quarta-feira, 13 de julho de 2022

Música de elevador por Rudesindo Soutelo

Pieter Bruegel, o Velho. A luta entre o Carnaval e a Quaresma. 1559. Museu de História da Arte em Viena, Viena.

Aquele ambiente sonoro pretensamente relaxante que preenchia o consultório médico fez-me refletir sobre A ascensão da insignificância, uma entrevista radiofónica que fizeram ao filósofo francês Cornelius Castoriadis em 1993. “O trabalho do intelectual deveria ser um trabalho de crítica, como foi frequentemente o caso durante a História. Na Grécia, por exemplo, os filósofos questionavam as representações coletivas instituídas, as ideias estabelecidas sobre o mundo, os deuses, a boa ordem da cidade. Mas ocorre rapidamente uma degenerescência: os intelectuais abandonam, traem o seu papel crítico e tornam-se racionalistas do que existe, justificadores da ordem estabelecida”1.

A envolvência sonora daquele espaço estava a irritar-me quase tanto como a estrondosa agressividade que se pratica nos centros comerciais, supermercados e outros templos do consumismo com o subliminar objetivo de inibir a faculdade de pensar. Uma subtil maneira de silenciar anonimamente a divergência e a autocrítica sem recorrer à censura. Quando desistimos do nosso direito de dizer o que pensamos e de ser responsáveis pelo que dizemos, são os outros a falar e preencher o nosso espaço de sociabilidade com ideias que podem ser mesmo monstruosas. Constantino já percebera a importância da religião no controlo subliminar do seu vasto império, convocando e presidindo, no ano 325, o Primeiro Concílio de Niceia para unificar a doutrina que configurasse a obediência subconsciente dos seus cidadãos. Carlos Magno compreendeu que era preciso vigiar o que se cantava nas igrejas para dominar o pensamento do seu Sacro Império Romano, e impôs o Canto Carolíngio, também conhecido por Gregoriano. Lutero decretou que todos os ofícios se celebrassem na língua do povo e iniciou um novo tipo de canto, os corais ou hinos que passaram a ser cantados diretamente pela assembleia, reforçando a assimilação das mensagens. O Concílio de Trento instou os compositores a simplificar a textura sonora para que o recado ideológico fosse mais compreensível. Já no século XX, o Concílio Vaticano II seguiu os passos de Lutero e finalmente decidiu que os ofícios se celebrassem nas línguas vernáculas, fossilizando assim o Canto Gregoriano e, não por acaso, inundou os serviços religiosos de músicas banais, talvez mais conformes com o ‘aggiornamento’ da ideologia institucional. Jacques Attali afirma que tudo isso “é um meio para fazer calar, … um monólogo de instituições”2. Neste processo, a música foi invadindo todos os espaços de atividade e já se transformou no “barulho de fundo para as massas. Música para fazer calar”3

A sociedade repetitiva, consumista, impõe o silêncio mediante a música. MUZAK, uma empresa especializada em vender música ambiental, aplica uma ‘limitação da gama de intensidades’ às unidades sonoras que processa e que consiste em reduzir os contrastes auditivos, nomeadamente comprimindo ou homogeneizando o volume, e selecionando os timbres, dinâmicas e ritmos para elaborar sequências de treze minutos e meio, que era o tempo médio que os telespetadores americanos conseguiam manter a atenção concentrada, mas que nos últimos anos tem vindo a diminuir de modo radical. Essas sequências, integradas em séries de oito horas, são as que ouvimos nos espaços laborais para aumentar a produtividade, nos centros comerciais para estimular o consumo, nos aeroportos, elevadores, transportes, restaurantes, estádios, igrejas, piscinas e todo o tipo de espaços de sociabilidade, instalada como mais uma mobília funcional para o ritual repetitivo de endoutrinação anónima. Música manipulada para manipular as massas, mesmo no consultório médico. “O conjunto está instrumentalizado, utilizado por um sistema, ele próprio anónimo”, reflete Castoriades, onde “tudo respira em conjunto, sopra na mesma direção, a de uma sociedade na qual toda a crítica perde a sua eficácia”4

O pensamento ocidental desenvolveu a capacidade de se questionar e de fazer autocrítica. Se a crítica do intelectual adormece, a sociedade entra em crise, uma crise dos significados do imaginário coletivo. Quando não questionamos a História e só relatamos os factos sem qualquer discernimento crítico, podemos induzir a racionalismos falaciosos que justifiquem a involução ou legitimar que o ideal sublime dos criadores é o enriquecimento e o reconhecimento social, e não, criticar esta corrida para o abismo e, sobretudo, “tirar da miséria psíquica e moral os nossos contemporâneos”5.

Há tempo que os valores da sociedade ocidental foram substituídos pelos valores económicos, deixando de lado o desenvolvimento dos seres humanos. Aquela música de elevador no consultório médico não é inocente. Não é mais do que uma forma de dominar os ruídos e pode ser o anúncio do silêncio geral da humanidade frente ao espetáculo da “trituração radical dos códigos pela máquina da economia”6 como a Quaresma engole o Carnaval. 

1- Castoriades, C.: A ascensão da insignificância. Lisboa, Bizâncio, 2012, p. 94. 
2 - Attali, J.: Ruídos. Ensayo sobre la economia política de la música. Paris, Editions Ruedo Ibérico, 1977, p. 224. 
3 - Ibid.: p. 225. 
4 - Castoriades, C.: Op. Cit. p. 96-97. 
5 - Ibid.: p. 106. 
6 - Attali, J.: Op. Cit. p. 227

Texto: Rudesindo Soutelo (Compositor e Mestre em Educação Artística)