“Quando se pronuncia a palavra «cultura», é grande a probabilidade de alguém empunhar um revólver, pronto a disparar!” diz Gilles Lipovetsky na introdução de A cultura-mundo[1]. O nazismo eliminava os intelectuais e artistas por degenerados, o estalinismo por burgueses. As ditaduras de todo o espectro político coincidem em culpabilizar a cultura, e as democracias não ocultam a fadiga de lidar com uma cultura viva: que pensa, reflete e critica o poder.
No século XVIII, Schiller escrevia como cidadão do mundo; a Ode à Alegria – mercê de ser utilizada por Beethoven no final da Nona Sinfonia – é desde 1985 o Hino da Europa. A cultura de Schiller, como a dos filósofos gregos e a das origens do cristianismo, era a universalidade do género humano; um ideal ético, partilhado por Beethoven, que recusava considerar os outros povos como inferiores. Situar o amor à humanidade acima do amor à origem sempre foi percebido como um perigo, uma alta traição às pátrias.
Lipovestky diz também que a cultura era um sistema completo e coerente de explicação do mundo[2]. Mas aquela utopia de ser ‘cidadãos do mundo’ e de “exaltar os valores da liberdade e da tolerância, do progresso e da democracia” foi dando passo ao mundo sem fronteiras do capitalismo cultural, o hipercapitalismo de consumo, onde a cultura se impõe como uma indústria, um complexo mediático-mercantil que proclama o “tudo é cultura” e elimina as fronteiras simbólicas da alta e baixa cultura, da ciência e superstição, empobrecendo a vida social e intelectual, e glorificando a barbarização da cultura[3].
Consultada a palavra ‘cultura’ em dois prestigiosos dicionários da internet[4], percebemos a origem agrária deste termo pois as primeiras definições referem-se ao cultivo da terra, lavoura e técnicas para obter produtos vegetais para consumo. Apenas em sexto lugar é que aparece a definição de cultura como conhecimento, saber, educação, estudo, valores sociais e aplicação do espírito. Cultura é, pois, um artifício, uma intervenção do intelecto humano na natureza, desenvolvendo formas de pensamento e conceitos filosóficos. Cultura é uma determinada organização e conceção humana da natureza e só em sentido metafórico é que podemos falar de cultura, de música ou de arte na natureza. Claude Lévi-Strauss, em La Pensée sauvage, diz-nos que na sua forma pura, ‘selvagem’ ou mítica, a cultura é uma ordenação totalizadora do mundo[5].
Então o que é que concita as iras do poder quando se menciona a palavra «cultura»? Já, na antiga Grécia, Platão expressou, na República, um temor que parece continuar vigente: “nunca se abalam os géneros musicais sem abalar as mais altas leis da cidade”[6]. A cultura dá argumentos aos indivíduos para questionar o poder mas nenhum ‘poderoso’ aceita de bom grado submeter a sua autoridade. O que irrita os “cretinos com poder”[7] – expressão de Diego Armario que assim intitula o seu recente livro – é o prestígio da alta cultura, erudita e nobre, a ‘cultura culta’ do humanismo clássico, a cultura do mérito, da inteligência, a cultura que cria, inova e tem iniciativa[8].
Não se pode pensar no ser humano carecendo de uma vontade de superação, de se ultrapassar, de transcender – o que Nietzsche denominou “vontade de poder”[9] – mas essa identidade não se recebe nem se compra; a cultura, o conhecimento, segundo Robert Stake, não se descobre, constrói-se[10].
Apenas depois de conhecer a cultura é que ela pode ser apreciada[11].
(*) Compositor, Mestre em Educação Artística e em Ensino de Música.
© 2010 by Rudesindo Soutelo (http://www.soutelo.eu)
(Vila Praia de Âncora: 11-XI-2010)
[1] Lipovetsky, G., & Serroy, J. (2010). A cultura-mundo (Resposta a uma sociedade desorientada). (V. Silva, Trad.) Lisboa: Edições 70, p. 11.
[2] Ibid., p. 12.
[3] Ibid., p. 32.
[5] Leví-Strauss, C. (1970). O pensamento selvagem. São Paulo, Brasil: Companhia Editôra Nacional, Editôra da Universidade de São Paulo. p. 299.
[6] Platão. (2008). A República (11ª ed.). (M. H. Pereira, Trad.) Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 169 [424c].
[7] Armario, D. (2010). Cretinos com poder. (M. B. Cruz, Trad.) Lisboa: Babel - Arcádia
[8] Lipovetsky, G., & Serroy, J. op. cit., p. 209.
[9] Nietzsche, F. (2004). A vontade de poder (Vol. 1). Porto: Res.
[10] Stake, R. E. (Outono de 1994). Composition and Performance. Bulletin of the Council for Research in Music Education, 122, pp. 31 - 44.
[11] Lipovetsky, G., & Serroy, J. op. cit., p. 224.
Publicado em:
A Aurora do Lima (Viana do Castelo), Ano 155 nº 82, 1-XII-2010, p. 8
As Artes entre as Letras (Porto), nº 41, 29-XII-2010, p. 13 [http://www.artesentreasletras.com.pt]
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