"A mediocridade global do pós-modernismo, com a utilização industrial e fragmentária das emoções, sentimentos, crenças ou conhecimento,...

Ópio para o povo - O som do eterno por Rudesindo Soutelo

"A mediocridade global do pós-modernismo, com a utilização industrial e fragmentária das emoções, sentimentos, crenças ou conhecimento, reduzida ao ato do consumo, sem qualquer perspetiva de passado nem futuro, transforma a visão mágica do mundo num simples ópio para o povo."

Angel Heralds the Dawn, © John Alan Warford


Ópio para o povo - O som do eterno
Por Rudesindo Soutelo(*)

Acaso a música religiosa de Mozart não é, como a religião em si, ópio para o povo? Quem faz esta pergunta é um teólogo católico, Professor Emérito na Universidade alemã de Tubinga, Hans Küng, num ensaio intitulado ‘Mozart: Spuren der Transzendenz’ (Mozart: Vestígios da Transcendência) que escreveu com motivo do bicentenário do compositor salzburguês e que está incluído no seu livro Música e Religião[1].

“A música e a religião”, diz Hans Küng, “são fenómenos universais da humanidade, no sentido tanto diacrónico – ao longo da história – como sincrónico – através dos continentes”. E, como tais fenómenos universais, são altamente complexos e com patrões humanos ambivalentes. A religião pode difundir humanidade mas também justificar a inumanidade, assim como a música é utilizada tanto para o bem como para o mal. Hans Küng refere como a música deu expressão a sentimentos nobilíssimos, a belezas indescritíveis e de felicidade sublime. Mas com a música também se encaminharam os passos de milhões de pessoas face à guerra e à morte. Não admira, pois, que desde sempre os humanos diferenciem entre músicas que falam com a voz dos deuses e aquelas outras que falam com a dos demónios; ou também, que algumas pessoas religiosas a considerem uma forma de puríssima espiritualidade enquanto outras, pela mesma razão, tenham a música como a mais detestável forma de sensualidade[2].

Essa ambivalência referida por Küng remete-nos para a parte mais profunda da psique humana, a que rege as emoções primárias do ‘eros’ e o ‘thanatos’ (o amor e o horror).

Refletindo sobre as emoções no processo criativo, num artigo publicado em 2007, sustento que os compositores somos ‘Manipuladores de emoções’ e concluo que “A componente emocional não deve ser um elemento construtivo, mas antes o resultado duma construção tecnicamente perfeita onde a imprevisível luta intrínseca da obra desencadeie vida emocional própria e diferenciada em cada um dos indivíduos que se relacionam com ela”. Essa ‘imprevisível luta intrínseca’ é o que diferencia a obra de arte da obra medíocre. No citado artigo defino a originalidade como “o fator de imprevisibilidade ou grau de acontecimentos inesperados que estão presentes na lógica da comunicação, o qual desencadeia as emoções profundas”. Também defino o conceito de mediocridade como “a reiteração banal do discurso previsível na procura de suscitar a mesma sensação quando se dá o mesmo estímulo”. A originalidade é criativa e diversa. A mediocridade é global, alienadora e destrutiva[3].

Martin Heideger, em A origem da obra de arte, afirma: “O artista é a origem da obra. A obra é a origem do artista. Nenhum é sem o outro. E, todavia, nenhum dos dois se sustenta isoladamente”[4].

“Será o amor uma arte?” – pergunta o psicanalista Erich Fromm no início de A arte de amar – “Se o for, então exige conhecimento e esforço. Ou será o amor uma sensação agradável, que por acaso experimentamos, algo que ‘nos acontece’ se tivermos sorte?”[5]. 

Nós, os compositores, fazemos a mesma pergunta com as emoções e quando assumimos a primeira premissa o resultado pode ser uma obra de arte, embora não há dúvida de que a maioria das pessoas acredita na segunda, uma questão de sorte. A teoria dos afetos musicais, ou da caracterização psicológica das personagens, inicia-se no Renascimento e acompanha toda a música erudita da era moderna. Esta expressão ‘onírica’ da música não acontece por acaso e aí reside o que Hans Küng descreve como o “imenso poder transformador da música, apto para sublimar e metamorfosear quase qualquer experiência”[6].

Duas obras minhas com títulos que envolvem emoções do mundo onírico vêm esclarecer isto. Feitiço é um trio para violino, violeta e violoncelo construído sobre quatro notas, as quatro notas mais emblemáticas da história da música ocidental, as notas que conformam o nome de BACH (Si bemol, Lá, Dó, Si). Essas quatro notas elaboradas rigorosamente numa textura contrapontística de tensão crescente suscitam uma emoção que nos abre a uma perceção diferente. O feitiço pode ser Bach, mas o ouvinte não tem porque saber qual o material sonoro utilizado. O feitiço é um estado emocional abstrato que cada ouvinte vivencia de um modo diferenciado. A segunda obra, para violeta, violoncelo e contrabaixo, intitula-se Arela, que no português da Galiza quer dizer ‘anseio’. Está organizada a partir de uma escala para-tonal – além, acima ou à volta da tonalidade – que gera uma inquietação, ânsia ou anelo que só se acalma no final em forma de Coral. Aí é que podemos aplicar as palavras de Hans Küng, “onde a música combina a sua energia com a da religião num mesmo sentido e face à uma mesma meta”[7].

Estas obras foram escritas nos anos 70 mas só em 2009 é que puderam ser estreadas[8]. Não foi a criatividade emocional o que as manteve vivas, antes bem o conceito de transcendência, o rigor construtivo e a “imprevisível luta intrínseca” como treino do ‘formal’. Convém esclarecer que foram das primeiras obras que escrevi após o período pós-modernista militante à frente do grupo Letrinae Musica e o movimento Quadrado de Pi – a expressão galega de Fluxus. Na altura, a trans-modernidade[9] ainda não fora batizada e a maior parte daquelas obras teve de acomodar-se nas gavetas.

A mediocridade global do pós-modernismo, com a utilização industrial e fragmentária das emoções, sentimentos, crenças ou conhecimento, reduzida ao ato do consumo, sem qualquer perspetiva de passado nem futuro, transforma a visão mágica do mundo –que Jean-Paul Sartre desenvolve no Esboço para uma teoria das emoções[10] – num simples ópio para o povo.

Mozart, como Bach, Beethoven, Schoenberg, Stockhausen ou Boulez, transcenderam as categorias musicais e inocularam um hálito divino na música. Hans Küng conclui que “em determinados momentos é dado ao ser humano abrir-se, e abrir-se tanto que chegue a perceber no som infinitamente belo o som do eterno”[11].

(*) da Academia Galega da Língua Portuguesa.
Compositor e Mestre em Educação Artística e em Ensino de Música

© 2014 by Rudesindo Soutelo
(Vila Praia de Âncora: 25-2-2014)

Publicado em As Artes entre as Letras (Porto)
Nº 123 p. 17, 28-V-2014.
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[1] Küng, H. (2008). Música y Religión. Mozart - Wagner - Bruckner. (J. D. Robles, Trad.) Madrid: Editorial Trotta, p. 22.
[2] Ibid., 15.
[3] Soutelo, R. (14 de Junho de 2007). Manipuladores de Emoções. A nossa terra, nº 1274 .
[3] Heideger, M. (2008). A origem da obra de arte (2ª ed.). (M. C. Costa, Trad.) Lisboa: Edições 70, p.11.
[4] Fromm, E. (2007). A arte de amar (2ª ed.). (J. M. Neves, Trad.) Cascais: Pergaminho, p.11.
[5] Küng, H. op. cit., p. 19.
[6] Ibid.
[7] Estreadas o dia 24 de Abril de 2009 no Centro Galego da Arte Contemporânea (CGAC) de Santiago de Compostela pelo Grupo Dhamar.
[8] Rodríguez Magda, R. M. (2004). Transmodernidad. Rubí (Barcelona): Anthropos.
[9] Sartre, J.-P. (2006). Esboço para uma teoria das emoções. Porto Alegre, Brasil: L&PM.
[10] Küng, H. op. cit., p. 19.