Nem pessoas, nem realidades abrem tanto o nosso cérebro quanto certos filmes que indicam que determinada fase da nossa vida não era disruptiva, mas uma reacção normal para uma situação anormal. É assim que se apresentam na tela aqueles seres com pensamentos projectados naquele quadro que nos guia para dentro de uma história com a qual nos identificamos.
Aubrey Plaza já tinha mostrado a sua capacidade em Parks and Recreation, mas é com Black Bear que se vê até onde pode e consegue ir. Black Bear divide-se em dois actos, a actriz separa-se em duas pessoas diferentes em cada acto, mas as duas têm uma relação com o macho alfa que manipula, cinicamente, a história. Será?
Dos dois actos, o último apresenta o caos muitas vezes real durante a rodagem de um filme e como todos os membros da equipa se comportam face às idiossincrasias que dali decorrem. O filme realizado e escrito por Lawrence Michael Levine é, no fundo, um olhar fascinante sobre as complexidades criativas patentes no mundo do cinema, uma experiência provocante que faz crescer o drama psicológico - inabalavelmente honesto - potencializando o talento de Aubrey. O filme The War of the Roses (1981) revela um casal cruel preso a uma espiral de ódio tóxico que poderá servir de relação no que respeita a referências fílmicas para Black Bear que se constrói numa narrativa equivalente. A direcção de actores é de facto o ponto forte do filme que não tem como intenção dar respostas simples para o seu próprio mistério - pelo contrário, em vez disso, o pesadelo que é montado passa de normal a surreal e complexo.
Aubrey Plaza traz todo o seu talento para a ironia divertida e inescrutável para o papel de Allison, uma cineasta que chega a uma bela casa à beira do lago no fim de semana com a aparente intenção de recarregar as baterias criativas e trabalhar num guião para cinema. Vemos as suas anotações num bloco de notas, e a caligrafia rabiscada é o motivo para as legendas e para os créditos. A casa pertence a um belo casal, Gabe (Christopher Abbott) e Blair (Sarah Gadon) são amigos de amigos de Allison e têm uma política informal de emprestar a casa para artistas. Desde o início, há uma fricção inquietante entre os três. Allison estabelece um tom irónico de troça que é perigoso para pessoas que não se conhecem muito bem; Blair não sabe se está a troçar dela ou a seduzir o seu marido Gabe, e Gabe acha que o consumo repentino de vinho de Blair é inadequado, uma vez que está grávida.
O álcool costuma ser o alicerce fácil para que pessoas com grande insegurança possam sentir-se mais propensas a ser (se calhar) o que de facto são e pensam, o seu consumo excessivo pode provocar tensões em momentos sociais como jantares. Em Black Bear esse momento-tipo acontece durante um jantar em que Gabe e Blair discutem em crescendo nos níveis de Quem Tem medo de Virginia Woolf?, desencadeados pela atracção que Gabe sente por Allison. Tudo leva a um desfecho horrível. O próximo acto inverte os papéis das personagens femininas no que à relação com Gabe diz respeito.
É importante ressaltar que o argumento que levou ao desastre o primeiro acto foi por causa de papéis de género: Gabe disse que o abandono da sociedade moderna desses papéis levou à infelicidade. Espantado com essa deslealdade reacionária, Blair o acusa de ser antifeminista, mas Allison concorda com Gabe. No segundo acto, vê-se Allison sob uma luz totalmente diferente: é a actriz e Gabe o seu realizador.
Este novo tom e o novo elenco expandido actualizam e revigoram o filme de uma forma engenhosa: o tempo, a banda sonora, a nova dinâmica do grupo interno fazem uma mudança surpreendente, mas a relação com o que aconteceu anteriormente carrega a acção com significado. Damos de caras com uma família muito disfuncional.
Chega-se então a uma infinitude de questões: afinal de contas quem é que está no comando? Quem é o realizador, ou o Urso Negro? Allison, como actriz principal, tem o poder; comanda o que acontece, principalmente porque consegue fazer alterações no guião no último momento. Este é o melhor papel de Plaza, a sua sensualidade fria alcança algo mais misterioso do que qualquer coisa que tenha feito anteriormente. E o Urso Negro do título assume inevitavelmente mais do que uma forma: um apelido, uma metáfora para o perigo sexual, um urso real de carne e osso. É símbolo e realidade: como o próprio filme, é um acto duplo com garras. Apesar de todos os protestos pró-feministas, será que numa relação amorosa essa capacidade de não se deixar dominar existe para afrouxar as garras que a masculinidade sempre tentou controlar, às vezes até de uma maneira silenciosa e manipuladora? Afinal quem domina quem quando numa relação não se respeitam princípios humanos e democráticos?
Texto: Priscilla Fontoura