Clarice Lispector “Quem sabe escrevo por não saber pintar?”  - Clarice Lispector - Auto-denominava-se detentora de uma timidez ousada assim ...

Wunderkammer: Clarice Lispector em dois mundos paralelos, no da escrita e no da pintura

Clarice Lispector

“Quem sabe escrevo por não saber pintar?” 
- Clarice Lispector -


Auto-denominava-se detentora de uma timidez ousada assim que quis enfrentar um mundo desconhecido para publicar os seus contos. Vemos Clarice Lispector no Documentário Clarice Lispector | 100 anos a comentar sobre quando se dirigiu a Raimundo Magalhães para publicar um dos seus contos, e este pedindo à pequena e ousada Clarice para o ler, perguntou-lhe, assim que o ouviu, de quem a jovem tinha copiado tal proeza, e espantado com tal talento, quando a mesma negou "que de ninguém", Raimundo publicou-o. Em 2020, Clarice completou um século de existência, e hoje os seus livros continuam a ser vendidos. 


"Perto do Coração Selvagem", o seu livro de estreia lançado em 1943, conta a história de Joana que fica retida no centro de um turbilhão de traições e emoções, na altura foi considerada a novela mais interessante escrita por uma mulher. Clarice andou entre vários géneros durante a sua carreira, "A Hora da Estrela", o seu último livro, aborda a história de Macabéa, uma nordestina que na sua juventude, vai morar para a cidade grande: o Rio de Janeiro com a sua tia religiosa, supersticiosa e cheia de tabus, a trama reflecte o retrato do Brasil daquela época; um retrato observador e meticuloso escrito por uma mulher que não era natural daquele país.


Natural da Ucrânia, República Popular da Ucrânia na altura, foi muito novinha para o Brasil devido à perseguição do regime nazi a tantos europeus. No Rio de Janeiro começou a fazer-se notar assim que começou a publicar os seus livros,  as palavras encaixadas entre frases e intervalos de tempo agarravam a quem os lia. Clarice não era muito adepta de entrevistas e apenas lhe interessava o que tanto queria e tinha para dizer. Quando descobriu que a literatura seria o campo magnético para onde seriam atraídas as suas produções literárias, lançou livros que levaram o seu nome além fronteiras. Em vários livros destaca as expectativas que as pessoas têm em relação à vida e a dureza que a mesma traz.


Clarice no documentário já referido, faz uma auto-análise dizendo que na adolescência era caótica, intensa, inteiramente fora da realidade e da vida. Antes de publicar os seus primeiros livros, já escrevia contos, artigos para revistas e jornais, foi experimentando entre o erro e o treino, as texturas e os significados dúbios e certeiros das palavras, nesse universo onde se sentia segura e protegida. 


© Clarice Lispector, a obra foi adquirida pela escritora Nélida Piñon


Interior de Gruta, Óleo sobre madeira. 1960. © Clarice Lispector 

Mas Clarice não compenetrou apenas o seu talento na arte da escrita, deu também luz e cor a pinturas. O designer Victor Burton, um dos mais reconhecidos da contemporaneidade brasileira, teve como ideia, assim que o convidaram para ser parte da equipa para o relançamento da obra da escritora, adaptar as várias pinturas da escritora para capas dos livros relançados, tanto para as capas como para os miolos cunhados pelo tom intimista e introspectivo, cujas personagens expunham as suas ideias por meio de um fluxo de consciência, através de uma linguagem não linear pontuada por uma quebra de enredos, numa abordagem livre e desornada. 


Pássaro da Liberdade. 1975. © Clarice Lispector
Cérebro Adormecido. 1975. © Clarice Lispector

Luta Sangrenta pela Paz. 1975. © Clarice Lispector

Caos Metamorfose sem Sentido. 1975. © Clarice Lispector

Estátua da escritora na Praça Maciel Pinheiro, no bairro de Boa Vista, área central de Recife, Pernambuco.

Clarice considerava a pintura como uma forma de relaxamento, essencial para auxiliá-la na escrita. Pintou 22 quadros: 19 sobre madeira e três sobre tela. 16 obras de Clarice foram expostas no Instituto Moreira Salles, na cidade do corcovado. Observando-se as pinturas de Clarice, consegue-se destacar uma estética do feio, onde salta à vista o aspecto rudimentar e o desinteresse pelas formas perfeitas de um universo hostil e impactante, longe do mundo real, cujas imagens parecem inacabadas e reguladas pela técnica que recorreu a vários tipos de materiais: cola e vela derretida, canetas esferográfica e hidrográfica, óleo e, até, verniz de unha. Existe pelo menos um momento em que a escrita e a pintura de Clarice convergem, como um jogo mental de transferências e projecções onde são expostos os seus mais íntimos e pessoais pensamentos. Não se trata de ser melhor numa arte do que noutra, mas o que cada um sente quando confrontado por elas.

Texto: Priscilla Fontoura