Nesta noite de 9 de Julho de 2021 encontra-se o músico que tem dinamizado a cultura da cidade do Porto assente numa visão que não costuma contemplar o gosto de massas. O baterista Gustavo Costa - nome mais que firmado na cena da música experimental e de improvisação - apresenta-se a solo na VIC, para estrear o seu novo álbum. Atrás de si estão faixas/esculturas metalizadas e à sua frente uma bateria com set up separado.
Por força da pandemia, que tem provocado vários cancelamentos de eventos, a sessão Ressonância, organizada pela VIC, ficou também estagnada há cerca de um ano e meio, por causa das restrições que requerem novas adaptações a todo o instante. No entanto, Gustavo entrou em contacto com a VIC, no sentido de perceber se existiria possibilidade de estrear o álbum a solo no espaço, intitulado Entropies and Mimetic Patterns, e cujo lançamento marca a primeira co-colaboração entre a Sonoscopia - Associação gerida também pelo músico, e pela editora Lovers & Lollypops.
Este recente Entropies and Mimetic Patterns, ao contrário das propostas já realizadas com Most People Have Been Trained to be Bored, busca uma abordagem e propósitos diferentes. Aqui é anulado o som sintético e plástico para desenhar-se uma estrutura mais acústica e fiel, sem distorcer as propriedades e potencialidades "naturais" do instrumento. Nestas repetições padronizadas anda-se em círculos, em geometrias que desenham triângulos e outras formas. Nesta dança de ritmos primitivos não se anda hirto nem em linha recta - só se a Terra fosse plana, como alguns afirmam acerrimamente... mas, fugindo um pouco à comicidade da premissa da "crença moderna" dos terraplanistas, facto é que este disco faz um regresso às origens da percussão, como o fechar de um ciclo em número palíndromo. Nessas batidas que se convertem em mandalas são acrescentados pormenores aqui e ali em repetição, sem nunca fugir ao tempo - talvez seja uma tentativa em que se pretende elevar o corpo a um estado meditativo para o libertar da razão que tantas vezes o prende. Gustavo Costa, com o passar do tempo, suporta-se ultimamente numa abordagem exploratória e independente menos sujeita a dispositivos electrónicos. Cada vez mais regressa ao início da sua caminhada musical, ao instrumento tal como ele é para explorar todo o seu potencial orgânico e acústico.
A vida é marcada por vários renascimentos que reservam alguns desafios estimulados por novas fases e experiências. Quando se pensa que estamos a ser levados para algo que nunca vivemos, somos surpreendidos pelo que sempre esteve lá e ficou tapado com um pano, falo do primitivismo, das raízes e bases, momentos que potencializam o que foi experimentado quando se foi criança. Regressar ao primitivismo permite voltar a uma espécie de inocência libertadora, que se desprende da lógica e da razão para que o corpo vá além das barreiras.
Neste concerto houve quem tivesse fechado os olhos para concentrar-se apenas no som emitido pelas baquetas nas peles dos timbalões e da tarola, nas faixas metalizadas, pratinhos e pratos. Sentiu-se a exploração sonora que Gustavo tirou a partir da bateria acústica afinada e montada para produzir uma estética orgânica. Esta performance remete para o lado mais selvagem de nós (que nos julgamos civilizados), e personagens de uma história colonialista que aborda o confronto entre indígenas e ocupantes; mas o tempo é outro, hoje enchemo-nos de questões e dúvidas por consequência do pluralismo de visões e do esgotamento causado pelo desprendimento e distanciamento das origens, uma ligação contra-natura ligada linearmente às épocas industrial e tecnológica; no fundo, a urgência de hoje aponta para o regresso das coisas simples, como a reconciliação com a espiritualidade, a relação entre Homem-Natureza, a importância da biologia, enfim, a compleição.
O músico introvertido mas tão versátil em várias disciplinas (pedagogia, criação de sons/esculturas sonoras e programador) tem concentrado o sentido da sua vida profissional a estimular pessoas a educarem o ouvido para outras possibilidades do som - combinada à atitude generosa e nada presunçosa com que o faz. Anos de experiências musicais levaram-no a tomar vias mais complexas. Hoje faz uma trajectória mais pacífica e curiosa qual criança que explora sons em repetição, como uma antropologia sonora, que examina com precisão o som de cada um, explorando-o com o que ali tem à mão - e se se adicionar estes pratinhos em cima de cada timbalão, que som sairá dali? Este disco encaixaria que nem luva para a banda-sonora de um documentário filmado na Amazónia, sob a direcção de Cláudia Andujar, ou de uma ficção de Apichatpong Weerasethakul.
Do título do disco sai a combinação dos paradoxos: entropia que significa desordem, e padrões miméticos cuja representação transmite paciência, emoção e proximidade a um instrumento que exprime a comunhão que tem com ele. É assim que o músico organiza o caos precedente no seu universo sónico tão singular. Ao álbum são integrados temas curtos, alguns nem chegam aos 2 minutos, arranca com Entropy e prepara-se um "ritual" que alterna entre o minimalismo percussivo e batidas primitivas, por vezes polirrítmicas. Destaca-se Crass, um tema bastante curioso pois provoca pulsão e liberdade física. Ao longo do disco percebe-se a intenção do músico aventureiro e explorador sónico que, em última instância, partilha com o ouvinte o seu imaginário, a uma possível selva cheia de acontecimentos inesperados. Mimesis Natura eleva o espírito à transcendência em camadas multiverso. O músico não tocou o tema que encerra o disco, Allegorial Dream Vision, uma faixa de 15 minutos com batidas profundas que soam como reverberações ilusórias que imergem o ouvinte ao ritual inicial.
Entropies and Mimetic Patterns abre o enquadramento de todo o quadro, como igualmente transita para o detalhe mais ínfimo no mesmo. No quadro tanto existe uma selva cheia de biodiversidade que é imperceptível ao olho humano, como um figo cheio de sementes e propriedades nutricionais que pode ser observado no vídeo realizado por Augusto Lado para o tema Circles and Time I.
Além da apresentação do disco na VIC, o novo registo foi apresentado num ciclo de concertos: 10 de julho no Salão Brazil em Coimbra, 11 de julho na Sonoscopia no Porto, e no dia 28 de julho será apresentado no Colapsolexias, em Santiago de Compostela.