Quando pergunto aos alunos de Ensino Secundário do Ensino Artístico Especializado se vão candidatar-se a um curso superior de música, fico a refletir sobre o conjunto de circunstâncias que condicionam as suas decisões. Há os que têm claro o seu futuro, seja como profissional ou amador da música; há os que duvidam e ainda há os que não sabem nem querem saber, que são as vítimas de uma sociedade que fomenta o fracasso promovendo o competitivismo, onde alguns são os iniciados e os outros, os leigos. O estranho é que os alunos raramente mencionam a principal variável deste problema, a criatividade. A cultura, para além de outras coisas, é um jogo social e Dietrich Schwanitz afirma que “o jogo tem as suas regras e quem não andou a praticar o jogo da cultura desde pequeno, tem dificuldade em aprendê-las”1.
Uma das estratégias que tenho utilizado para inculcar nos alunos o gosto pela cultura é pedir-lhes que escrevam um Diário onde anotem e comentem as práticas artísticas e culturais que desenvolvem em paralelo com a atividade escolar. No final de cada período, leio tudo o que me entregam e, para além de orientar as minhas estratégias pedagógicas, as observações e experiências que relatam contribuem para uma avaliação mais equilibrada de cada estudante. Num desses diários estava escrita uma reflexão que resumidamente vinha a dizer que a sua paixão pela música iniciara já desde bebé, quando os pais começaram a frequentar as atividades e concertos dominicais da Casa da Música; e resumia a experiência numa frase devocional de comunidade de fé: “Era como ir à missa cada domingo”. A criatividade revelou-se quase que naturalmente e hoje tem uma brilhante e feliz carreira musical. A “familiaridade com os traços fundamentais da história da nossa civilização, com as grandes teorias filosóficas e científicas, com a linguagem formal e as principais obras de arte, da música e da literatura”2 é o que nos permite compreender a sociedade que nos integra. A família e a escola são os protagonistas fundamentais do desenvolvimento integral da personalidade cultural dos alunos, mas quando uma dessas instituições fracassa no seu cometido, e a outra não consegue preencher esse vazio, no melhor dos casos acontece uma formação prática de especialistas sem qualquer sensibilidade cultural. São As duas culturas3 que C. P. Snow identificara: a cultura da erudição clássica do humanismo e a cultura científica e técnica, que vai muito para além da tradicional divisão do conhecimento em Trivium e Quadrivium – Letras e Ciências –, pois tanto pode dar-se um humanista técnico como um cientista erudito. Na música, essa dualidade conduz a erros de raciocínio e argumentação onde o transcendente e o trivial se confundem e atrapalham.
Nas minhas turmas de História da Cultura e das Artes, e de Análise e Técnicas de Composição, onde a cultura da erudição é basilar, predomina o género feminino, como, diga-se de passagem, está a acontecer na maioria das formações musicais atuais. Curiosamente há excelentes, e até brilhantes, alunos do género masculino, mas na hora de decidir o seu futuro profissional têm tendência a enveredar pela segunda cultura, a científica e técnica, deixando a música para trás ou relegada a uma prática amadora. A tendência feminina, quando deixam a música de lado, é pelos cursos da primeira cultura. Esta assimetria que se observa na música, também acontece nas universidades e no mercado de trabalho e tem consequências na progressão social. A segunda cultura, essencialmente povoada por homens, é mais bem remunerada mas os conhecimentos que proporciona não favorecem a evolução dos comportamentos, opiniões e atitudes perante a vida. Aos olhos da cultura da erudição, podem ser percebidos como pessoas primitivas altamente tecnocratizadas, o que gera inúmeros conflitos, nomeadamente quando constituem um casal misto. O que os separa é precisamente o grau de criatividade que a primeira cultura ajuda a desenvolver mais. Os que duvidam estão a auto-observar-se para resolver o problema do seu próprio saber. Precisam de conceitos para descrever e explicar o comportamento próprio e ter consciência de que “a realidade pessoal é uma construção que varia de acordo com o ambiente, a procedência, a idade, a camada social e a cultura”4 . Nessa reflexão talvez descubram que as duas culturas de Snow estão a aproximar-se e o conceito de autorreferencialidade, a auto-observação, já não é exclusivo do sujeito, do humanismo; agora são cada vez mais os organismos, inclusive as empresas, que estão a auto-observar-se, a auto-organizar-se, a autodescrever-se, e começam a valorizar e incentivar a criatividade pelo que caminhamos para uma confluência de ambas as culturas.
Talvez o mais difícil nessa ponderação seja saber o que não devemos saber, tanto pelo que possa atrapalhar o raciocínio como que possa invalidar os argumentos. Não basta ser inteligente ou saber as respostas certas, pois isso só faz referência a elementos novos que estão ligados a conteúdos previamente conhecidos; é o que se designa de pensamento convergente. Pelo contrário, o pensamento divergente relaciona elementos novos que são independentes dos conteúdos prévios, produzindo respostas possíveis, originais e flexíveis, mas exige uma grande capacidade crítica para excluir as ideias absurdas. Isto é a criatividade e pode aprender-se, mas só se manifesta em ambientes de sensibilidade cultural, criativos. O mundo dos negócios já utiliza técnicas como a tormenta de ideias (brainstorming) para estimular a criatividade. As escolas, nomeadamente as do Ensino Artístico Especializado, têm que desenvolver um ensino criativo em todas as disciplinas, mas para isso é imprescindível que a criatividade seja uma disciplina transversal na formação dos professores. No fundo, os alunos sabem que só é culto quem sabe criar-se a si mesmo.
1 Schwanitz, D.: Cultura. Alfragide, D. Quixote 2019, p. 464-465.
2 Ibid.: p. 463.
3 Snow, C.P.: As duas culturas. Lisboa, Editorial Presença 1996.
4 Schwanitz, D.: Op. cit. p. 574.
Autor do texto: Rudesindo Soutelo (Compositor e Mestre em Educação Artística)