quinta-feira, 29 de julho de 2021

Património em feminino, por Rudesindo Soutelo


Desenhei no quadro uma linha vertical e outra horizontal. Perguntei aos alunos qual das duas linhas representaria melhor a sociedade na qual vivem; a resposta foi unânime. A vertical era descrita por eles como a representação do poder de uns indivíduos sobre os outros. Quanto mais baixa é a posição nessa linha, maior é o peso do poder, diziam os mais esclarecidos. Repeti a pergunta em turmas diferentes e a resposta era sempre a mesma.


O arquiteto renascentista, Leon Batista Alberti, que construía harmonias baseando-se na música dos números, formulou no livro IX de De Re Aedificatoria o conceito de ‘consensus partium’ como a interdependência do todo e a parte, ou uma conspiração das partes e o todo, de acordo com um número, uma ordem e um lugar definidos, “princípio absoluto e primeiro da natureza”[1].

Esse poder vertical, justificado durante séculos pela oposição entre o divino e o humano, subjaz nas partes e no todo duma sociedade que, desde o grande renascimento, se quer humanista, mas que permanece coberta por uma densa nuvem teocêntrica que passou de focar-se nos valores do ser, para ressaltar os valores do ter. Na essência do poder vertical está sempre o referente masculino como valor moral inquestionável.

Foi preciso espicaçar a imaginação e a inteligência dos alunos para encontrar algo, nesta sociedade, que pudesse ser representado pela linha horizontal. Herbert A. Simon, em As Ciências do Artificial, afirma que “a complexidade ou simplicidade de uma estrutura depende criticamente da maneira como a descrevemos”[2] e num artigo posterior introduz o conceito de ‘parcimónia’, que seria a relação da complexidade dos dados observados com a complexidade da fórmula que os representa, explicando muito a partir de pouco[3]. Assim como a ciência procura parcimónia, não simplicidade, a linha horizontal acabou por representar, na parcimónia da aprendizagem, o poder colaborativo da negociação, do respeito pelas diferenças, da aceitação do outro, e onde os valores têm como referente o feminino, numa neo-modernidade sem dominações.

O património cultural em masculino, que nos legou a história, não pode ser negado nem esquecido, mas sim deve ser reinterpretado à luz do feminismo. A perceção, como diz Pierre Boulez em Les Neurones Enchantés, é uma experiência de aprendizagem prática e também teórica[4]. Se recebemos uma aprendizagem baseada no poder vertical, teremos dificuldades em interpretar as formas, as complexas subtilezas e os benefícios de um poder horizontal.

A linha vertical começou a inclinar-se entre o final do século XIX e o início do XX, num novo período renascentista, o Modernismo, que reagiu ao individualismo romântico com uma nova harmonia das proporções clássicas. Na música, o opressivo poder fálico da tonalidade foi desmantelado por Debussy, Stravinski, Schönberg, Bartok e os seus seguidores. Sigmund Freud interpreta os sonhos. Albert Einstein mede a Energia. A poesia ultrapassa a rima. Wassily Kandinsky descobre que a beleza não precisa de figuração. Antoni Gaudí constrói monumentos com colunas inclinadas e formas desafiantes. A mulher veste e age, pela primeira vez, ao seu gosto e começa um século de lutas pelos direitos de género. A vertical curva-se, mas resiste a ser derribada.

Com a queda das torres gémeas de Nova Iorque, em 2001, um novo período de recuperação da harmonia das proporções está reagindo contra o ‘tudo vale’ do pós-modernismo. A novidade é que agora são as mulheres as que começam a comandar o desenvolvimento social. Na música erudita, as mulheres estão a modernizar o repertório e, quando olham para o passado, reinterpretam as obras sem os estereótipos masculinos. Na ciência, na literatura, nas artes, e até na política as mulheres começam a exercer o poder; na Espanha já há um governo com maioria de mulheres, e até o jornal El País é agora dirigido por uma mulher.

O novo património cultural é o poder horizontal construído desde o respeito pela diferença e, ainda que o poder vertical continue presente, o feminismo está a esvaziá-lo de argumentos. A parcimónia, como o artista, numa aprendizagem cidadã colaborativa, expressará a beleza “explorando uma economia extrema dos meios”[5].

Que o equilíbrio e o sossego da linha horizontal orientem o percurso dos alunos e o de As Artes entre as Letras, na parcimónia de mais um aniversário em feminino, o nono. Parabéns!

(*) da Academia Galega da Língua Portuguesa.
Compositor e Mestre em Educação Artística e Ensino de Música.

© 2018 by Rudesindo Soutelo
(Vila Praia de Âncora: 10-VI-2018)
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[1] Alberti, L. B. (1553). L’architecture et art de bien bastir (Vol. IX, cap. 5, f. 192). París: J. Kerver. Obtido em 10 de junho de 2018, de http://architectura.cesr.univ-tours.fr/.../CESR_4781_9.pdf
[2] Simon, H. A. (1981). As ciências do artificial. (L. M. Pereira, Trad.) Coimbra: Arménio Amado, p. 336.
[3] Simon, H. (2002). Science seeks parsimony, not simplicity; Searching for pattern in phenomena. Em A. Zellner, H. A. Keuzenkamp, & M. McAler, Simplicity, Inference and Modeling (pp. 32-72). Cambridge University Press.
[4] Boulez, P., Changeux, J.-P., & Manoury, P. (2016). Las Neuronas Encantadas. Barcelona: Gedisa, p. 99.
[5] Ibid. p. 75