Cartaz The Fabelmans A sala escura de um Cinema permite-nos chorar histórias e nunca esquecê-las. Em The Fabelmans , realizado por Steven S...

Breaking the Fourth Wall: The Fabelmans (2022)

Cartaz The Fabelmans

A sala escura de um Cinema permite-nos chorar histórias e nunca esquecê-las. Em The Fabelmans, realizado por Steven Spielberg a partir do argumento coescrito com Tony Kushner, há quem se reveja na família enumerada: no contacto com o judaísmo e o humor que lhe está associado, no apoio de Mitzi Fabelman (Michelle Williams), que deixou a emancipação artística para cuidar da sua família e alargar os horizontes criativos dos filhos, de Burt Fabelman (Paul Dano), que sempre se manteve parceiro por ser um visionário fora do seu tempo. As irmãs de Steven Spielberg, Reggie Fabelman (Julia Butters) e Natalie Fabelman (Keeley Karsten), foram as protagonistas dos primeiros filmes caseiros com câmara Super 8, tanto de aventura como de terror. Muitos diálogos são cómicos, para quem se sente à vontade com as dinâmicas do judaísmo ashkenazi.


Este mais recente filme (e talvez o último) de Spielberg é uma autobiografia em homenagem aos seus pais Leah Adler e Arnold Spielberg, que morreram em 2017 e 2020. Da narrativa de The Fabelmans não são tirados os lugares obscuros que qualquer família pode carregar. Quando a marca dos progenitores deixada na memória afectiva do autor é profunda, não se deve deixar esta Terra permitindo que um desconhecido fale em nome de uma história que não lhe pertence. A memória afectiva é como carvão para a movimentação artística.

Para se fazer uma autobiografia é preciso ter coragem, uma vez que as fragilidades intrínsecas ao seio familiar são expostas - essas que tornam a intimidade do autor vulnerável, mas honesto com a arte. A verdade é que nem todos o são. Talvez seja por isso que essas almas não ecoam quando tentam criar. Preferem pela ficção contar histórias que ficam sujeitas à condição da possibilidade, sem se comprometerem com aquilo que diz respeito à eterna relação com a arte e à redenção, como afirmou Arthur Schopenhauer. É no quarto escuro que se sai da realidade. É no quarto escuro que se prepara a magia. E um mágico para conseguir enganar, pela destreza do seu encantamento, deve aproximar-se de uma noção de verdade para imergir a audiência naquela realidade. Seria sozinho com as suas mãos sobre a película que Sam (Gabriel LaBelle) encontraria o seu sentido de vida, que descobriria os segredos de uma relação extra-conjugal, que mexeria com a consciência da sua mãe e dos bullies, e convenceria o seu pai pelo esforço e dedicação ao cinema, porque são chips off the old block.

Spielberg/Sam teve a vida facilitada por ter tido a possibilidade de gastar película, devido à progressão profissional do seu pai que era um talentoso dentro do seu ramo. Mas, se não tivesse sido a sensibilidade da sua mãe para colmatar o
trauma de espectador na experiência de ver cinema com The Greatest Show on Earth (O Maior Espectáculo do Mundo, 1952), de Cecil B. DeMille, talvez teria sido um engenheiro interessado em desenvolver comboios mais modernos - motivado pelo seu pai. Spielberg mudou os carris do cinema. Olhou além da linha do horizonte, mas descentrada, porque o amor pela arte, tal como afirmou o tio Boris Schildkraut (Judd Hirsch), por ser o maior amor, traz também muito sofrimento, não obstante quem e o que se possa alcançar através dela. A arte não é um jogo, é tão perigosa quanto a boca de um leão faminto.

Sente-se a identidade de Spielberg em pequenos detalhes e por comparação a outros trabalhos, por exemplo a cena do tornado e a intercepção dos carrinhos de compras, o traço de luz que acompanha a sua mãe quando dança em contraluz no acampamento com cenas que lembram Jurassic Park e E.T., as cores quentes e as aventuras com os seus amigos em rodagem com Indiana Jones. 


É a constante (e obcecada) presença da sombra de Benny (Seith Rogen) que faz com que Mitzi engane o seu ego, rompendo por isso o laço familiar; porém questiona-se se Benny seria a sua verdadeira paixão ou se o piano. A cadência do filme vai dando sinais sobre o segredo escondido. A música, autoria de John Williams com quem Spielberg tem vindo a trabalhar, acompanha cada transição sem forçar qualquer dinâmica entre cenas. E é o final que confirma o efeito da visita da
persona non grata Boris e a última deixa de John Ford (David Lynch) a Sam. Basicamente os dois motivam-no a montar o elefante e seguir viagem.

The Fabelmans pode ser uma despedida do belo trabalho de Spielberg, embora com sorriso na cara, porque conseguiu reter o brilho nos olhos dos espectadores, sentados frente ao grande ecrã. L'chaim, a todos os que choram frente a uma tela. Se choram, é porque o domador não foi comido pelo leão.

Texto: Priscilla Fontoura
Imagens: Frames do filme The Fabelmans, de Steven Spielberg