem é preciso ter mais factores evidenciais do que para acusar as mulheres, principalmente quando a mesma não se vitimiza, e que graças à sua resiliência muito lutou para afirmar-se e responder pelos seus actos, fazendo valer-se com integridade e verdade dos seus direitos e valores. 

Nina Simone © Getty Images

O que aconteceu a Nina Simone?
Activista, corajosa, muito talentosa, sincera, frágil e forte ao mesmo tempo, raivosa e angustiada foi Nina Simone que viveu, a tempo real, a segregação racial norte-americana. Quem acompanha os discos, tendo em conta as fases de vida dos músicos, sabe e entende bem que nenhuma vida é fácil, especialmente a dos que carregam uma força emocional e espiritual que se faz ouvir através do ruído presente nas canções. O documentário What Happened, Miss Simone?, realizado por Liz Garbus, contém gravações inéditas, imagens raras de arquivo e temas populares icónicos que ajudam a contar a história da lendária cantora, pianista e activista Nina Simone que, perante a sua plateia no concerto no festival de Jazz de Montreaux, Suíça, declara: "Acho que a única maneira de contar quem eu sou hoje em dia, é cantar uma canção." I Put a Spell on You detalha os abusos que sofreu de Andrew Stroud. 

Al Shackman conta, fazendo ponte com a voice-over de Nina, que uma noite, depois de Andrew Stroud ver Nina a colocar um bilhete de um fã seu no bolso do casaco, Stroud bateu-lhe em todo o caminho até chegar a casa, escada acima, no elevador, no seu quarto, antes de colocar uma arma na sua cabeça e violá-la. Quando Simone separou-se de Stroud e mudou-se para a Libéria, acabou por abandonar a sua filha Kelly por anos em Mount Vernon sem dizer onde ia estar a viver. Quando adolescente, Kelly começou a estar com a sua mãe Nina na África Ocidental e o relacionamento entre as duas tornou-se violento. Kelly afirma “Nina deixou de ser o meu conforto para se tornar o monstro da minha vida, foi vítima e agora transferia os seus abusos contra mim, batendo-me.". Nina foi vítima de abusos e não teve quem a curasse dos traumas perpetrados pelo agressor com quem se casou.

 

Tina Turner © Divulgação

Tina Turner, o palco a reconcilia com o passado
Muitas vezes pensamos que certas vidas só cabem nas biografias populares ou nas histórias de vida de celebridades. Mas nem sempre é assim. Mulheres anónimas sofrem abusos e muitas vezes não têm quem possam confiar os processos devido a uma autêntica ineficácia profissional de quem se julga douto da lei e que, de facto, está-se a marimbar para as vidas sujeitas a abuso de poder. Nascida Anna Mae Bullock em 1939, a mulher que se tornaria conhecida como Tina Turner tinha uma vida familiar difícil. Os seus pais tinham necessidades económicas e separaram-se deixando Tina e a sua irmã aos cuidados da avó. Quando adolescente, Tina mergulhou na cena musical R&B de St. Louis. Tina Turner, cujas célebres performances em palco recordavam umas pernas tonificadas que se tornaram marca da vocalista e asseguradas em 2,87 milhões de euros - das mais caras em toda a História, escreve uma história que viveu vários abusos físicos, psicológicos, emocionais e espirituais.

Embora tenha havido uma certa quantidade de sucesso, músicos e a própria Tina lamentaram que a banda não foi capaz de alcançar marcos ainda maiores devido ao comportamento violento e auto-sabotador de Ike, marido de Tina obcecado pela mesma. Ike, que segundo consta, sobreviveu a traumas profundos durante a sua infância, Tina passou anos a ser vítima de abusos físicos e emocionais regulares do seu marido, forçando-a às vezes a cantar e dançar após ter sido espancada pelo mesmo. A situação doméstica era implacavelmente permeada de medo e dor, enquanto Ike abusava de drogas e desfilava para as suas amantes. Tina contou nas suas memórias explanadas em My Love Story (2018), que os encontros sexuais com o seu marido eram "uma expressão de hostilidade - uma espécie de violação - especialmente quando começava ou terminava com uma surra". Tina tentou pôr termo à vida em 1968. Depois de se recuperar, tornou-se cada vez mais consciente da sua força, com vista à sobrevivência escapando assim ao casamento que era mais uma vida de inferno. Tina, you are simple the best!

 

Fionna Apple

Fiona Apple, Ladies, Ladies, Ladies
Outras relações que são mediatizadas pelas inescrupulosas línguas "jornalísticas" que mantêm, por vezes, laços estreitos com as ramificações do poder e influenciam o presente e o futuro do poder constitucional. Já Pasolini apresentou o “anti-inferno” com Salò: 120 dias de Sodoma – em que um grupo de nazi-fascistas, para cometer as mais diversas atrocidades, forma uma companhia composta pelos 4 poderes: o clero, o magistrado, o presidente de um banco (que representa o poder económico) e um duque (que representa a nobreza). Juntando-se a estes temos os poderosos das fake news - os mentirosos profissionais que levam o povo a acreditar nos disparates mais desinformativos, cujo objectivo tem como real intenção a manipulação. Nem todas as relações tempestuosas podem ser apontadas para um caso de violência doméstica, no entanto, o poder já referido tornou o assunto tão mediático que tudo passou a ser encarado como tal.

Numa entrevista à The New Yorker, Fiona Apple refere a relação tumultuosa que teve com Anderson, o mesmo era friamente crítico, desdenhoso durante o relacionamento com Apple. Apple e Anderson começaram a namorar em 1997, trabalharam juntos, consumiam drogas como cocaína e ecstasy e Apple bebia muito. Ao longo do relacionamento de três anos, Apple lembra-se de Anderson que usava palavras duras, humilhando-a dizendo que era uma péssima parceira, fazendo-a parecer instável e, uma vez, empurrou-a para fora de um carro. Na entrevista Apple ainda se lembra que Anderson atirou uma cadeira pela sala depois do Oscar de 1998, quando Boogie Nights perdeu o melhor roteiro original. “Isto não é um bom relacionamento”, Apple lembra-se de ter pensado na época. Namoraram por mais dois anos tumultuosos, durante os quais Apple esclarece que Anderson nunca a agrediu fisicamente. Muitos, para simplificar e não carregarem qualquer responsabilidade, passam uma espécie de diagnóstico de loucura para não assumirem com consciência e justiça o mal que causaram ao outro par.


Conclusão:
As mulheres são apanhadas de assalto no decorrer da relação e levam com os malefícios da História que não as protegeu nem as dignificou enquanto seres independentes, criativos e individuais. Muitas vezes numa relação "amorosa" não é detectável o engodo, já num estado avançado, cheio de abuso e manipulação, mais difícil fica sair das artimanhas montadas pelo abusador. A violência pode ser silenciosa,  e todas as formas de abuso são gratificantes para o abusador, porque constituem formas de controlar os acontecimentos. Essa teia preparada de forma muitas vezes quase passiva e gradual, deixa a vítima sem saída porque muitas vezes a mesma encontra-se numa mascarada verdade cheia de mentiras, manipulações e revitimizações do abusador para a manter na mão. O tratamento do silêncio é também um tratamento recorrente que se serve de castigos para a vítima pensar que errou, tentando deitar por terra os seus valores que outrora considerou preponderantes para a sua saúde mental. 

Normalmente, os abusadores crescem num seio tóxico, em que os vícios de álcool e drogas são manifestamente o prato do dia, nesse mesmo seio a democracia é inexistente e o direito à palavra da parte da mulher é muita vezes castrado, o "alfa" quer ser dominante e trata a sua cônjuge como sua escrava doméstica ou propriedade sua, não permitindo que a mesma viva uma liberdade relacional com amigos e família. O abusador quer que a vítima deixe de pensar por si própria pois é mais vantajoso que ela passe a sentir e a pensar como ele lhe diz, dessa maneira as suas necessidades são garantidas. 

Todas as mulheres podem ser vítimas, falar sobre o tema pode alertá-las para os mecanismos perversos por trás da violência doméstica. Normalmente, essas relações convivem com um grande grau de machismo e normalmente os agressores viveram dentro de um padrão muito descompensado. Na maior parte das relações abusivas há um membro do casal que só está preocupado com as suas necessidades afectivas, quando assim o é, saibam ler os comportamentos tóxicos e façam a ruptura, pois um doente não tratado é um perigo maquiavélico e cujo intento existe apenas para destruir para que o mesmo possa dominar, e isso só acontece quando vai ludibriando a vítima com uma maçã bem vermelha para a sujeitar ao seu falso e deturpado encanto. 

Texto: SP
Fontes: