quarta-feira, 21 de julho de 2021

Breaking the Fourth Wall: Annette (2021)


Como há alimentos que podem conter resquícios de glúten, neste texto poderão encontrar spoilers. Sintam-se avisados.


Nunca fiquei muito embevecida por filmes-musicais. Não esperaria ver um musical depois da obra-prima Holy Motors, um filme que não se esquece com facilidade, mas Leos Carax, apesar de ser um realizador com mais experiência em curtas do que em longas-metragens, tem vindo a formar um culto - e não é fácil com poucas longas lançadas; parece que os cinéfilos levam mais a sério realizadores cuja filmografia reúne muitas mais longas do que curtas-metragens. Contudo, Carax é caso raro, não tivesse uma identidade que marca um passo progressista no cinema. Além de que este musical reinventado tem como destaque vários pontos, um deles é que é cantado em som directo! A dualidade de Carax faz com que Annette tenha a probabilidade de ficar no templo das obras-primas, o realizador ao mesmo tempo que se sente atraído pelo show biz e por Hollywood, sente também repulsa desses meios sombrios e dúbios.


Não é fácil ler nem absorver o seu todo, este filme feito pela mente de um realizador complexo e destemido, que agora lança outra longa, eleva o trabalho dos irmãos Ron e Russel Mael, os criadores da banda Sparks que se iniciou nos anos 70, a outro nível. Tudo aconteceu por causa de uma chamada telefónica dos irmãos a Carax para agradecer a inclusão de um tema de Sparks em Holy Motors, essa conversa serviu de pretexto para o realizador mastigar outro imaginário. Os Sparks passaram meio século mergulhados em géneros musicais totalmente diferentes - do glam rock ao disco, do electro à ópera - combinam um pouco de tudo. A dupla planeou originalmente “Annette” (que é meio falado, meio cantado) como um álbum altamente conceptual narrativo, que seria apresentado ao vivo em digressão, adaptando-o para as telas apenas depois se Carax manifestasse interesse.


E voilá, Annette passa de imaginação a matéria. O filme inicia-se logo com a referência às pálpebras dos olhos que se abrem qual cortinas, começa o espectáculo da ópera rock romântica que usa constantemente a meta-linguagem para confundir quem olha para a tela; será apenas fantástico? Não, em Annette conjugam-se géneros, todos legítimos para a realidade que se forma com trapalhadas de acontecimentos difíceis de absorver e, por isso, seria de esperar que penetrassem a fundo a visão surrealista.


Mas todo esse exagero prepara o terreno para algo muito mais íntimo, sincero e subtil. A primeira linha de diálogo do filme é falada pelo próprio Carax, dizendo à filha Nastya que o espectáculo está para começar. A mãe de Nastya era a musa e parceira de Carax, Yekaterina Golubeva, a quem Carax dedica os seus filmes, tanto Holy Motors como Annette. Um espectro semelhante paira sobre Annette - um de perda e culpa e tristeza e a maneira como se alimentam da nossa auto-aversão. “Esse desejo horrível de olhar para baixo”, canta Henry. “Meio horrorizado, meio aliviado, eu lancei os meus olhos para o abismo.” Escuridão, depressão, nojo são monstros, sim, mas são monstros sedutores. E Henry, a quem Carax frequentemente enquadra pairando sobre Anne como um demónio gigante de possibilidades raivosas, é o monstro mais sedutor de todos eles. A casa isolada do casal na floresta, cercada por uma floresta alta e dominada por uma piscina verde luminosa e sobrenatural, parece uma cabana encantada saída de algum conto de fadas sinistro.


No primeiro quadro somos apresentados aos protagonistas do filme, aos Sparks, a Leos Carax e a sua filha. Tal como o filme navega entre fantástico, drama, comédia, surrealismo; musicalmente viaja também entre géneros, mas sempre com uma componente contemporânea e vanguardista. Há aspectos que conduzem o cinéfilo a sentir o drama pesado manipulado pelo realizador, como também a encarar algumas cenas mais intimistas com a leveza que só o humor consegue proporcionar. Reminiscências de A Bela e o Monstro, O Fantasma da Ópera, do primata que sobe às mesas em The Square e à acidez tão visceralmente honesta presente em Bo Burnham: Inside constroem Henry, que antes dos seus espectáculos prepara-se qual pugilista prestes a entrar num ringue.   


Encontram-se contrassensos nesta trama, uma criança-boneco, que partilha traços em comum com a figura folclórica Pinóquio, explorada pelos pais, cada um auto-centrado no sucesso da sua fama. Perto do final esse boneco transfere-se para criança real; não será também a representação infantil outra exploração? Quantas crianças viram as suas vidas exploradas em Hollywood por pais que procuravam preencher a frustração do sucesso nunca alcançado, através do talento dos seus filhos?




Annette em termos estruturais separa-se em capítulos que marcam a trama clássica de uma obra trágica. Um casal célebre que vive uma paixão e um amor interrompidos assim que a primeira filha do casal nasce. Passado na Los Angeles contemporânea, Annette conta a história de Henry (Adam Driver), um comediante de stand-up com um sentido de humor intenso, e Anne Defrasnoux (Marion Cotillard), a soprano mundialmente famosa. A montagem é fluída e consegue fazer pontes entre géneros que à partida não se misturariam, mas a magia da montagem é mesmo essa, ligar pontos incompatíveis, à partida. 


Anne pré-visualiza em palco aquilo que lhe vai acontecer, uma figura que morre sempre nos seus espectáculos e que sonha com avisos premonitórios de vítimas de assédio #metoo (pode-se fazer a ligação com The Morning Show); por outro lado, Henry antecipa o que vai fazer no último espectáculo, acabando por destruir assim a sua carreira. Com o tema Forest parece que estamos numa espécie de Fantasma da Ópera, quem dá a voz na realidade, Cotillard? Não me parece.


O casal reflecte muito bem o princípio de uma relação que começa em lua de mel e acaba em lua de fel, uma dinâmica tão plural e tão representativa das que acontecem na maior parte das vezes, reflecte também as representações de género que a nossa história tem espelhado, o macho alfa que tem como marcas de personalidade o sadismo, a força, a frieza calculista, e a mulher, a fragilidade, o drama e a tragédia. 


Adam Driver é neste momento um dos actores que tem um pé no cinema mainstream, e outro no cinema independente ancorado na formação em teatro e drama que o defende dos artifícios que não queremos ver no cinema, um actor que se deixa inflamar pelo realismo que o argumento de Marriage Story requer e pela contenção poética de Paterson.

No fundo, Annette é uma grande crítica ao mediatismo jornalístico, à resposta do público que no mesmo instante que endeusa as celebridades diaboliza-as quando cometem uma tragédia, o público aprova ou reprova a viralização mediática perpetrada pela classe jornalística e de entretenimento.  


Resumindo, chego à conclusão de que há musicais que passam a parede do género, tal como Dancer in the Dark e La La Land, este musical também não ficará dentro das barreiras do género. 


Texto: Priscilla Fontoura