A escola pública da ditadura franquista, que eu frequentava, era muito cinzenta, mas aos dez anos levaram-me, na cidade de Vigo, para o Instituto ─ Masculino, como correspondia à segregação mental do poder. Ali, no ano preparatório, tive dois excelentes professores que me iluminaram outros horizontes, Emilio Joaquín Freijeiro García nas letras e Manuel Copena Araújo nas ciências. Este último fez a grande diferença na minha vida, pois, de um modo simples e estimulador, introduziu-me na lógica matemática fugindo das receitas memorizadas e aprendi a compreender a abstração da sua linguagem. Sem ele, nem eu, o sabermos, descobriu-me os segredos da música. Curiosamente, aquele professor fora um célebre dianteiro, avançado, e máximo goleador do clube Celta de Vigo, com a alcunha de Nolete, nos anos trinta e quarenta do século XX. Essa parte da sua lógica, a desportiva, nunca me cativou. Alguns anos depois, soube que militava num partido político aberrante, como era a Falange, talvez por cálculo de sobrevivência, pois não conheço acusações de ele participar nas razias falangistas que assassinaram impunemente milheiros de pessoas, muitas delas ainda hoje em valas comuns desconhecidas.
quinta-feira, 15 de julho de 2021
A vaca não dá leite, por Rudesindo Soutelo
Durante todo aquele ano letivo, com o meu colega de carteira, brincava a imaginar como seria o mundo dentro de um milhão de anos. Aquelas ideias disparatadas mantinham as nossas mentes em constante excitação, criando imagens com todos os pormenores físicos dos objetos. O neurocientista António Damásio refere que “as imagens que compõem a nossa mente resultam de uma atividade neural perfeitamente regimentada que transmite os modelos ao cérebro”[1], e assim aprofundava no raciocínio lógico da fantasia. O resultado final desse ano foi ter 10 valores sobre 10 em todas as disciplinas. Então decidi ser músico, concretamente, compositor.
Já entrara para o Conservatório de Música e a lógica da matemática preencheu de sentido a abstração sonora. Comecei a escrever canções para os amores platónicos e percebi que as palavras só atrapalhavam as minhas fantasias sonoras. Descobri que, para além das musiquetas que o meu contexto social e familiar me proporcionava, existia uma linguagem musical mais complexa que ativava o sistema de recompensa do meu cérebro de um modo muito mais intenso. Na Psicologia della musica, Daniele Schön afirma que a palavra ‘música’ não representa uma simples estrutura acústica, mas é uma experiência subjetiva complexa, baseada num conjunto de capacidades mentais e que precisam de diversas funções percetivas e cognitivas[2].
Com dez anos podemos transformar qualquer obstáculo num desafio vital, porque as ideias borbulham espontaneamente e em quantidades inesgotáveis. Porém, a escolaridade vai formatando os indivíduos e limitando os contextos de criatividade, pelo que as ideias perdem o vigor e a frescura original para se transformarem em cópias recicladas, toleráveis e politicamente corretas. As ideias são gratuitas, mas a cultura economicista esforça-se em convertê-las num bem escasso para vender a preços elevados.
Leio num jornal espanhol que “o pintor das vacas que colonizaram as cidades europeias não pintava os seus quadros”[3]. Fumiko Negishi reclamou a autoria de 221 obras assinadas pelo pintor pop Antonio de Felipe e o tribunal reconheceu que não basta ter a ideia porque sem execução não há arte. Fumiko trabalhou como assalariada durante dez anos para De Felipe concretizando em obras terminadas os rascunhos ou ideias que ele lhe entregava. Depois, assinadas por ele, que considerava as suas ideias acima de qualquer realização, mercantilizava o trabalho artístico dela. A juíza do caso entendeu que o valor de uma obra está na sua realização e não na intenção de fazê-la, pois, como reza o ditado popular, de boas intenções está o inferno cheio.
António de Felipe que se considera o pai das vacas da Cow Parade que invadiram tantas cidades por todo o planeta, lamenta que de todo o leite que elas deram não lhe tenham pago direitos pela ideia, que, segundo afirma, era sua[4]. Confesso, ainda que não o possa demonstrar, que naquele primeiro ano no Instituto Santa Irene de Vigo eu já tivera a ideia de pôr uma vaca a fazer uma grande bosta na porta principal, quando nos visitou Pilar Primo de Rivera, a falangista que quiseram casar com Adolf Hitler e que proclamava, alto e feio, que “as mulheres nunca descobrem nada; falta-lhes o talento criador que deus reserva para as inteligências varonis”[5], mas eu não tinha a vaca para materializar aquela cintilante imaginação. É claro que as ideias são intangíveis e não geram direitos. Para evitar que se apropriem das nossas ideias luminosas, o melhor é realizá-las de imediato, porque sendo brilhantes qualquer um pode dar com elas.
Com o tempo aprendi que se quisermos o leite da vaca, há que ordenhá-la. Por muito que o pós-modernismo nos tenha dito que o mundo era uma junção de simulacros ─fictum─, ele não deixou de ser um conjunto de realidades ─factum─ e não basta pensar, há que materializar aquilo que se pensa porque a vaca, de motu próprio, não dá leite.
(*) da Academia Galega da Língua Portuguesa.
Compositor e Mestre em Educação Artística e Ensino de Música.
© 2021 by Rudesindo Soutelo
(Vila Praia de Âncora: 15-06-2021)
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1. Damásio, A. (2020). Sentir & saber. A caminho da Consciência. Lisboa: Círculo de Leitores, p. 86.
2. Schön, D., Akiva-Kaviri, L., & Vecchi, T. (2013). Psicologia della musica. Roma: Carocci, p. 97
5. Soler Gallo, M. (2018). Sé mujer antes que estudiante: El ideal de mujer universitária de la Sección Femenina durante el primer lustro del franquismo. Em Y. Romano Martín, S. Velázquez Garcia, & M. Bianchi, La mujer en la historia de la universidad. Retos, compromiso y logros. (pp. 75-87). Salamanca: Aquilafuente – Universidad de Salamanca, p. 79.