Pode-se afirmar que um realizador é como um maestro que tenta harmonizar os instrumentos de determinada peça musical para que a obra nasça e viva por si. Esse andamento é tocado em O que Arde (Viendra le Feu) do realizador Oliver Laxe de origem galega, a ficção deambula entre géneros cinematográficos, o documentário, conferindo-lhe um olhar realista e credível. Os personagens, cujos nomes empregados são os reais, não levam o espectador ao engano e servem como ponte para mostrar uma realidade ainda muito presente nos nossos dias: a analogia entre a natureza e a natureza humana, ambas contendo em si o poder da destruição e da auto-destruição. 2017 foi marcado por momentos trágicos destacados pelos incêndios que devastaram muitas florestas e casas, tragando assim muitas vidas.
A narrativa de O que Arde traça a história de Amador Coro, o alegado pirómano condenado a prisão por ter provocado um incêndio. Assim que goza os seus dias de liberdade, volta para casa da sua mãe Benedicta, à paz e à sua lida diária, ao trabalho no campo junto dos animais nas montanhas da Galiza. Todo o filme é permeado pelo encanto bucólico e segue o ritmo da vida tranquila. Mas toda a trama precisa de um conflito para que a narrativa tenha impacto, e tal como o filme The Hunt de Craig Zobel, há sempre um bode expiatório para que o real criminoso possa viver e continuar a sua má conduta causando mau dolo, conseguindo sair muitas vezes impune. Aqui não se chega a conclusão, pois a mesma é meramente sugestiva, mas, como seria de esperar, outro fogo devasta a região.
Depois da exibição do filme, na Casa das Artes, no Porto, seguiu-se a intervenção de Sérgio Silva, director de som, que explicou com entusiasmo a fase de rodagem da longa metragem. Detalhou também como conseguiram filmar tão realisticamente os incêndios e como o material se comportou face a temperaturas tão altas. Expôs também a cumplicidade da equipa que foi criando uma relação nos tempos mortos quebrados pelo alerta de incêndios que tanto aguardavam para o filme. Aqui, neste ecrã, observa-se os contratempos que surgem e que atrapalham o trabalho dos bombeiros quando tentam deflagrar um fogo monstruoso.
O trabalho de som é tratado com delicadeza e sensibilidade, deambulando entre o diegético e não diegético, pontuado por leitmotif e cuja intenção passa por dirigir o espectador para a contemplação e imersão do acontecimento. Destacam-se os não actores, Amador e Benedicta, pois são eles que agarram o espectador, como também o olhar de Oliver e o trabalho de som. Este filme é, igualmente, uma afirmação da zona espanhola tão negligenciada pelo próprio país, por Portugal e por ela mesma, a Galiza tem sido tratada como uma espécie de colónia que só serve para "mariscadas"; é desta que o filme galego mais visto de sempre em Espanha e o primeiro a chegar a Cannes se afirma com independência.
Da plantação de Eucaliptos - um problema mal resolvido
A plantação de eucaliptos tem sido um problema recorrente e debatido nas esferas públicas. Se levada a cabo ilegalmente, tem como penalidade coimas que podem ir até os 3.700 euros para os cidadãos e até aos 44 mil euros para entidades colectivas. Quem faz dela negócio tem apenas como foco beneficiar empresas produtores de papel com interesses meramente capitalistas em detrimento das florestas e pessoas que precisam do equilíbrio da biodiversidade, natural da região, para que a mesma possa sobreviver com saúde. Nesse sentido, os ministérios realizaram um conjunto de diplomas para complementar e consolidar a estratégia de defesa da floresta e prevenção e combate a incêndios, tendo em vista reforçar o nível de protecção de pessoas e bens e a resiliência do território face à ocorrência de fogos rurais.
Em O Que Arde há uma árvore centenária cujas raízes profundas perduram e sobrevivem à passagem dos séculos. Se se pudesse resumir o filme a uma frase, seria a que Benedicta proferiu:
Causa dor quem vive uma lancinante.
Quando me referia aos esquecidos referia-me ao tipo de situações e de pessoas que são retratadas. Acabam por ser sempre os abandonados pelo sistema, como nessa Galiza rural. Gosto de pessoas rotas [palavra galega para “quebrado”]. Gosto de pessoas rotas porque as pessoas rotas, em geral, têm fissuras no coração e é através dessas fissuras que passa a luz. A luz passa através da rutura do coração. Comovem-me muito esses borderlines, esses outsiders, os solteiros da montanha, os Amadores, tudo isso me comove muito. Isto também existe na cidade: estas pessoas que são muito sensíveis mas que não têm as ferramentas para viver neste mundo, as ferramentas psicológicas para viver num mundo que não tolera a fragilidade, que não tolera as coisas pequenas, que hoje em dia estão esmagadas. E, com elas, o rural também. É um pouco isso. Estes personagens, estes animais feridos que se escondem, que se fecham a mim, comovem-me muito. E as mães, as mães galegas – a Galiza não é uma pátria, a Galiza é uma mátria. É muito mais feminina do que o resto de Espanha. Não é melhor nem pior, mas é, se calhar, mais misteriosa, mais esotérica, mais feminina. Creio que nisso tem algo semelhante a Portugal.
Texto: Priscilla Fontoura