segunda-feira, 12 de julho de 2021

A expressão de Gustavo Costa volta às origens da percussão. Entropies and Mimetic Patterns teve estreia na VIC Aveiro Arts House


Não se pode ignorar os cenários que compõem os quadros dos passeios que se fazem. Pode ser que os olhos retidos pela curiosidade parem num jardim para o contemplar, devido à imensidão ou aos detalhes que tem: um pássaro que pousa num ramo, uma folha que perdura no chão deixando-se passivamente secar pelo calor emitido pelo sol ou dança ao sabor do vento, ou uma figueira prestes a dar fruto. Toda essa riqueza de um jardim pode existir. De igual modo, dentro de uma casa com uma fachada que não aparenta mais do que lhe está à vista pode estar um tesouro, ou mais. Não se deve avaliar uma casa pela sua fachada, tal como não se avalia um livro pela sua capa; na realidade são muitas as casas que nos surpreendem pelo recheio que escondem, isto é, pelas riquezas histórica|cultural que a convertem em legado.

Ninguém pensaria que à primeira vista a VIC Aveiro Arts House seria uma casa que serve de núcleo e cruzamento para o encontro de valências artísticas. Combina traços de casa-museu, alojamento local e residência artística. A casa pertenceu ao ceramista, cineasta, pintor e escritor Vasco Branco que seguiu, durante a sua vida, a via artística, o activismo político que ia em contracorrente à vigente da época. Hoje, além de casa-museu, existem actividades que continuam a interessar aos que procuram propostas inortodoxas.   


Nesta noite de 9 de Julho de 2021 encontra-se o músico que tem dinamizado a cultura da cidade do Porto assente numa visão que não costuma contemplar o gosto de massas. O baterista Gustavo Costanome mais que firmado na cena da música experimental e de improvisação - apresenta-se a solo na VIC, para estrear o seu novo álbum. Atrás de si estão faixas/esculturas metalizadas e à sua frente uma bateria com set up separado. 

Por força da pandemia, que tem provocado vários cancelamentos de eventos, a sessão Ressonância, organizada pela VIC, ficou também estagnada há cerca de um ano e meio, por causa das restrições que requerem novas adaptações a todo o instante. No entanto, Gustavo entrou em contacto com a VIC, no sentido de perceber se existiria possibilidade de estrear o álbum a solo no espaço, intitulado Entropies and Mimetic Patterns, e cujo lançamento marca a primeira co-colaboração entre a Sonoscopia - Associação gerida também pelo músico, e pela editora Lovers & Lollypops

Este recente Entropies and Mimetic Patterns, ao contrário das propostas já realizadas com Most People Have Been Trained to be Bored, busca uma abordagem e propósitos diferentes. Aqui é anulado o som sintético e plástico para desenhar-se uma estrutura mais acústica e fiel, sem distorcer as propriedades e potencialidades "naturais" do instrumento. Nestas repetições padronizadas anda-se em círculos, em geometrias que desenham triângulos e outras formas. Nesta dança de ritmos primitivos não se anda hirto nem em linha recta só se a Terra fosse plana, como alguns afirmam acerrimamente... mas, fugindo um pouco à comicidade da premissa da "crença moderna" dos terraplanistas, facto é que este disco faz um regresso às origens da percussão, como o fechar de um ciclo em número palíndromo. Nessas batidas que se convertem em mandalas são acrescentados pormenores aqui e ali em repetição, sem nunca fugir ao tempo - talvez seja uma tentativa em que se pretende elevar o corpo a um estado meditativo para o libertar da razão que tantas vezes o prende. Gustavo Costa, com o passar do tempo, suporta-se ultimamente numa abordagem exploratória e independente menos sujeita a dispositivos electrónicos. Cada vez mais regressa ao início da sua caminhada musical, ao instrumento tal como ele é para explorar todo o seu potencial orgânico e acústico. 

A vida é marcada por vários renascimentos que reservam alguns desafios estimulados por novas fases e experiências. Quando se pensa que estamos a ser levados para algo que nunca vivemos, somos surpreendidos pelo que sempre esteve lá e ficou tapado com um pano, falo do primitivismo, das raízes e bases, momentos que potencializam o que foi experimentado quando se foi criança. Regressar ao primitivismo permite voltar a uma espécie de inocência libertadora, que se desprende da lógica e da razão para que o corpo vá além das barreiras. 

Neste concerto houve quem tivesse fechado os olhos para concentrar-se apenas no som emitido pelas baquetas nas peles dos timbalões e da tarola, nas faixas metalizadas, pratinhos e pratos. Sentiu-se a exploração sonora que Gustavo tirou a partir da bateria acústica afinada e montada para produzir uma estética orgânica. Esta performance remete para o lado mais selvagem de nós (que nos julgamos civilizados), e personagens de uma história colonialista que aborda o confronto entre indígenas e ocupantes; mas o tempo é outro, hoje enchemo-nos de questões e dúvidas por consequência do pluralismo de visões e do esgotamento causado pelo desprendimento e distanciamento das origens, uma ligação contra-natura ligada linearmente às épocas industrial e tecnológica; no fundo, a urgência de hoje aponta para o regresso das coisas simples, como a reconciliação com a espiritualidade, a relação entre Homem-Natureza, a importância da biologia, enfim, a compleição. 

O músico introvertido mas tão versátil em várias disciplinas (pedagogia, criação de sons/esculturas sonoras e programador) tem concentrado o sentido da sua vida profissional a estimular pessoas a educarem o ouvido para outras possibilidades do som - combinada à atitude generosa e nada presunçosa com que o faz. Anos de experiências musicais levaram-no a tomar vias mais complexas. Hoje faz uma trajectória mais pacífica e curiosa qual criança que explora sons em repetição, como uma antropologia sonora, que examina com precisão o som de cada um, explorando-o com o que ali tem à mão - e se se adicionar estes pratinhos em cima de cada timbalão, que som sairá dali? Este disco encaixaria que nem luva para a banda-sonora de um documentário filmado na Amazónia, sob a direcção de Cláudia Andujar, ou de uma ficção de Apichatpong Weerasethakul

Do título do disco sai a combinação dos paradoxos: entropia que significa desordem, e padrões miméticos cuja representação transmite paciência, emoção e proximidade a um instrumento que exprime a comunhão que tem com ele. É assim que o músico organiza o caos precedente no seu universo sónico tão singular. Ao álbum são integrados temas curtos, alguns nem chegam aos 2 minutos, arranca com Entropy e prepara-se um "ritual" que alterna entre o minimalismo percussivo e batidas primitivas, por vezes polirrítmicas. Destaca-se Crass, um tema bastante curioso pois provoca pulsão e liberdade física. Ao longo do disco percebe-se a intenção do músico aventureiro e explorador sónico que, em última instância, partilha com o ouvinte o seu imaginário, a uma possível selva cheia de acontecimentos inesperados. Mimesis Natura eleva o espírito à transcendência em camadas multiverso. O músico não tocou o tema que encerra o disco,  Allegorial Dream Vision, uma faixa de 15 minutos com batidas profundas que soam como reverberações ilusórias que imergem o ouvinte ao ritual inicial. 

Entropies and Mimetic Patterns abre o enquadramento de todo o quadro, como igualmente transita para o detalhe mais ínfimo no mesmo. No quadro tanto existe uma selva cheia de biodiversidade que é imperceptível ao olho humano, como um figo cheio de sementes e propriedades nutricionais que pode ser observado no vídeo realizado por Augusto Lado para o tema Circles and Time I

Além da apresentação do disco na VIC, o novo registo foi apresentado num ciclo de concertos: 10 de julho no Salão Brazil em Coimbra, 11 de julho na Sonoscopia no Porto, e no dia 28 de julho será apresentado no Colapsolexias, em Santiago de Compostela. 


Texto: Priscilla Fontoura
Fotos tiradas por Emanuel R. Marques (que tinha no bolso um telemóvel com câmara)