Não é a primeira vez que Emma Ruth Rundle visita Portugal. Certo é que poderia escrever sobre o seu espírito criativo, pois sigo o seu percu...

Emma Ruth Rundle olha para o passado sem virar estátua de sal com Engine of Hell, na Casa da Música



Não é a primeira vez que Emma Ruth Rundle visita Portugal. Certo é que poderia escrever sobre o seu espírito criativo, pois sigo o seu percurso desde a altura de Red Sparrowes, Marriages e Nocturnes, mas é agora, na fase de maturidade do seu projecto a solo, que faço alusão ao trabalho da artista folk - o qual tenho mantido no resguardo das minhas preferências musicais.

Parte da Casa da Música vai-se compondo com o número que cedo viria a esgotar a Sala 2 para o concerto que deveria ter acontecido em Fevereiro, mas que foi forçosamente adiado para Julho, por causa da indefinição que a pandemia causou nos vários aspectos da vida "normal". Alguns humanos com toques de síndrome de imortalidade pensam que o tempo pode ser controlado por eles mesmos. Enganam-se. E ainda bem. Continuamos a ser migalhas num universo desconhecido. E é isso que Engine of Hell realça, as agruras da vida face à realidade construída por esta mulher da California a viver em Portland. Neste disco sente-se a reabilitação do corpo e do espírito de Emma, que foi realizada num acto de isolamento em Wales, enquanto ia definindo o disco. Hoje, encontramo-la fisicamente mais frágil, a precisar de um braço de apoio para chegar ao palco, (ou será representação?). A artista já tinha sido avistada no Roadburn com recurso a uma bengala para pessoas invisuais e consta, numa das entrevistas cedidas, que o seu pai perdeu quase por completo a visão. 

A adultez madura chegou com toda a crueldade, ainda que tente, com toda a força que lhe resta, deixar o passado sujeito ao seu tempo verbal. Emma olha para trás sem se tornar estátua de sal, porque não o faz com saudade. Apesar de todas as contradições com que se foi deparando ao longo da sua trajectória, resultado de toda a negligência em nome do álcool e drogas (substâncias que deram cabo da sua saúde tanto física como mental e a levaram a ficar internada num hospital psiquiátrico por 8 dias), enfrenta neste presente a realidade, abraçando a catarse que a fez sair do inferno em transição rumo à leveza de viver. À imagem da simplicidade com pormenores subtis incluídos no seu disco, tenta refazer a via da destruição direccionando-a à da edificação. É tempo para ir limpando o lixo e lidar com o peso das suas memórias. O que lhe interessa é ser verdadeira no que faz e com o que faz, ainda que corra o risco de expor os seus traumas: There's no need to check the weather as my winter's never over (...) Numbing out the nightmare but I just keep grinning.

A música e a arte que faz foram tábua de salvação para a estrada hostil que percorreu. A arte cura e foi o que constatou aquando da sua internação. E segreda-nos tudo num cenário minimalista e intimista. Ouvem-se bem as palavras com mais ou menos reverberação. Emma não deixa a interpretação para segundo plano, assume estar ali para apresentar o seu último disco, mas não invalida o toque humano que um concerto tão orgânico propicia. Um momento autêntico com imperfeições e com qualidade emocional onde há falhas técnicas que não tiram valor à magia. 

A ruiva de tez clara foi deixando palavras no ar em jeito de interlúdio, não esquecendo que o objectivo daquele concerto seria apresentar Engine of Hell, uma viagem carregada de introspecção com líricas honestas que passam pelo tormento terrestre e cuja esperança se assenta na busca da libertação presente num outro lugar.

Venho a considerar Emma uma das talentosas guitarristas vivas da actualidade, comparativamente a Kaki King e Adrianne Lenker. O modo e sensibilidade com que dedilha as cordas da guitarra, as intensidades alternadas ao piano, como também a sua voz, revelam, sem qualquer dúvida, uma artista inteligente que se exprime com alma e com gosto apurado. "Return" preenche aquela sala remetendo a Tori Amos.

Todo o percurso que é feito ao longo deste álbum vive do imaginário de uma alma que voa sobre um céu negro enquanto aguarda o último sopro, como se fosse um anjo de "As Asas do Desejo", de Wim Wenders. "Razor's Edge" é aguardado com alguma ansiedade pelo cariz folk e pela melodia mais leve. Bem tocado, com passagens entre acordes mais subtis que o do registo, os dedos de Emma e a voz reflectem segurança alcançada com os ensaios, essa que nos leva algumas vezes ao timbre de Alanis Morissette, acompanhada pela guitarra acústica que tira partido das madeiras. Nos intervalos vai afinando as cordas - substituídas naquele dia - que mudam pontualmente de tom de acordo com a afinação de cada tema. Segue-se "Citadel" com a respiração e o bater do pé a marcarem o ritmo. Toda a Emma é um corpo que tira partido da acústica da sala. Entre guitarra e piano, volta ao instrumento protagonista de "In My Afterlife", esse tema com reminiscências de Nine Inch Nails e com a nudez vocal de Sibylle Baier. Admite que, de todos os pianos que já tocou, aquele foi nomeado o melhor. Para não regressar ao palco, tocará os temas que se esperariam depois do encore. O concerto foi encerrado com "Marked for Death" e com a canção de amor "Pump Organ Song" que faz parte do EP Orpheus Looking Back, saído a 25 de Março, com selo da Sargent House. I took a love there / And he took my hand / But I spoke a language he could not understand / And how does it end?

Este foi o trajecto que a plateia percorreu a seu lado sentindo a sua dor. Não obstante a carga emocional presente em Engine of Hell, Emma pediu para que todos fôssemos, acima de tudo, livres! Pois encontrar o sentido da vida é o que nos torna humanos, não se trata de sermos felizes, mas de vivermos livres.


Texto: Priscilla Fontoura